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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - FUTEBOL - BIBLIOTECA NM
Os primeiros 60 anos do futebol paulista

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Clique na imagem para ir ao índice do livroEm 1956, o jornalista Adriano Neiva da Motta e Silva - o De Vaney - participou de um concurso nacional de crônicas sobre esportes e conseguiu provar, com números e outros dados, que Santos era a cidade mais esportiva do Brasil. Exatamente nessa mesma época, ele começava a publicar em formato de folhetim diário, então muito comum na imprensa, a história das primeiras seis décadas de futebol no Estado de São Paulo. O material, colecionado, formava um livro de 108 páginas. A publicação ocorreu no jornal santista A Tribuna, de 25 de janeiro a 29 de fevereiro de 1956 (ortografia atualizada nesta transcrição):

60 anos de futebol em S. Paulo

De Vaney


[4] - Passos iniciais do futebol

Havia o turfe, havia o críquete, a peteca, o boliche, a ginástica, o ciclismo, o golfe; mas turfe, críquete, peteca, boliche, ginástica, ciclismo, golfe, todos eles eram esportes individuais, que exigiam tão somente o esforço pessoal e isolado de cada um.

Era o egoísmo, portanto, quem prevalecia nas coisas do esporte, no São Paulo daquele tempo.

Foi por isso, por ser esporte de conjunto, de associação, de auxílios conjugados, que o futebol se tornou simpático e passou, desde logo, a atrair os moços de São Paulo, quando de sua introdução. O cestobol, outro esporte alicerçado nos mesmos moldes de cooperação, só se insinuaria, em êxito, em 1898.

Não foi curto, porém, o período de aclimatação do futebol. A surpresa de Charles Miller, ao saber, em 1894, quando de seu retorno a São Paulo, que por aqui não se conhecia o futebol, tinha, sem dúvida, inteira razão de ser. Afinal, a Inglaterra não ficava assim tão distante do Brasil, nem os contatos entre o Brasil e a Inglaterra eram tão espaçados que não se pudesse saber que existia por lá, regulamentado desde 1863, um jogo que empolgava os ingleses e que se disseminava, rapidamente, pela Europa inteira.

Charles Miller sabia que pelo menos alguns dos ingleses residentes em São Paulo deveriam conhecer o futebol. Sim. Conheciam. Mas estavam por demais apegados ao críquete para se lançarem a um outro esporte. Não fosse o inglês o povo mais rotineiro e conservador do mundo. O São Paulo Athletic era clube de críquete, não era clube de futebol, e em clube de críquete inglês, o futebol, mesmo sendo legislado por ingleses, não poderia progredir.

Não se restringiu, apenas, ao ensinamento do futebol, a tarefa de Charles Miller naquele primeiro ensaio nos terrenos da várzea do Carmo, mas sim também à catequese junto aos próprios ingleses.

Brasileiro nato, paulista, vindo ao mundo a 24 de novembro de 1874, no bairro do Braz, e descendente de ingleses, Charles Miller soube ter a paciência necessária para conseguir que o São Paulo Athletic viesse a adotar, também, o futebol association, já que o rugby já lá se praticava, embora em reduzida escala. E enquanto isso não ocorria, Charles Miller, que na Inglaterra se distinguira no selecionado de Hampshire e no "team" do Southampton, teve que passar o tempo em partidas de críquete e pelejas de rugby.

***

Entretanto, os ingleses do S. Paulo Athletic não levaram o seu apego ao críquete e à tradição ao ponto de desprezar, de todo, o futebol. Aos poucos foram-se amiudando os treinos e, na Chácara Dulley, onde existe, hoje, a Rua Três Rios, tiveram lugar, cada vez mais animados, os treinos e os bate-bolas.

Isso, esses ensaios privados dos britânicos valeram de muitíssimo, embora não pareça. Serviram para que a cidade ficasse sabendo que "lá pelos lados da Luz, do Bom Retiro, um grupo de ingleses, maníacos como eles só, se punha, de vez em quando, a dar pontapés numa coisa parecida com bexiga de boi, dando-lhe grande satisfação e pesar quando essa espécie de bexiga amarelada entrava por um retângulo formado de paus". (Carta enviada de São Paulo para o Rio, a 16 de agosto de 1896, pelo jornalista Celso de Araújo ao jornalista Alcino Guanabara).

Muita gente foi ver o que faziam os ingleses, "lá pelas bandas do Bom Retiro". E muita gente gostou, querendo saber, depois, como se jogava aquilo. E dessa curiosidade nasceu o interesse. Do interesse, a propaganda. Da propaganda, a difusão. Dentro em pouco, pelos "lados da Luz, da Ponte Grande", as bolas de borracha não eram, apenas, jogadas e atiradas com as mãos. Também os pés entraram em ação e começaram a ter decidida serventia. As pedras faziam de "traves", e a meninada da época, o garoto da rua, o mesmo garoto que, já homem, anos mais tarde, iria ser figura central de aplaudidos espetáculos no futebol varzeano, passou a ter contato com a bola, em sentido diferente do que até ali se empregava, embora sem saber, direito, como se jogava o futebol.

As ruas imitavam, então, o britanismo da Chácara Dulley, tal como, hoje, elas, as ruas, imitam a inacessibilidade dos estádios.

***

Já se falava alguma coisa de futebol em São Paulo, quando Augusto Shaw, professor do Mackenzie College, regressou dos Estados Unidos, em 1896. Em seu poder trouxe uma bola de cestobol. Era seu intuito introduzir esse esporte n Mackenzie College, de São Paulo, bem como o rugby, que foi posto à margem logo às primeiras experiências. A bola ao cesto resistiu um pouco mais. Acabou, porém, sendo substituída elo futebol, porque os alunos, que tinham visto os ingleses do Bom Retiro lidar a pelota com os pés, acharam de querer fazê-lo, assim, também.

Cansou-se, Augusto Shaw, de gritar, no pátio do colégio:

- "Com o pé, não! Com o pé não vale! Com a mão. Só com a mão!"

Mas, para os alunos do Mackenzie (influência de Charles Miller), o que valia mesmo era com o pé.

E a bola de cestobol teve que servir, no Mackenzie College, de bola de futebol...

E, depois de um período de atividade exclusivamente interna, fundou-se, a 18 de agosto de 1898, o primeiro clube de brasileiros: A. A. Mackenzie College.

***

Pouco antes, em início de 1898, chega da Alemanha o cidadão Hans Nobiling, natural de Hamburgo, onde jogava, lá, pelo S. C. Germânia. Em seu poder Hans Nobiling traz duas coisas que julga preciosas para a colimação de um ideal: uma bola e um exemplar dos estatutos de seu clube hamburguês. O ideal é o de difundir a prática do futebol.

Primeiro, Hans Nobiling procurou influenciar os elementos da colônia alemã, mas a ginástica, esporte de predileção dos teutos, serviu de obstáculo ao seu desiderato. Convergiram, então, para os brasileiros as suas atenções. E ei-lo a a ensinar o futebol a um extenso número de moços estudantes e também a rapazes do comércio. O local dos ensaios é a Chácara Dulley, a mesma em que o São Paulo Athletic estivera durante muitos anos e que deixara para ir arrendar um terreno na Rua da Consolação, perto da Caixa D'água.

Lá, na Chácara Dulley, Hans Nobiling exercita a sua rapaziada sempre que há oportunidade. Às vezes não encontra tempo para treinar à tarde, mas Hans Nobiling não  se perturba com isso: marca o ensaio para a noite. E é à luz da lua que, muita vez, os sapos, espantados, vêem correr para cá, para lá, dois bandos de rapazes, atrás de uma bola enrolada em pano branco. As nuvens, de quando em quando, toldam de negro o branco do luar, e as correrias, tormentos dos batráquios, se interrompem, de repente, à falta de energia da lua, como hoje acontece, à falta de energia elétrica.

Uma tarde, Hans Nobiling deu a equipe como em "Ponto de bala". Escolheram um nome por eleição: "Hans Nobiling Quadro".

E lá se foi um desafio dirigido ao São Paulo Athletic. O São Paulo Athletic não aceitou. Parece que não aceitou, porque não respondeu.

Hans Nobiling lembrou-se, então, do Mackenzie. Sentiu, mesmo, uma ponta de remorso por não se haver acordado, antes, em convidar o Mackenzie. E o Mackenzie aceitou. O Mackenzie também estava bem treinado. Havia ensaio todo o dia, toda a hora, no terreno do colégio. Era só tocar a sineta do recreio, para o ensaio começar. René Vanordem, do Mackenzie, serviu de intermediário e de animador para a realização do jogo.

 

Ilustração de J.C. Lobo publicada em A Tribuna com o texto

***

Mackenzie x Hans Nobiling Quadro foi o primeiro prélio disputado no Brasil (5, março, 1899) entre equipes brasileiras e que terminou - melhor assim - sem abertura de contagem.

O Mackenzie, nessa tarde, estreou seu uniforme (o primeiro uniforme de um clube brasileiro): camisa vermelha e gravata branca. E era tão indispensável o alinho no fardamento, que quando o zagueiro Augusto Guerra ia entrando em campo o sr. Augusto Shaw o repreendeu, irritado:

-"Não, Augusto! Assim não! Assim com essa gravata torta, como a sua está, eu não consinto que você jogue!"

***

O Mackenzie tomou conhecimento do interesse inglês. Mas ficou calado. Fingindo que não sabia. esperou convite. O convite veio. Solene, como todo o convite inglês. Tinha até hora marcada para chá, depois do jogo.

Disputou-se, então (12, março, 1899) o primeiro prélio de caráter internacional: Mackenzie (Brasil) x São Paulo Athletic Club (Inglaterra), no campo da Consolação. Venceram os do "Atlétic". 3 a 0. Vitória que, ao invés de desanimar os brasileiros, mais os estimulou, porque a impressão dominante, antecedendo o jogo, era a de que os dianteiros ingleses iam ficar com câimbras de tanto marcar tentos na meta do Mackenzie. Mas isso não aconteceu.

O que sucedeu foi os ingleses cumprimentarem os mackenzistas, ao final do jogo, e afirmarem que o  Mackenzie começava "very well", o que valeu uma festa para o Mackenzie. Augusto Shaw, René Vanordem, não puderam conter a emoção. Choraram. Foram essas primeiras lágrimas que adubaram, talvez, o futebol do Brasil, porque daquele minúsculo "3 a 0" ante os gigantescos ingleses nasceu o estímulo que se faz imprescindível em todas as iniciativas.

Amiudaram-se, a partir de então, os jogos dessa fase, que bem se pode chamar de aurora do futebol nacional. Voltam a jogar "Hans Nobiling Quadro" e Mackenzie. Ganha o "Hans Nobiling" por 1 a 0. Anima-se o "Hans Nobiling" e desafia o "Atlétic". Os ingleses levam 2 meses para aceitar. Sua equipe, a essa altura, já está com bom aspecto e nela avultam as figuras de Charles Miller, Robinson, Duff, Boyes, Hodgkissis, Creew Bidel e Jeffery. O jogo é realizado na tarde de 29 de junho de 1899 e a assistência que o presencia passa a ser o recorde no Brasil: 60 pessoas. Os ingleses venceram, 1 a 0. E isso, essa exigüidade, diz bem do equilíbrio.

No "Hans Nobiling" vão se formando elementos de valor: Rolland, René Vanordem, Vila Real, Mikulasck, Robotton, Savoy, White, Wannschaff, todos sob a direção de Hans Nobiling. Há um terceiro jogo, reunindo "Hans Nobiling" (1) e "Mackenzie" (1). Os ingleses, agora, é que querem um prélio com o "Hans Nobiling". Não se satisfizeram com o 1 a 0. Sabem que podem ampliar a contagem. E ampliam mesmo: 4 a 1.

***

A realização dessa série de cotejos deu impulso decisivo ao futebol de São Paulo. Já possuindo o São Paulo Athletic e o Mackenzie, veio ele a contar com um grêmio que se originou do "Hans Nobiling". Deveria chamar-se Germânia, por vontade de seu patrono, mas a assembléia de fundação, a que compareceram 25 rapazes, optou pelo nome de "Internacional", e isso porque tal nome abrangeria todas as nacionalidades dos associados e não a dos alemães, como se daria no caso de prevalecer o nome de "Germânia".

A Hans Nobiling, como era natural, não agradou o veto à sua propositura. Retirou-se, embora sem alardes, do recinto, sendo acompanhado nesse gesto pelos irmãos Wahnschaff.

E o S. C. Internacional foi fundado a 19 de agosto de 1899.

***

Pôs-se Hans Nobiling, desde logo, em franca atividade. Com tanto acerto e com tal rapidez agiu ele, que, 19 dias mais tarde ao da fundação do Internacional, ou seja, a 7 de setembro de 1899, surgia o S. C. Germânia, sustentado, em sua maioria, por elementos pertencentes à colônia alemã.

A impressão que se poderá ter é a de que Germânia e Internacional passaram, desde logo, a se olhar arrevesado. Nada disso, porém. Pelo contrário. A primeira atitude que tiveram foi a de se apertarem as mãos, de estreitarem amizade, treinando juntos sempre que possível, na Chácara Witte, primeiro campo do Germânia, aos fundos da Chácara Dulley, e onde se encontra hoje a Escola Politécnica.

***

Com quatro clubes (Athletic, Mackenzie, Internacional e Germânia) o São Paulo do futebol principiou a marchar a passos largos. E mais largos esses passos se tornaram ainda quando, em fins do ano seguinte, 1900, foi fundado, aliás de forma curiosa, o C. A. Paulistano: existia uma lista em poder de um senhor chamado Arnaldo Pacheco, lista essa já com 40 assinaturas apostas, contendo os nomes dos rapazes que pretendiam ingressar no quadro social do São Paulo Athletic, tentando criar uma espécie de seção brasileira no recesso do grêmio inglês. E quando Arnaldo Pacheco levou a lista para receber as assinaturas de Renato Miranda e Martinho Prado, estes se insurgiram:

-"Não! Para ingressar no São Paulo Athletic não assinaremos".

E sugeriram:

-"Por que não se funda, com esses 40 rapazes, um clube nosso, brasileiro, paulista, paulistano?"

E o nome ficou: C. A. Paulistano!

***

Cinco clubes em São Paulo era o suficiente para a fundação de uma entidade.

Foi essa a idéia que se concretizou em 14 de dezembro de 1901, quando fundou-se, na sede do S. C. Internacional, instalada num prédio à Rua José Bonifácio, esquina de São Bento, a Liga Paulista de Futebol.

Ilustração de J.C. Lobo publicada em A Tribuna com o texto

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