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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - HOSPITAIS - BIBLIOTECA
Hospital Anchieta (4-f12)

 

Clique na imagem para voltar ao índice do livroEste hospital santista foi o centro de um importante debate psiquiátrico, entre os que defendem a internação dos doentes mentais e os favoráveis à ressocialização dos mesmos, que travaram a chamada luta antimanicomial. Desse debate resultou uma intervenção pioneira no setor, acompanhada por especialistas de todo o mundo.

Um livro de 175 páginas contando essa história (com arte-final de Nicholas Vannuchi, e impresso na Cegraf Gráfica e Editora Ltda.-ME) foi lançado em 2004 pelo jornalista e historiador Paulo Matos, que em 13 de outubro de 2009 autorizou Novo Milênio a transcrevê-lo integralmente, a partir de seus originais digitados:

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Na Santos de Telma, a vitória dos mentaleiros

ANCHIETA, 15 ANOS (1989-2004)

A quarta revolução mundial da Psiquiatria

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O ANCHIETA E SEUS ELETROCHOQUES: ALTA VOLTAGEM

 

"Eletrochoque? Só para assar frango" (psiquiatra Suzana Robortela).

 

Eletrochoque no câncer: Alemanha, anos 40? Não, era Santos

 

Uma adolescente chega ao Anchieta chorando, porque havia brigado com os pais. E foi diagnosticada como louca rapidamente pelo médico, eletrochoque nela. A tia de uma depoente, que fora internada no Anchieta pelos gritos espantosos que dava, tomou doses cavalares de "medicamentos". E muito choque elétrico, que transformam a paciente em doente mental. Depois, descobriram que ela tinha câncer avançado e esta era a razão dos gritos. Mas já era tarde. Estagiários depõem sobre os conflitos com os médicos em função dos diagnósticos feitos em cinco minutos.

 

"Era gangsterismo mesmo", escreve a reportagem de A Tribuna em 1980. Nessa época, falam de peruas Kombi recolhendo pessoas nas ruas e jogando no Anchieta, com o tratamento conhecido. Alemanha, anos 40? Não, era Santos. Existem relatos (A caminhada da luta antimanicomial em Santos, capítulo XXX) da aplicação de eletrochoques e celas fortes para quem fosse pego cantando no Anchieta. Eram aplicados 4 ou 5 eletrochoques por dia, sem anestesia, segundo a descrição de quem aplicava esse tratamento descoberto com excelente amansador de porcos para o abate. O que os porcos achavam dele nunca foi perguntado.

 

Dona Elza, hoje com 69 anos e morando na rua Liberdade, é ex-funcionária e trabalhou no Anchieta durante 8 anos, isso há mais de 30, tendo ajudado a aplicar centenas de eletrochoques. "Os médicos que aplicavam os eletrochoques eram o Dr. Wilson Cortes, o Dr. Sebastião, o Dr. Aníbal e o Dr. Orlando Vaz", conta. "Eu ajudava a agarrar as pessoas e elas ficavam se batendo, depois saiam desacordadas, só voltavam depois de 15 ou 30 minutos", diz. "Paguei todos os meus pecados".

 

Tratando gente como porcos

 

Adelma Matos, esposa deste autor, quando criança viveu em uma fazenda em que, às vezes, se matavam porcos. "Nestes dias – diz – eu saia de casa, tamanho é o escândalo que o animal faz. Eles sentem que vão ser mortos e é um sofrimento pegá-los. Fortes e violentos, mordem e se debatem, desesperados. Guincham alto, terrível e angustiante, tristes. O som vai longe. Para eliminar o problema, inventaram o eletrochoque, tratando gente como porcos". Como eles acalmavam, resolveram aplicá-los em pessoas humanas, desconsiderando seus efeitos de médio e longo prazo, danos permanentes. É evidente o direito das vítimas dos eletrochoques à indenização. É a única terapia dos anos 30 que subsistiu até hoje.

 

Imagine-se amarrado e submetido a choques elétricos. Isto era possível em Santos, bastava uma vontade, podia ser qualquer "otoridade" – um PM, policial civil e até mesmo um Guarda Noturno. Era mandar o cidadão para o Anchieta e em alguns minutos ele estava catalogado – louco! -, e nunca mais iria se livrar dessa marca. Em 1989, há quinze anos, existia um hospício - asilo, um manicômio, um hospital psiquiátrico -, na área central de Santos, que desrespeitava a dignidade e os direitos humanos dos pacientes. Quase 600 deles eram submetidos à fome, jogados pelo chão e sujeitos ao frio, aos maus-tratos, à ausência de qualquer higiene, camas ou móveis, aos eletrochoques, às doenças, de uma simples sarna até as mais graves, hipertensão, diabetes, diarréias, piolhos. Era uma ameaça para qualquer pessoa, daqui ou de fora, que fosse cair lá.

 

E foram muitos os casos, por motivos diversos: bastava ser "diferente", às vezes nem tanto, uma bebedeira e pronto. Até estrangeiros, por não serem compreendidos na sua linguagem, acabaram internados. Para cada interno, uma fatura SUS, quanto mais gente melhor. Pessoas com câncer terminal sendo internadas como doentes mentais e tratadas com choques elétricos. Bêbados internados como loucos, eletrochoques para todos. Foi nessa instituição, uma fábrica de malucos, que a Prefeitura interveio em 1989, episódio que foi reportado em milhares de notícias e trabalhos universitários na cidade, no Estado, no país e no mundo.

 

Segundo o psicólogo Rivaldo Leão, o eletrochoque tem indicação certa e específica para depressão, em caso de não reação em outros tratamentos, aplicada para que o paciente não chegue ao suicídio. Destaque-se que esta terapia tem restrições de cada vez mais amplos setores. Após análise médica, oferece-se a sedação (narcose ou adormecimento) e imobilização – jamais se aplicando o tratamento em casos paranóides (psicoses).

 

Isto era um mero princípio acadêmico no antigo Anchieta, pois diagnosticado pelo guarda ou delegado, ou mesmo levado por um paciente ou vizinho, alcoolizado ou drogado, o paciente era imediatamente levado para o eletrochoque. Ou em caso de rebeldia contra a fome, o frio, a absoluta ausência de condições de vida daquele calabouço medieval.

 

O receituário para a aplicação de eletrochoques, mesmo de psiquiatras que ainda defendem a utilização desde sistema, nunca foi obedecido em qualquer um de seus itens no Anchieta, onde os médicos os ignoravam solenemente e os impunham como punição a rebeldia. Foi descoberto em 1938 por Ugo Cerletti e Lucio Bini, que criaram a convulsoterapia elétrica. A terapia convulsiva havia sido criada por Ladislau Von Meduna, em 1934.

 

Altas voltagens nas têmporas

 

Foram descargas elétricas de 180 a 460 volts nas têmporas, provocando a convulsão desejada, como as que sobreviveu Carrano (21 descargas), o autor do livro que deu origem ao filme O bicho de 7 cabeças. Carrano estava denunciando os manicômios e editou manifesto pedindo a proibição dos eletrochoques. Segundo o psiquiatra James C. Coleman, autor do livro A psicologia do anormal e a vida contemporânea, a corrente americana estabelece os limites entre 70 a 130 volts.

 

Henry Ey, da corrente francesa, em seu livro Manual de Psiquiatria estabelece os limites entre 100 a 200 volts, em aplicações que atualmente são 4 a 6, dadas no hemisfério não-dominante, ou seja, do lado oposto ao que o paciente tem o comando das ações – de é destro do lado esquerdo, se é canhoto do lado direito – embora no Anchieta, segundo depoimentos, isto nunca tenha sido seguido.

 

O Dr. Rubens Pitliuk, especializado na Suíça e Alemanha, psiquiatra de diversos consulados, defende o uso do ECT. Antes, porém – indispensável – jejum e analgésico. E esclarece as medidas anteriores indispensáveis: exames de sangue, eletrocardiograma, tomografia computadorizada de crânio, raio X do tórax, fundo de olho e avaliação dentária.

 

Mas lá no Anchieta isso era luxo, não era assim – aliás, não faziam exame nenhum. Alguns remédios devem ser suspensos, outros discutidos com o médico. Brincadeira: há casos que entraram direto pro eletrochoque. Referido como "um tratamento controverso e polêmico", o ECT produz uma ampla variedade de efeitos sobre o sistema neurofisiológico, neurotransmissor e no eixo neuroendócrino. No início de sua aplicação, nos anos 30, morriam um em cada mil vítimas do eletrochoque.

 

Hoje, há relatos de 4,5 mortes a cada 100 mil séries de aplicações de 10 a 12 ECT. As complicações decorrentes dessa tortura, no início existentes em 40% dos casos - fraturas vertebrais, apnéia, insuficiência circulatória, dano nos dentes, entre outras – hoje são "apenas" raras exceções. Mas tem seus defensores. O militante ecológico Condesmar Fernandes tem um histórico da época em que era militante do movimento estudantil, em 1977, quando foi preso e despejado na clínica de Itapira, o Instituto Américo Bairral, ocasião em que conviveu neste sofrimento, descreve, com um engenheiro ucraniano e uma líder estudantil de nome Mariliza. Em função da natureza do castigo não tem recordações exatas daqueles momentos terríveis.

 

A ciência da convulsão: como chegaram ao eletrochoque

 

A justificativa do Projeto de Lei proibindo os eletrochoques, do deputado estadual do Rio Grande do Sul Marcos Rolim, nos traz importantes informações sobre a evolução da idéia de curar a loucura com convulsões. Em 1786, um médico chamado Roess observou que pacientes mentais melhoravam após a inoculação com vacina contra a varíola. Um estudo de  Renato Sabbatini, que escreveu "A História da Terapia por choque em Psiquiatria", observou que raros eram os casos de esquizofrenia em epiléticos. Essas evidências empíricas foram consolidando a noção de uma provável incompatibilidade entre convulsões e doenças mentais. E se apelou para elas.

 

Entre 1917 e 1935, pelo menos 4 métodos para produzir choque fisiológico foram, então, usados na prática psiquiátrica: a febre induzida por malária, para tratar paresia neurosifilítica, aplicada em Viena por Julius Wagner-Jauregg, em 1917; a coma e convulsões induzidas por insulina, para tratar a esquizofrenia, aplicada em Berlim por Manfred J. Sakel, em 1927; as convulsões induzidas por metrazol, para tratar a esquizofrenia e psicoses afetivas, aplicada em Budapest por Ladislaus von Meduna, em 1934. E terapia por choque  eletroconvulsivo, o eletrochoque, criada em Roma, Itália, por Ugo Cerletti e Lucio Bini, em 1938.

 

A idéia de usar o choque eletroconvulsivo em seres humanos ocorreu-lhe pela primeira vez ao observar porcos sendo anestesiados em eletrochoques, antes de serem abatidos nos matadouros de Roma. Ele, então, convenceu dois colegas – Lúcio Bini e L.B. Kalinowski, a ajudá-lo a desenvolver um método e um equipamento para ministrar breves choques elétricos em seres humanos.

 

O historiador médico David Rothman afirmou, em 1985, que "A terapia por eletrochoque se destaca de forma praticamente solitária entre todas as intervenções médicas e cirúrgicas, no sentido em que seu uso impróprio não tinha a meta de curar, mas sim o de controlar pacientes para o benefício da equipe hospitalar". Com a palavras, às vítimas dos eletrochoques, tratadas como porcos.

 

"O estranho no ninho": a derrota mundial do eletrochoque, nos anos 70

 

Na década de 70, começaram a surgir importantes movimentos contra a psiquiatria institucionalizada na Europa e, particularmente, nos EUA. Juntamente com a psicocirurgia, a terapia por eletrochoque foi denunciada pelos partidários dos Direitos Humanos - e o mais famoso libelo de todos foi um romance escrito em 1962 por Ken Casey, baseado em sua experiência pessoal em um hospital psiquiátrico no Oregon. Intitulado "One Flew Over the Cuckoo’s Nest", o livro foi posteriormente roteirizado em um filme de grande sucesso dirigido pelo tcheco Milos Formam, que recebeu no Brasil o título de "Um Estranho no Ninho", com o ator Jack Nicholson.

 

Uma exposição desfavorável na imprensa e na TV desembocaram em uma série de processos jurídicos por parte de pacientes envolvidos em abusos da terapia por eletrochoque. Em meados de 1970, a terapia por eletrochoque estava derrotada como prática terapêutica. Em seu lugar, os psiquiatras passaram a fazer um uso cada vez maior de novas drogas poderosas, tais como a Torazina e outros fármacos antidepressivos e antipsicóticos. Mas aqui se continuava a aplicá-lo – e no país até hoje.