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MAIO, 1982: 7 ANOS ANTES, O AUTOR
DENUNCIAVA O ANCHIETA NO JORNAL UNIVERSITÁRIO
Por uma dessas coisas que só destino pode explicar, foi no jornal-laboratório da Faculdade de
Comunicação da Unisantos, que, 7 anos antes da intervenção municipal na Casa de Saúde Anchieta, em maio de 1989, também em
um maio - de 1982 -, que este autor fez uma matéria-denúncia sobre a tragédia da "Casa dos Horrores", existente, então, há 31 anos, no texto
que reproduzimos.
Eu, que me sinto enjoado e indignado contra o sofrimento, depois de ter acumulado e atuado contra as
brutalidades e injustiças sociais, estudando jornalismo no propósito de uma ação de transformação social, minha oportunidade desse furo
jornalístico se dava com o episódio ocorrido com uma pessoa próxima, filho de uma amiga da mãe deste autor – vítima da barbárie do Anchieta.
Internado ali por problemas com drogas, quase foi levado à morte por torturas e
maus-tratos que recebeu. Conseguiu sair e relatar para os de fora: poderia ter sido mais uma vítima da "Casa dos Horrores".
Mas sobreviveu. Hoje, quinze anos após a intervenção no Anchieta, vinte e dois anos após o episódio em
que denunciei a instituição no jornal universitário 7 anos antes, cinqüenta e três anos depois da fundação da Casa de Saúde Anchieta, chega a
oportunidade de, outra vez, escrever sobre o tema – em outro tom e em outra época.
Esta é uma história que fala de uma sombra, uma chaga e uma ameaça à cidade libertária - e
reporta os que chegaram para trazer humanidade à cidade, devolvendo os dizeres à seu brasão: à pátria ensinei a caridade e a liberdade.
"Patriam charitatem libertatem docui": a liberdade é fruto de ti. Desta feita,
historiamos a revolucionária intervenção municipal - que promoveria uma ruptura nesta trágica história, através da modificação radical das
terapias existentes no país, considerando que ali estavam seres humanos. A oportunidade de contar este episódio tem o significado de desforra
contra os que marginalizam, maltratam e matam seres humanos, em uma sociedade discriminatória e cruel, que em ações como esta começamos a reverter.
Nosso personagem, real, quase perdeu a perna, que por pouco não teve que ser
amputada. Denominada "Cura ou loucura", a reportagem deste iniciante jornalista, que escolhera a profissão como especialização em denúncias
sociais, traça a história vivida pelo jovem de 20 anos na sua curta estada no Anchieta, como conta, "...um testamento vivo do tratamento dispensado
aos pacientes com problemas mentais no país". Voltamos ao tema, vamos ao texto de 22 anos atrás:
CURA OU LOUCURA?
O relato do jovem C.E.T.G., de 20 anos, sobre sua curta
estada no Hospital Psiquiátrico Anchieta, é um testamento vivo dispensado aos pacientes de problemas mentais no país. E esse exemplo fica aqui bem
pertinho de nós, nos fundos da Beneficência Portuguesa, onde se localiza o Hospital. C.E.T.G. foi internado pela mãe no dia 20 de abril, depois de
chegar em casa sob os efeitos do Optalidon – um estimulante proibido, mas facilmente conseguido nas farmácias. O estado eufórico é seguido de um
estado agressivo e violento, o "revertério", que sua mãe já conhecia de outras passagens.
Hoje, junto com a mãe, ele descreve o "pavoroso" ambiente
que encontrou – graças ao qual foi obrigado a andar nu, viu os funcionários tratarem brutalmente os demais doentes – "dos abandonados" e foi sem
causa aparente trancafiado em uma "cela forte". Lá sofreu uma queda "na verdadeira cela de presídio que é" e infeccionou o joelho. Com dores e
febre, ficou por uma semana implorando cuidados dos médicos, sem que lhe dessem ouvidos.
No dia 1º de maio, como seu estado piorasse, os enfermeiros
pararam de responder "só amanhã" e avisaram sua mãe. Correndo para buscá-lo, ela internou-o às pressas no Pronto Socorro de Fraturas São Lucas, onde
ficou. De acordo com o médico que o recebeu, se demorasse algum tempo mais teria a perna amputada. Foi um método ingrato de me fazer voltar à
realidade", confessa C.E.T.G. "Não aconselho ninguém a passar o que passei. Agora quero mais é saúde, depois desse tratamento de choque".
José Paulo de Oliveira Matos
Era o exercício da denúncia no jornal da escola. Sete anos passariam até o mesmo maio da intervenção.
Vinte e dois anos depois, instituímos Maio como o Mês da Saúde Mental em Santos, pelo exemplo que deu ao país e ao mundo no setor este ato
humanitário, tema sobre o qual discorremos.
Entre estas datas, uma ocorrida há uma década e meia, fazia
história, obra da vontade política de uma personagem oriunda das lutas sociais e que ocupava o cargo de prefeita em 1989: era a intervenção
municipal no Anchieta, "em defesa da dignidade humana", como dizia a faixa fixada na porta do prédio da rua São Paulo, detrás do
Hospital Beneficência Portuguesa, em frente ao seu necrotério.
Em 1982, a Casa de Saúde Anchieta era o mesmo campo de concentração de 1989, no meio da cidade, em
fins do século XX. Existia há 31 anos - e se espalhavam tenebrosos sussurros sobre o que ocorria por trás de suas paredes. A intervenção
humanitária, interrompendo a brutalidade exercida há 4 décadas, desde 1951, foi um dos primeiros atos de gestão da Administração Democrática Popular
liderada pela prefeita Telma Sandra Augusto de Souza – a 120 dias de sua gestão, o primeiro dos atos que repercutiram nacional e internacionalmente.
Neste trabalho, pois, retomamos a denúncia e cumprimos a tarefa de narrar sua extinção.
Ao mesmo tempo, 7 anos antes, um então aluno de Medicina, Sérgio Zanetta, no estágio de psiquiatria,
visitava o Anchieta com seu professor – ninguém menos que Edmundo Maia -, quando não aceitou aquela realidade e teve com ele "uma pequena
diferença", diz. Mas 7 anos depois, ele contribuiria para exaurir aquilo que recusara aceitar como aula.
Antes, em 1980, em junho, se realizava em Santos o I Seminário de Saúde Mental da Baixada Santista. A
conclusão é que "os maiores loucos são aqueles que estão no poder", conforme a ampla matéria de duas páginas do jornal A Tribuna, assinada
pelo jornalista Lane Valiengo, em 15 de junho de 1980. Nascia organizada a ação libertária da anti-psiquiatria, que iria frutificar. |