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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - HOSPITAIS - BIBLIOTECA
Hospital Anchieta (4-f05)

 

Clique na imagem para voltar ao índice do livroEste hospital santista foi o centro de um importante debate psiquiátrico, entre os que defendem a internação dos doentes mentais e os favoráveis à ressocialização dos mesmos, que travaram a chamada luta antimanicomial. Desse debate resultou uma intervenção pioneira no setor, acompanhada por especialistas de todo o mundo.

Um livro de 175 páginas contando essa história (com arte-final de Nicholas Vannuchi, e impresso na Cegraf Gráfica e Editora Ltda.-ME) foi lançado em 2004 pelo jornalista e historiador Paulo Matos, que em 13 de outubro de 2009 autorizou Novo Milênio a transcrevê-lo integralmente, a partir de seus originais digitados:

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Na Santos de Telma, a vitória dos mentaleiros

ANCHIETA, 15 ANOS (1989-2004)

A quarta revolução mundial da Psiquiatria

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OS MÉTODOS E A HISTÓRIA - O Brasil que faz o que Santos fez

 

"É loucura, mas há método" (Shakespeare)

 

Não bastassem as denúncias acumuladas, a (má) fama espalhada pela cidade, a divulgação no dia 22 de abril de 1989 de um relatório do SUDS-52, que havia realizado uma inspeção no hospital em março, precipitou os acontecimentos que narramos: denunciava superlotação e falta de pessoal. O relatório avaliava a insuficiência técnica, mas não as condições desumanas de tratamento. A perda de cidadania e de dignidade era o primeiro sintoma visível: era preciso construir (ou melhor, reconstruir) a identidade dos pacientes, delimitar espaços e tempo, enfim, reverter o quadro – humanizá-lo e eliminá-lo.

 

Com quase  600 pacientes em pouco mais de 200 vagas, sem as mínimas condições de dignidade e higiene, brutalizados e reprimidos, a intervenção em 1989  fez com que em 1992 fossem apenas 80 e, logo, nenhum. Ao invés de apenas humanizá-lo, ele foi extinto, apagando seu papel brutal e constrangedor.

 

Ao tempo – 15 anos – necessário para se extinguir o manicômio de Trieste, o exemplo de Santos, aqui foi necessário apenas um terço, 5 anos. Se criou um programa de Saúde Mental alternativo e se apagou esta mancha que perdurava sobre a cidade libertária, contrária ao seu sentido. Era o produto de uma Administração Democrático-Popular, comandada pela prefeita Telma de Souza, do PT, mudando não apenas o manicômio mas a visão histórica e política da sociedade.

 

No Anchieta, a realidade de décadas eram os espancamentos, as "celas fortes" – os "chiqueirinhos" em que se trancafiavam os doentes, locais com dois metros quadrados, sem banheiro ou água, onde os pacientes ficavam trancados por dias a fio, em trágicas condições. Lá se mantinham os eletrochoques, chamados "eletroconvulsoterapia", as "reservas" onde eram colocados os mais violentos, sempre com cerca de cem pacientes nus e jogados pelo chão.

 

Estes "tratamentos" já tinham sido eliminados da maioria dos hospitais psiquiátricos brasileiros, por serem medievais – mas subsistiam aqui. Com os pacientes submetidos à tratamentos inadequados, o lugar se traduzia como um cenário dantesco, onde os mortos surgiam amiúde – 50 em 3 anos -, lugar sujo e violento.

 

O Anchieta era um mero depósito de seres humanos com problemas de transtorno mental, que segundo a Organização Mundial de Saúde, afetam cerca de 400 milhões de pessoas no mundo. Foi e é uma obra necessária esta ação exemplar da intervenção, que contamos.

 

Mas existem, ainda hoje, 55 mil vagas em 244 hospitais psiquiátricos no Brasil, ao que se revelou muitas em condições análogas às do que subsistiam no Anchieta, embora a ação dos órgãos estaduais, do Ministério da Saúde e do coordenador nacional de Saúde Mental, militante antimanicomial Pedro Delgado – e do governo Lula, com o apoio do ministro Humberto Costa, que é psiquiatra -, estejam reduzindo estes números, que já devem estar desatualizados a estas alturas - para menos, felizmente.

 

O militante antimanicomial Austregésilo Carrano Bueno faz referência a existência de 253 manicômios no Brasil em 2001. Segundo ele, a Rede de Trabalho Substitutivo que propõe no país – como a que foi instalada aqui – gasta 50% do valor necessário, atualmente a terceira maior despesa do SUS -  e oferece um serviço sem barbáries.

 

As razões da intervenção

Diziam às crianças "levadas" da cidade: "olha que te ponho no Anchieta". Era uma ameaça, uma imagem de terror, o que havia para as vítimas de transtorno mental, a não ser as celas especializadas do Segundo Distrito, o chiqueirinho. Foi preciso explodir esta Bastilha para garantir direitos. O que se está fazendo hoje em nível federal, de outra maneira que é a troca das vagas em manicômios por bolsas que são trocadas por vagas, que não reabrem, tema sobre o qual discorremos.

 

Existia um medo e um mistério sobre o que se passava ali. Um campo de concentração sobrevivia na área central de Santos, uma cidade historicamente comprometida com a liberdade e os direitos humanos, com as lutas sociais, duramente castigada pela Ditadura Militar. E esta Casa refletia não apenas a última, mas velhas ditaduras e suas torturas... Cercado por altos muros, o Anchieta trancafiava e torturava seus pacientes, seres excluídos, utilizando-se de métodos medievais de tratamento. Era o retrato do panorama da Saúde Mental no país, que em Santos mereceu atenção privilegiada da gestão municipal que se implantava, que a atacou de pronto com repercussão nacional e mundial.

 

Estudos revelaram e confirmaram-se pela pratica o sucesso das "soluções mistas", que para pacientes com depressões menos graves, a psicoterapia se junta com a farmacoterapia, interagindo sinergicamente com a medicação para alcançar resultados. Descentralizando, devolvendo às famílias seus parentes, reintegrando e reassociando, Santos exerceu uma tarefa de Estado que é necessária em nível nacional, para recomposição da nação brasileira e de sua gente em patamares evoluídos de civilidade.

 

A "unidade na ação" de psiquiatras e psicólogos, junto com terapeutas e revolucionários em geral com uma vontade política militante e idealista de todas as áreas, fez possível a transformação. E Santos mas uma vez fez história, o que só é possível na mudança radical dos conceitos e sua operação concreta, anulando a reação de grupos instalados no poder econômico que sucumbem diante de uma nova opção política. Desta feita, os militantes venceram. Agora, estamos fazendo este que é um registro histórico de Santos, nos quinze anos dessa atitude solidária do governo comprometido com as maiorias, de compromissos humanitários.

 

O ato foi comandado por esta que um dia se elegeu prefeita  e que promoveria uma atitude inédita no país, impondo a autoridade popular, delegada pelo povo, para interromper o sofrimento de pessoas humanas. Construindo a lição municipal que guiou as políticas nacionais na área da Saúde Mental, que aqui se escreve com maiúsculas - e que teve também repercussão mundial, exigindo coragem e ousadia. Libertária, esta atitude heróica desenhou os rumos de uma administração pública voltada aos interesses populares, que reverteu as prioridades até então eleitas.

 

A mesma cidade e gestão que pela primeira vez no mundo distribuiu gratuitamente remédios contra a AIDS, entre outras ações inéditas. Como a que aqui escrevemos, na história inédita da luta antimanicomial em Santos, que é a do Brasil: estão presentes seus momentos e personagens, que resgatamos para a nova história que estamos escrevendo. Ensinou aqui e no país, onde se desenvolvem projetos que apontam para extinção dos manicômios e a efetiva proibição das torturas, que permanecem. O que era tese, discussão, debate, aqui virou prática, pela primeira vez no Brasil. Como no pensamento latino:

 

"A Grécia pensou. Roma, pragmaticamente, fez".

Santos fez. O Brasil precisa fazer.