60 anos de futebol em S. Paulo
De Vaney
[2] - São Paulo de outrora
Como passatempo de escol, àquela
época, havia as tertúlias literárias. São Paulo, centro estudantil por excelência, adorava as letras, não tanto as dos livros didáticos, mas sim
muito mais as que expressavam poemas ou as que permitiam a leitura de alentados volumes, onde, nos "romances de capa e espada", as histórias de amor
se continham em alta e apetitosa escala, dosadas pelas mãos hábeis dos mestres ficcionistas.
Fazer versos, dizer versos, recitar páginas inteiras de autores famosos eram, àquele tempo, o
supra-sumo da erudição, da elegância, e os saraus, em constante rodízio pelos salões paulistanos, iam-se sucedendo, num ambiente de distinção e
refinamento.
Havia, nessas reuniões, um instante ansiosamente aguardado, em que as danças - os schottisk,
as mazurcas, as quadrilhas, os lanceiros - se interrompiam, às súbitas, e uma voz, solene, anunciava:
- "Agora, o nosso momento de arte".
Arrastavam-se cadeiras. Vinham para o meio do salão os amplos sofás à Luiz XV, e, ao lado deles,
os canapés, as cadeiras de assento de palhinha, e até o reforço, às avessas necessário, dos puffs, em feitio de pequeninos bancos. Na frente,
sentadas, as damas; por trás, de pé, os cavalheiros. Baixavam-se as luzes dos lampiões e candelabros, amortecendo-se a claridade, propiciando a
invasão da penumbra que se derramava, tênue, macia, pela sala toda. Ao canto o piano, quase sempre de cauda, e em torno de todos, de tudo, um
silêncio sepulcral.
Quem o quebrava era a mesma voz de antes:
- "Vamos ouvir, em primeiro lugar, o poeta Venicios Cesar, recitando La jeunesse malade, de
André Chénier".
O piano, então, começava a fazer subir ao ar os compassos iniciais do Sansão e Dalila,
via-se o vulto de um rapazola, magro, pálido, peito curvo, aproximar-se lentamente do piano, passar o lenço de seda, muito grande, muito branco,
pela testa, pelo rosto, pô-lo no bolso da sobrecasaca, ajeitar, em trejeito gracioso, os punhos da camisa, uma, duas, três vezes, e, depois, de
manso, num sussurro, iniciar, em francês, no mais puro francês, o La jeunesse malade, de André Chenier.
Ao término, crepitar de aplausos, que o recitador, ares de herói, lenço perfumado a deslizar pelo
rosto suarento, agradecia com demoradas inclinações do busto magro.
Seguia-se o segundo recitador, um outro moço de rosto macilento, de olheiras fundas e negras,
cabelos em desalinho, e que, ao som dolente de um suavíssimo acalanto, punha-se a dizer, com voz melada, o Fleur du mal, de
Baudelaire.
Prosseguia, depois, o desfile de recitadores, todos eles a receber olhares dulçurosos das meninas
casadoiras, que os tinham, todas, como autênticos ídolos que o eram, de fato, àquele tempo, em que, na Paulicéia, recitar versos - e quanto mais
adocicados melhores - era nivelar-se em magnitude às divindades olímpicas.
- "O senhor sabe recitar poemas de Castro Alves?"
- "Não. Não sei".
- "E saberá, por acaso, algum soneto de Casemiro de Abreu?"
- "Não. Não conheço!"
Pronto. Bastava. O cidadão que não era autoridade em versos não tinha lugar nos salões paulistanos
naquela época em que 10 horas da noite era madrugada alta, receio do sereno era demonstração de previdência, cidadão musculoso era brutamontes,
menina que não lia romance açucarado era assanhada e moça que chegava à janela era rapariga sapeca.
Além dos ídolos dos salões, haviam-nos, também, os do teatro. Pelo Batuíra que se
localizava à Rua Cruz Preta (hoje Quintino Bocaiuva), na parte compreendida entre as ruas da Freira (Senador Feijó) e Jogo da Bola (Benjamim
Constant), pelo Teatro Provisório Paulistano, à Rua da Boa Vista, e pelo Teatro São José, onde se ergue, hoje, o edifício da Light, desfilaram os
mais famosos atores e atrizes da atualidade.
Tão grande era o prestígio das figuras do teatro, que das lutas travadas entre os partidários
desse ou daquele ator explodiram os mais sérios conflitos que, de então, se tem memória, sendo o maior de todos o que se registrou entre
portugueses, fanatizados pelo desempenho do lusitano João Mattos, e brasileiros, que viam em Adelaide do Amaral a arte dramática feita mulher.
Mas o fato culminante da história do teatro paulistano, que era - além dos saraus literários - o
único meio de diversão popular, foi quando das estadas em São Paulo de Ernesto Rossi e Sarah Bernhardt. O trágico italiano foi carregado em triunfo,
à sua chegada, desde a estação até ao Grande Hotel, e escutou-se, então, pela primeira vez, o estrondejar de foguetes em período que não pertencia
nem a São Pedro nem a São João, mas, sim, a um São Paulo que se engalanava para receber Ernesto Rossi.
Outro acontecimento que empolgou São Paulo foi a manifestação feita a Sarah Bernhardt, que, depois
de representar Fedora, de Sardou, no São José, atravessou o viaduto do Chá pisando os paletós (à falta de capas de estudantes) à maneira de
Coimbra e - superando a Coimbra - desatrelaram-se os cavalos da carruagem da atriz francesa, sendo a viatura conduzida pela multidão em delírio até
o Grande Hotel, à rua que tem, hoje, o nome de Miguel Couto.
São Paulo era, àquela altura - 1890 - uma pacata cidade de 130 mil habitantes, e que Paulo Val, em
seu Etat de São Paulo, diz que "tudo nela é suave e pacato, pela sua situação topográfica e pela índole madorreita dos seus habitantes".
Tão pacata, tão simples, tão ingênua é aquela São Paulo, que, quando das terrificantes enchentes
do Tietê, em 1892, manda chamar o pintor Benedito Calixto, às pressas, em Santos, para que ele retrate os aspectos poéticos da catástrofe...
Embora sendo sede da Província ou capital do Estado, São Paulo vinha sendo superada, em muito, por
Santos, por Ubatuba, por Bananal, por Campinas, em arrecadações monetárias, e Carl von Koseritz, em sua magnífica Imagens do Brasil, não se
esquece de fazer referências, com pontadas de ironia, ao contra-senso com que o paulistano denominava vários trechos de sua cidade, chamando de
"Campos Elíseos" uma zona solitária, dando o nome de Consolação ao cemitério, de Liberdade à cadeia, e fazendo conhecer como sendo a "Ilha dos
Amores" a um pequeno trecho do ribeirão Anhangabaú, lugar prosaico pelo amontoamento de palrantes lavadeiras.
Com o advento da República, veio, porém, a era da recuperação. A democracia, ainda em sua
verdadeira essência e a alimentar, sem expansões demagógicas, o ideal nacionalista, ensejou a São Paulo a fase de reconstrução, de progresso, de
liberdade objetiva, de apoio aos direitos do homem. Velhos hábitos, antigos métodos, tinham, fatalmente, que dar lugar a uma nova era, a uma vida
mais simples, mais desataviada, mais compatível com as funções físicas e mentais do homem em evolução social.
Para o São Paulo que crescia em sua indústria, que multiplicava a sua agricultura, que se
libertava de costumes rotineiros, teria que surgir, decerto, o derivativo imperioso para os males da vida sedentária.
São Paulo estava em franca evolução, mas é curioso observar que se por um lado Martim Francisco,
secretário da Fazenda, afirmava em relatório de 1892 que "Para o Estado de São Paulo pagar todas as suas dívidas e todos os seus compromissos, só
carece de uma coisa: o tempo para contar o dinheiro", por outro lado, todavia, e na mesma ocasião, Bernardino de Campos, presidente do Estado, era
obrigado a repetir a todo o instante:
- "A mocidade paulista está sendo tragada pela tísica, de tal forma, que deve o Estado recear pelo
seu próprio futuro".
Como se vê, as estatísticas financeiras - pela afirmativa de Martim Francisco - são gritos de
progresso. Mas as estatísticas demográficas - pelo depoimento de Bernardino de Campos - valem por orações fúnebres.
A mortandade, em São Paulo, atinge a 41% na população compreendida entre os 15 e os 25 anos. E o
que se faz para debelar o mal? O que se faz é preparar tisanas, é manipular xaropes, é inventar beberagens. Mastruço com agrião. Rezas. Benzeduras.
Danças e batuques de terreiros. Aos doentes, atabafos, meias de lã, janelas fechadas, ar quente, pestilento, ambiente de morbus, sem ar, sem luz,
sem sol.
O São Paulo da mocidade de após República é um São Paulo que sabe Chantepleure de cor, que recita
Victor Hugo no mais puro francês de Racine, mas que tem febre todas as noites, suores frios todas as tardes, e que se vai encaminhando, trôpego,
esquelético, fantasmagórico, entre tosses de tísica, surtos de febre amarela, males de sífilis, corrosões da lepra, devastações venéreas, a caminho
dos túmulos.
Jean de Place comenta, em seu Voyage au Brésil, que o mais impressionante dentre quanta
coisa viu em São Paulo foi o paulistano servir-se de carruagem para percorrer o diminuto espaço ocupado por três quarteirões. "O casario de São
Paulo - acrescenta Jean de Place - circunscreve-se apenas às áreas servidas por veículos à porta das habitações, porque o horror de caminhar é tão
grande que, aos domingos, quando os transportes escasseiam ou não existem, ninguém sai de casa, para não ter que andar".
Era assim o São Paulo de outrora: acomodado, introvertido, incapaz de um esforço físico maior.
- "Faltam esportes ao Brasil!", escrevia Gall Abbot, médico norte-americano, amigo particular de
d. Pedro II, e isso fez que o velho monarca recomendasse ao Visconde de Ouro Preto a elaboração de um projeto de isenção de direitos alfandegários
para materiais esportivos. E sua filha, a princesa Isabel, bem que procurou estimular, com a sua presença, as competições de corridas rasas ou com
obstáculos, que se efetuavam no Clube Brasileiro de Cricket, disputas essas que, embora entre indivíduos humanos, valiam lucros financeiros aos
portadores das "poules" dos vencedores, já que, talvez pelo fato de ter havido ali, no mesmo local, um prado de turfe, vendiam-se bilhetes de
apostas...
Andava a passo lento, em São Paulo, o esporte de que carecia o paulista, para se tornar menos
enfermiço, num frisante contraste com a evolução que se observava no São Paulo dos demais setores de sua atividade. |