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A LOUCURA QUE SE PRODUZIA NO ANCHIETA,
COMO NO CONTO DE GABRIEL GARCIA MÁRQUEZ
"Tudo que é sólido se desmancha no ar" (Marx e Engels).
No rumo para o futuro e por ato de vontade comum, o Anchieta desapareceu, como edifício da ordem
antiga: restou um prédio com "jeitão" de penitenciária. Era um aparelho do sistema dissolvido pelo avanço popular. Lá, não internavam-se "loucos":
as pessoas eram encarceradas, embora sem condenação, e torturadas, o que é proibido aos presos comuns. Uma penitenciária é um paraíso perto do que
foi esse manicômio, pois lá produzia-se loucura, autêntica e original.
É Alfredo Naffah Neto, mestre em filosofia na USP e doutor em psicologia Clinica pela PUC, que
analisando um conto de Gabriel Garcia Márquez - denominado "O estigma da loucura e a perda de autonomia" – mostra como isso ocorre. É um dos
contos do livro "Os doze contos peregrinos", do autor.
"Só vim telefonar" conta a estória de Maria Luz de Cervantes, casada com um mágico de salão, o Mago
Saturnino, que tem seu carro quebrado na estrada e pede socorro para os veículos que passam. Quem pára para ela é um ônibus estranho, cheio de
mulheres sonolentas envoltas em cobertas. Ela não sabe, mas são as loucas de um hospício – e que nessa situação existe apenas uma porta, a da
entrada. É difícil sair, às vezes impossível.
Maria dorme no ônibus, chega ao destino e mandam-lhe entrar em uma fila. Pede por um telefone e
respondem-lhe com ironia, sem contrariá-la, como manda a regra no trato com os loucos: "Depois, depois". Alguém viria a um hospício só para
telefonar? Se estava no ônibus e se não era funcionária é louca, consideraram, ainda que não tivesse registro – mas isto era de menos.
O pedido insistente do telefone que ela precisa para falar com o marido vai sendo adiado
infinitamente. Ela suplica, tenta fugir, fica horrorizada com o que vê e o que sente, se rebela – e estes são "indícios de loucura". Logo Maria
recebe uma inscrição com número de série, qualificação e um diagnóstico: "agitada". Pronto, ela está rotulada. Tenta fugir, recebe injeção de
terebintina nas pernas, para que a inflamação não permita a locomoção. Fica ensangüentada ao se atirar contra uma vidraça, é amarrada.
O marido finalmente a descobre no hospício, ela lhe telefona quanto tem acesso ao aparelho, o que consegue após
seduzir a guarda da noite, Herculina, em troca do telefonema. O marido, então, conversa com o diretor - mas este descreve a gravidade do caso
de Maria e lhe convence da necessidade de contê-la ali. E o mago Saturnino acredita na autoridade médica, que tem poder absoluto, credibilidade
inquestionável: "Puxa, era ela temperamental, mas chegou a isso!". Ela se desespera ao ver que o marido também fora capturado pelo sistema e
incorpora a loucura, reage aos gritos. Está "louca", finalmente.
Esta é uma loucura produzida socialmente, construída parte por parte, detalhe por detalhe, desde a
carona no ônibus na estrada. A perda de autonomia decorre dessa série de eventos casuais, em que o "louco" se torna um sub jectum, um
sujeito, aquele que subjaz as ações, às enunciações do discurso. A doença mental se instala quando a marca lhe foi aplicada, suas manifestações
passam a ser "sintomas" e não expressões, é incapaz de decidir o seu destino sobre o que faz ou para onde vai, se torna um fantoche nas mãos do
médico.
Essa condição justifica sua internação, os remédios, eletrochoques, sua tutela gerida pelo poder/saber
do médico psiquiatra. Quantos casos semelhantes existiram? A recusa desse poder médico em decidir sobre o destino das pessoas é uma obediência
ética. É a vanguarda da psiquiatria e do bom-senso que dizem isso.
"Nós, os psiquiatras, estamos abdicando de todo o poder que nos foi conferido, em busca da
integração com todas as áreas. Estamos ao lado dos oprimidos e não do opressor".
(Psiquiatra Domingos Stamato, A Tribuna, em 15 de junho de 1980). |