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O LIVRO - GHANDI E A COMEMORAÇÃO
"Primeiro eles o ignoram, depois o ridicularizam, em seguida o combatem
e, ao fim, você vence" (Mahatma Gandhi)
Trabalho histórico que reporta a concretização, pela primeira vez, de
teses mundialmente debatidas desde os anos 40, este livro-registro da epopéia do Anchieta foi iniciado em 1993, encomendado a este autor por um dos
idealizadores da ação, o então prefeito David Capistrano Filho.
Mas interrompido em sua elaboração há dez anos, foi retomado e
concluído neste 2004 – mergulhando nos quinze anos do que foi a profunda transformação e extinção do hospício - um dos pilares fundamentais da
estrutura de opressão e exploração em que se assenta a sociedade capitalista, produtora dos desajustes trancados e torturados nestes manicômios.
Derrubá-lo, pois, aqui e no país, foi tarefa heróica que legitimou uma proposta política e humanitária, uma tarefa de importância e repercussão
mundial, que registramos.
No objetivo de traduzir para um público mais amplo a questão da
batalha antimanicomial, a partir de um marco significativo que foi o Anchieta, contamos essa história em um livro-reportagem antes e a partir do
reconhecimento mundial desta revolução mundial da psiquiatria, da coragem política que o fez possível - ao revés das políticas públicas aplicadas.
Fizemos pesquisas primárias e secundárias, entrevistas,
pesquisas, coletamos depoimentos que trazem uma história completa da caminhada da psiquiatria no mundo, no Brasil e em Santos, espaço em que a
história narrada é inédita – trazendo informações publicadas na imprensa local, nacional e mundial, também depoimentos inéditos de gente que viu de
perto a barbárie. Como exemplo, um funcionário que ajudou a segurar as vítimas de centenas de eletrochoques sem anestesia – 30 por semana, em 8 anos
que esteve lá, como que acalmando porcos para o abate.
Trazemos os fatos recentes relativos às ações do Ministério da Saúde
no setor, atualmente com suas inspeções aos hospitais psiquiátricos, uma ação determinada a partir dos fatos de Santos. Na narração das reportagens
da imprensa dia a dia e ano a ano, de 1989 a 2004, detalhamos os enfrentamentos, discussões e as questões que povoaram estes 15 anos sobre o
Anchieta e a intervenção que o modificou, extinguindo-o.
Na abertura, trazemos o documento maior da luta antimanicomial – a
Carta do filósofo Antonin Artaud - e dizemos de seu sentido, da ditadura da psiquiatria sobre os seres humanos, na lenda do poder e saber que o
"filósofo da suspeita", Michel Foucault, lançou contestação.
Mostramos o sentido lato dessa ditadura, fundamental, de segregar os
excluídos na estratégia do sistema capitalista de produção. Falamos, neste livro, da história da cidade, trazendo fatos e análises que revelam nossa
origem revolucionária e inovadora, contestadora do modelo colonizador. E a história do Padre Anchieta, que deu o nome ao manicômio, nas raízes
locais e denominativas do núcleo analisado e do sentido dessa incursão religiosa no processo de dominação territorial.
E pensamos antes: a partir da descrição de um fato ocorrido no
Anchieta em 1982, que foi objeto de um artigo deste jornalista no jornal da faculdade de Comunicação da Universidade Católica de Santos, à época
Mantenedora São Leopoldo - em que eu estudava -, adentramos ao tema e colocamos os parâmetros legais e constitucionais da intervenção, relacionando
os exemplos da literatura sobre o tema e traçando paralelos.
Narramos também a visão da experiência a partir dos jornalistas que atuaram na cobertura do episódio,
assim como as contradições dos antigos métodos expostos na crítica de um de seus maiores representantes: Phillipe Pinel, Benjamim Rush, Franco da
Rocha e Edmundo Maia, um dos antigos donos do Anchieta, seu teórico, estão expostos às luzes de hoje. A fundamentação teórica das internações
contada nos métodos de internação e tratamento da psiquiatria institucional autoritária - dá as bases para as ações que, antecedentes a eles, se
sucederiam justificadas.
Discorremos, também sobre a estrutura legal da novel Carta Maior de 1988, que
possibilitou a intervenção municipal, assim como oferecemos a feição jurídica do tratamento legal aos internos dos hospícios – assim como a
reivindicação de indenização aos seus torturados.
Contamos a trajetória do grupo que geriu a intervenção e dos profissionais que atuaram em sua
prática, descrevendo seu conteúdo e o caráter inovador da gestão municipal que a praticou, liderada pela recém-eleita prefeita Telma de Souza,
desfazendo a cultura manicomial e aproximando os pacientes da sociedade, com atividades lúdicas, de reaproximação familiar e reintegração social, de
reingresso no trabalho e atendimento ambulatorial. A repercussão no jornal local da ação interventora da Prefeitura, exercendo o poder para garantir
a liberdade – um marco diferencial no histórico das ações da psiquiatria mundial -, no dia-a-dia dos primeiros dias desde daquele 3 de maio,
estão em nosso livro.
A dissolução do manicômio, descentralizado nos NAPS – os Núcleos de Atendimento Psicossocial, as
estratégias para transformar as "enfermarias geográficas" internas em NAPS externos, tudo isto está presente nesta reportagem. O diretor teatral
Renato Di Renzo e sua atuação no episódio, suas origens e ações envolvendo em programas culturais os pacientes, como terapias de ressocialização e a
atitude ideológica presente nesse ato. Assim como a memória do quadro existente em Santos -, estão neste trabalho, como elemento essencial, base do
redimensionamento das práticas na área da Saúde Mental.
Foram seminários, debates, publicações, programas de rádio e TV, eventos em geral,
ressocializantes. Suas raízes, no restabelecimento da linguagem grupal e coletiva, estão colocadas e analisadas. Di Renzo vivenciou a ocupação nos
seus maiores atos e desde seus primeiros dias, tendo encontrado diversos objetos que guardou, como um livro-base do pensamento anchieteano e
uma misteriosa caixa com lâmpadas amarelas dentro com abertura para encaixe no pescoço. Para que serviria?
A descrição do quadro encontrado, seus números e o cenário da Saúde Mental brasileira estão presentes,
a história dessa caminhada no país, trazendo como contribuição o manifesto de Austregésilo Carrano Bueno, uma vítima do sistema e expressão
nacional do Movimento, que atribui seu renascimento a Santos.
Na segunda parte do livro, contamos a conjuntura anterior e as raízes ideológicas da atitude
inovadora, além de comentários da lei nacional que se seguiria uma dúzia de anos depois da intervenção municipal no Anchieta, de autoria do deputado
do PT, Paulo Delgado, modificando cenário da Saúde Mental no Brasil, integram este trabalho – junto com a análise da questão jurídica do portador
de transtornos mentais.
A apresentação recente ao Congresso Nacional do Projeto de Lei do Governo Lula "A volta para casa",
garantindo financeiramente o retorno às famílias e à cura dos pacientes internos nos hospitais psiquiátricos do país, neste início de 2004, era a
confirmação da correção das políticas realizadas quinze anos antes aqui, que eliminou a segregação dos pacientes. A caminhada da luta pela
libertação dos pacientes de Saúde Mental em Santos e no Brasil, seus fatos e sua teoria, fazem parte obrigatória, oferecendo o panorama e o
significado desta etapa. Além do histórico da breve caminhada da psiquiatria no mundo, os antecedentes necessários.
Presente o acontecimento da Lei do vereador santista do PT Ademir Pestana, criando, no registro deste
ato da intervenção que fez quinze anos em 2004, o mês de maio como o Mês da Saúde Mental em Santos. Maio é o mês do Dia Mundial da luta contra os
manicômios, é o mês da fundação do mais famoso dos hospitais psiquiátricos brasileiros, o Juquery - e também por ser o mês da intervenção no
Anchieta, que deu exemplos para o Brasil dos procedimentos no setor, até então carentes de humanidade e solidariedade. A psiquiatra Nise da
Silveira, na raiz destes procedimentos, descrevendo seu trabalho, forma a origem dessa ciência de resgate dos direitos sociais das pessoas
com problemas de transtorno mental e que caíram no sistema do qual difícil era sair. Contamos sobre ela.
Dizemos sobre uma estrutura garantidora da não-intervenção
autoritária sobre as mentes humanas, recordando tempos recentes destas ações contra as quais se rebelou a psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999) no
início do século e todo o movimento da nova psiquiatria que se seguiu. Falamos de Bira, o artista do Juquery, com todo o potencial de expressão
artística presente nestes pacientes, a quem Nise chamava de "clientes" e que fez ela fundar, em 1926, o "Museu do Inconsciente".
A "loucura brasileira" e as matizes do sistema econômico que provocam
os transtornos mentais, o taylorismo, a alienação do trabalho, está descrita. Escrevemos também sobre a vitória da luta antimanicomial no
processo movido contra o livro de Carrano – que deu um filme, o mais premiado do país -, empurrando as decisões institucionais que se
produziram.
A questão da eugenia e a visão ideológica de que o ser humano pode
ser aperfeiçoado por ações determinadas, suas origens nos Estados Unidos e posterior aproveitamento pelos nazistas, são comentadas -
ilustrando as ocorrências no Anchieta, que reproduziram essas visões. Contamos sobre Pinel, as novas teorias da psiquiatria, ao seu tempo, o da
Revolução Francesa, sob a ótica do positivismo, na síntese da extensa caminhada da psiquiatria no mundo, caminhando para as novas políticas
introduzidas no Brasil a partir da Santos.
O significado do psiquiatra americano Benjamim Rush e de seus
similares nacionais, destes herdeiros da tradição opressiva que vem dos psiquiatras do iluminismo caudatários da Inquisição, é vital para
entendimento do processo histórico. Como de Rush falamos dos antecessores e sucessores de práticas desumanas da psiquiatria e tradutoras de um
modelo coercitivo. Todos eles, em seus momentos históricos, foram contraditoriamente inovadores, porém cristalizaram suas hipóteses e impuseram seus
dogmas ao processo. Revelando as raízes da realidade de Anchieta que encontramos e revertemos.
A questão do trabalho em excesso e da geração de estados mentais alterados está alinhada na palavra de
especialistas e dizemos das realizações desta gestão municipal em paralelo, no campo da saúde geral, como o Programa de Internação Domiciliar. E das
Policlínicas, integradas por sistema informatizado – realizações que se fizeram aqui pela segunda vez no mundo e pela primeira vez no país,
respectivamente, na perspectiva da otimização da Saúde Mental coletiva. São demonstrativos dessa visão de futuro e estão reportadas. A "República
Anchieta", capítulo desta reportagem, conta o que é o prédio do antigo hospital hoje, com seu aspecto de penitenciária, ocupado e administrado como
residência coletiva. O cinema que fala das crueldades do tratamento da chamada loucura está presente.
A conclusão pergunta "E o que temos a ver com isso?", revelando o quadro da necessária solidariedade
social para reversão do sistema de dominação que enlouquece na opressão, privação e exploração. Em 1961, na Itália, picaretas colocam abaixo os
muros dos hospícios nas teses de Franco Basaglia, proibidos na Itália em 1978, episódio que descrevemos. Santos levou, em maio de 1989, o país
adiante nesse processo humanitário.
Palavras finais: fomos à procura do nosso personagem de 22 anos atrás, 7 antes da intervenção
municipal, sobre o qual escrevemos na abertura. Não o encontramos, mas soubemos dele por parentes, vizinhos e amigos. Estava vivo, ao contrário das
centenas de pacientes que foram aniquilados e assassinados no Anchieta. Era a conclusão necessária. Fica o registro da lição de Gandhi, com a
vitória dos mentaleiros. |