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INTRODUÇÃO
ANCHIETA, UMA HISTÓRIA, QUE PRECISA SER CONTADA –
para nunca mais acontecer
"Criar uma nova cultura não significa fazer, individualmente, descobertas
originais; significa também, e especialmente, difundir criticamente as verdades já descobertas, socializá-las, por assim dizer e, portando,
transformá-la em base de ações vitais, elementos de coordenação e de ordem intelectual e moral"
(Antonio Gramsci – 1891/1938)
Este livro é uma história de Santos, contada através de um de seus principais momentos de expressão
libertária, de construção democrática e popular em defesa da vida. Esse foi o trabalho executado na extinção do manicômio santista – a Casa de Saúde
Anchieta -, a partir de maio de 1989, a primeira das grandes ações do governo municipal da prefeita Telma de Souza. Que não o fez sozinha, mas
assumiu com coragem esse enfrentamento heróico.
Foi em Santos que renasceu a luta contra a barbárie dos hospícios no país e é justo que saísse daqui o
documento dessa batalha humanitária, narrando uma ação exemplar que irradiou seu sentido para as demais ações desta gestão e para o país e o mundo.
Que cuidou da Saúde Mental não apenas de uma maneira acadêmica – mas humanitária, no cumprimento do dever - interrompendo a continuidade de um
centro de torturas no coração da cidade às portas do século XXI, cuja descrição sugere ser ficcional. Tarefas executadas como outras que ampliaram a
participação popular e os serviços sociais, criando uma rede que seria apenas administrada pelos governos que viriam, plantando o futuro.
Esta ação vem se juntar a uma tradição de mais de cinco séculos, desde a comunidade livre do bacharel,
uma experiência de organização social independente dos colonizadores, neste espaço geográfico litoral nas terras conquistadas no século XVI. Cidade
conhecida por sua ousadia e rebeldia inovadora, das lutas operárias intensas e de crimes outros como o "Raul Soares", menos de três meses depois da
vitória da sensibilidade e da inteligência contra a violência - a intervenção na "Casa dos Horrores", em 3 de maio de 1989 -, a 21 de agosto
partiria para sempre o "Maluco Beleza", como chamavam o cantor e compositor Raul Seixas. Era ele que misturava lucidez com "maluquez" e
oferecia a sociedade alternativa ("viva, viva, viva"): "Enquanto você se esforça pra ser um sujeito normal, em fazer tudo igual...". Era um
"louco" por opção.
Raul, assim como Paulo Coelho, já estivera em um manicômio (do Edmundo Maia, antigo diretor do
Anchieta, só que em Taboão da Serra, região metropolitana de São Paulo). Uma clínica bem diferente daqui, para ricos, artistas, terapias e
homeopatias, big chic. "Raulzito" foi fundo musical genial deste ato santista e mundial, transmitido pela rádio Tam-Tam, a voz dos libertos
do Anchieta, cantado a toda hora por mentaleiros e pacientes nas festas intensas que se realizaram na então feliz cidade de Telma. Uma atitude
gerada a partir da unidade de um grupo de sobreviventes de 1968, do espírito heróico dos que tombaram na luta do "Abaixo a Ditadura" que escrevíamos
nas paredes e nos enfrentamentos armados que vieram depois – um grito que se projetava sobre a Santos Libertária.
Vale a pena ouvir junto à leitura: "Quem não tem colírio usa óculos escuros, quem não tem filé come
pão e osso duro, quem não tem visão bate a cara contra o muro". E foi o que fizeram os primatas da psiquiatria, reveladas as tragédias do
Anchieta, nas soluções que se espraiaram pelo mundo a partir de nossas praias. A tradição da reclusão e do isolamento vinha desde séculos, mil anos.
Foi o que fizeram com os leprosos na Idade Média repetiram com os miseráveis, os vagabundos, os chamados "loucos" e delinqüentes, excluindo-os para
"purificar" a sociedade, como se fosse possível.
A moderna psiquiatria escreve que mesmo que considerados "psiquiatricamente comprometidos" pela
ciência acadêmica vigente, os chamados "loucos", podem viver num clima de liberdade e autonomia e consideração mútua, bastando que se lhes respeite
a condição de seres humanos. Não se trata de tingir a loucura com cores românticas: sem dúvida, são pessoas que viveram experiências difíceis,
doloridas, dilacerantes, que na maior parte das vezes não encontram uma alocação possível na esfera gregária do sujeito e que resistem as formas de
comunicação pelos códigos partilhados. Mas nem por isso essas pessoas são menos humanas, menos passíveis de reconhecimento e de solidariedade.
No Anchieta não era assim, pessoas humanas eram massacradas e violentadas – e essa "propriedade" fazia
parte do establishment da cidade, afinal posse de um consagrado professor da faculdade de Medicina local, uma das melhores do país. Portanto,
foi preciso coragem e vontade política para intervir e extinguir a "Casa dos Horrores" construindo novos paradigmas para a Saúde Mental a partir da
desconstituição deste "saber" que fazia sofrer e irradiava sua desgraça para toda a cidade. A intervenção foi uma obra mundial de uma cidade capaz
sempre de produzir fenômenos políticos e sociais, desde fazer o homem voar até o país independente com o Bonifácio santista, também o de libertar a
vida presa no hospício.
O Anchieta – esse era o nome desta terrível casa "de saúde", foi fundado em 1951 e tinha, então,
quase 40 anos. Quase nada se sabia do que se passava atrás de seus muros, que atravessou uma ditadura (1964-1985). As histórias que corriam sobre o
hospício eram tenebrosas, centenas – milhares – de pessoas torturadas. Mas eles, os internos, "eram loucos". E não importava muito o que se
passava ali e nem se discutia se aquelas pessoas podiam ou não ser recuperadas e superar aquela condição. Ficavam "depositadas" e sem
esperanças, maltratadas e subjugadas. Falava mais alto o preconceito que negava a existência do que estava a vista de todos.
Depoimentos de funcionários antigos, que trazemos, mostram que a situação sempre foi igual ou pior a
dos tempos em que Telma deu um basta à tortura e à violência fascista. Há quase 40 anos era esse modelo, aqui. Se bem que essa realidade não era
apenas local ou recente e sim mundial e antiga, secular, era preciso mudar isso, a partir de algum lugar do mundo – e foi daqui que partiu o grito
maior de libertação, de um movimento que renascia a partir daqui para país há mais de 30 anos. Lá no Anchieta não se recuperava ninguém, ao
contrário, fabricavam-se loucos, inutilizavam-se seres, marginalizavam-se pessoas humanas, se aniquilava e matava a vida e o futuro de gente como a
gente. Era um campo de concentração em que existia fome, tortura, maus-tratos, mortes, algo inacreditável neste então final do século XX.
Apesar disso, foi gigantesca a oposição ao ato de intervenção por parte dos setores
dominantes da cidade, com suas ações judiciais e sua voz através da imprensa. Afinal, era uma "propriedade privada", sagrada. Mas até mesmo
eles, ao longo do tempo, mudariam de opinião, em função dos resultados positivos alcançados. Os loucos "desapareceram", tratados em núcleos de uma
rede construída. Sorte de Santos, que deu um exemplo de solidariedade humana, que, no governo municipal que assumiu em 1989, com a prefeita Telma,
chamou para si a responsabilidade de transformar uma sociedade de excluídos, disseminando solidariedade e a visão do outro, compreendendo os
diferentes. E seu primeiro e maior ato foi impedir a continuidade da violência no Anchieta, por tanto tempo admitida e escondida.
"Fizemos a intervenção porque como Poder Público, que tem
que zelar pela cidadania e dignidade – e não ser apêndice de interesses privados –, não podíamos fechar os olhos para o que estava acontecendo
dentro dos macabros muros do hospício. Aliás, foi o que muitos fizeram sendo cúmplices e coniventes destas barbaridades"
(prefeita Telma, 20 de abril de 1992, jornal Diário do Litoral). |