A ocupação dos morros de Santos, por famílias de
baixa renda, é considerada viável pelos técnicos do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Em estudo encomendado pela Prefeitura, em 1978, os
técnicos dizem que os morros têm capacidade para receber mais 87 mil habitantes, além da população que lá se fixou. Mas a ocupação começa a ser
feita por famílias mais abastadas, que buscam melhor qualidade de vida e que de certa forma iniciaram um processo de elitização dos morros. O fato
foi motivo de alerta do IPT, no mesmo documento. Mas, conforme diz o padre do Morro de Nova Cintra, a invasão é inevitável, e já começou. E uma das
poucas áreas verdes de Santos corre perigo de extinção.
No alto do morro, a área da mansão, junto aos barracos...
Foto: Rafael Herrera, publicada com a matéria
Elitização dos morros é um perigo constante
Álvaro de Carvalho Júnior e José Carlos Silvares
Há cerca de dois anos, num amplo documento entregue à
Prefeitura, técnicos do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT) informavam que os morros de Santos e São Vicente eram
alternativa viável para ocupação por pessoas de baixa renda. Mas a situação inverteu-se: cada vez mais, os morros estão se elitizando. Primeiro, o
Morro e Santa Terezinha, no José Menino; agora, o Morro de Nova Cintra, onde já existe um loteamento particular.
No documento do IPT, os técnicos dizem que a ocupação dos morros por famílias humildes
molda-se como alternativa, em relação aos altos preços da habitação vigentes na Baixada. Mais que isso: informam que os morros de Santos e São
Vicente (estes, fronteiros) têm condições e absorver população de cerca de 117 mil habitantes; ou seja, podem ganhar mais de 87 mil habitantes, além
dos 30 mil já existentes, conforme estimativas de 1976.
Este fato revela os morros como grande opção para o desenvolvimento urbano de Santos
(e também de São Vicente). Os técnicos justificam o acréscimo, tendo em vista a liberação, pelo IPT, de 54,2% da área total dos morros (estimada em
oito quilômetros quadrados), e aplicando, nessa área restante, o adensamento habitacional médio de 260 habitantes por hectare (ou por 10 mil
quilômetros quadrados).
Denúncia, antes - No documento, os técnicos já alertavam quanto ao perigo de as
classes mais abastadas estarem redescobrindo os morros como opção de moradia. "A iniciativa do poder público, de racionalizar a ocupação urbana nos
morros, está condicionada a uma disposição firme em fazer prevalecer os interesses da população sobre as conveniências circunstanciais dos
proprietários de terra e da especulação imobiliária".
E vão além: "As classes mais abastadas estão redescobrindo os morros como opção ideal
de moradia, quando o mito do concreto, do aço e dos arranha-céus é superado pelos apelos ecológicos. Assim, devido às excepcionais condições de
conforto ambiental e localização, os morros tornam-se o alvo natural da sanha dos grandes especuladores imobiliários".
Depois de deixar claro que, nesse tipo de enfoque, os grandes proprietários exercem
pressão sobre a municipalidade, forçando a execução de obras de infra-estrutura por meio de pressões sociais, e valorizando as áreas, os técnicos
concluem: "É preciso deixar claro que não se está colocando problema de ocupação das encostas por classes mais abastadas como algo mal, ou que não
deve ocorrer. Mas é necessária a adoção de medidas para que o poder público não passe a servir apenas a estes interesses, ocorrendo nos morros de
Santos um processo de expulsão e substituição da população existente, aos moldes do que atualmente vem ocorrendo em algumas capitais assoladas pela
febre dos loteamentos ecológicos (grifo original). No caso particular dos morros de Santos e de São Vicente, o custo social desse processo de
substituição de população seria altíssimo, uma vez que a remoção se daria ao preço de uma total perda de identidade e marginalização dessa população
que habita as encostas".
E finalizam: "Tudo isso sem atentar ao irônico desse processo, que se inicia num
momento em que o apartamento de veraneio em Santos, por exemplo (55% das habitações da Cidade), não mais representa um símbolo de status,
encontram-se desocupadas atualmente cerca de 30% destas unidades, e em processo de vacância as outras restantes".
... E aparece o primeiro loteamento "ecológico"
Foto: Rafael Herrera, publicada com a matéria
"A invasão começou"
A especulação imobiliária nos morros começa a preocupar o padre Júlio Llarena, da
Igreja de São João Batista, no alto do Morro da Nova Cintra. Lá, várias placas indicam que um loteamento particular, com o sugestivo nome de Parque
da Montanha, aprovado pela Prefeitura, oferece terrenos com melhorias e com "absoluta preservação ecológica". Padre Júlio, sentado sob frondosa
árvore, coça a cabeça e diz quase sem esperanças: "A invasão começou. Temo pelo futuro dos moradores dos morros".
De fato, a invasão começou. Não com o loteamento particular da Nova Cintra, mas tendo
em vista a escassez de áreas e os altos preços cobrados por elas, na Baixada. E já existe um precedente de ocupação de morro, por classes mais
abastadas, que é o do condomínio fechado do Morro de Santa Terezinha no José Menino. Todos os demais morros de Santos são ocupados, em maior escala,
por gente humilde, que constrói barracos de madeira na primeira área disponível que encontra.
Mas a preocupação, no caso do Morro da Nova Cintra, é a invasão feita de modo
desordenado, descaracterizando o morro. "O pessoal da Baixada sobe o morro e vai destruindo tudo o que é natural. Falta-lhe educação. Mas isso é
normal em pessoas que não amam a Natureza, porque a desconhecem. Estão acostumados a ver concreto por toda a parte e, quando vêm para cá, querem
fazer a mesma coisa".
Padre Júlio não se conforma com algumas construções de gente abastada, que está se
transferido para o morro: "Eles fazem logo uma plataforma. Derrubam árvores, queimam tudo e deixam a área limpa sem nada. Não respeitam a topografia
do morro, derrubam montes, escavam. Por que não se adaptam às condições que encontram aqui? Por que não deixam o morro como está?"
Há vários exemplos de descaracterização da paisagem, principalmente no Morro da Nova
Cintra, onde algumas áreas, próximo à Lagoa da Saudade, estão sendo simplesmente devastadas. Ouras áreas mais esparsas, no mesmo morro, estão dando,
ou darão, lugar a pequenas mansões de gente que até o momento habita casas ou apartamentos na Baixada. É o caso de uma mansão projetada para a Vila
Progresso, a área mais pobre da Nova Cintra, onde 90% dos barracos são habitados por nordestinos vindos em busca de esperança.
O padre Júlio chega ao fundo da questão: teme que os ricos tomem conta dos morros,
causando a expulsão das famílias sem recursos, que encontraram no morro refúgio viável. "Que acontecerá quando a herdeira da grande parte da Nova
Cintra morrer? Por quanto os herdeiros vão vender essas terras, e quem as vai comprar? E depois, quem poderá comprar os terrenos, a não ser os
ricos? Por isso, acho que a ocupação por famílias abastadas será inevitável. E tempo pela expulsão dos que são moradores naturais daqui".
Ocupação indiscriminada
Os morros de Santos começaram a ser ocupados no século XVIII, para plantio de
cana-de-açúcar, e extração de madeira. Esse comportamento manteve-se até a segunda metade do século XIX, quando a abolição da escravatura e o
declínio da cana-de-açúcar no mercado mundial modificaram o panorama. Surgiu então a monocultura do café, e como os morros não apresentavam
condições favoráveis a esse tipo de cultura, toda essa grande área começou a ser abandonada.
A falta de braços especializados para a lavoura cafeeira provocou a importação de
imigrantes ibéricos, a partir das duas últimas décadas do século XIX. Entretanto, boa parte desses imigrantes não foi absorvida pela lavoura
cafeeira, mas fixou-se em Santos força de trabalho para as obras do cais, dos armazéns de café, da construção civil e até da construção e início de
operação da São Paulo Railway, primeira grande ligação entre o Planalto e a Baixada Santista.
A proximidade dos morros com o Centro, e os principais pólos de trabalho, levou a
população a se fixar nas encostas, onde o custo da moradia era aceitável, já que enormes glebas de terra, anteriormente utilizadas na cultura da
cana-de-açúcar, estavam abandonadas. Esses primeiros moradores vieram das Ilhas Atlânticas (Açores e Madeira), aplicando aqui seus conhecimentos de
construção em encostas, assimilados em suas ilhas de origem. Eles se instalaram, inicialmente, nos morros do Pacheco e de São Bento, chegando aos
morros da Penha e do Fontana, no começo deste século (N.E.: século XX).
No início da década de 30, houve uma grande mudança no processo de ocupação dos
morros. Com a substituição da oligarquia cafeeira pelo capitalismo industrial, começaram a chegar os migrantes nordestinos, que passaram a
substituir os ibéricos nos trabalhos portuários, na construção civil e nos armazéns de café. A alta burguesia santista passou a morar no Gonzaga,
Boqueirão, José Menino e Vila Mathias, enquanto que a classe média industrial invadiu bairros tipicamente operários, como o Campo Grande, Macuco e
Marapé. Como as grandes áreas não ocupadas ficavam distantes do centro e dos pólos de trabalho, restou a esses novos migrantes a ocupação das
encostas dos morros.
A principal conseqüência desse fenômeno foi a ocupação indiscriminada dos morros,
cujos moradores, em parte devido à falta de tradição na construção de casas em terrenos acidentados, em parte por falta de opção, pois as áreas
planas passaram a ter preços inacessíveis, passaram a ocupar áreas geotecnicamente comprometidas.
Essa invasão dos migrantes nordestinos gerou sérios problemas. Os escorregamentos
passaram a ser cada dia mais freqüentes, e as condições de saneamento básico, cada dia mais precárias.
Outro surto ocupacional ocorreu na década de 60, quando os nordestinos vieram ocupar
um espaço na indústria e acabam sendo alocados, em sua maioria, na infra-estrutura de prestação de serviços, atendendo às necessidades de uma classe
média crescente, ligada diretamente ao parque industrial de Cubatão e ao boom imobiliário, particularmente a construção civil dirigida para o
turismo.
Começou então a ocupação da Nova Cintra e da Vila Lindóia, que apresentam hoje uma
densidade demográfica bastante grande, com uma população que ganha, em média, até cinco salários mínimos, segundo um estudo feito pela Prodesan em
1976. Resultado: as grandes moradias passaram a ser divididas com inquilinos, vivendo o proprietário na parte nobre da residência ou simplesmente
transferindo-se para as regiões planas.
O fundamental, entretanto, é que o desconhecimento da realidade físico-econômica dos
morros por parte das autoridades permitiu o processo irracional de ocupação. Quase toda a área dos morros em condições de ocupação está dividida
entre meia centena de propriedades. Atualmente, grandes extensões estão destinadas ao plantio da banana, considerado, inclusive, numa das formas de
subsistência da população.
Padre Júlio e suas crianças: "Elas acordam com o
barulho dos pássaros"
Foto: Rafael Dias Herrera, publicada com a matéria
Crianças, aqui e lá
Algumas crianças que moram nos bairros da praia têm orgulho em mostrar aos amiguinhos,
na escola, uma fotografia sua ao lado de uma vaca. Isso mesmo: ao lado de uma vaca.
E onde foram tiradas essas fotografias? "Lá no morro", dizem, mais orgulhosas ainda.
Essas crianças fazem parte de uma minoria privilegiada, moradora em Santos, que já teve, uma vez na vida, contato com animais como a vaca, o
cabrito, o porco e as galinhas. Privilegiadas, porque puderam tocar num animal, sentir seu cheiro e se integrar numa paisagem bem distante daquela
vista pela televisão, no apartamento.
"Essa é uma das principais diferenças que vejo entre a criança da baixada e a que vive
no morro. A daqui (do morro) é criança em toda a extensão da palavra, moleque mesmo, com uma vivência muito superior à da baixada", diz o padre
Júlio Llarena, do Morro de Nova Cintra, um dos que fez as crianças de amigos seus se deixarem fotografar ao lado da vaca existente no futuro
Seminário São José.
O padre, nascido e criado ao lado dos pais, lavradores no interior da Espanha, volta
ao passado quando fala das crianças do morro: "Minhas crianças acordam com o barulho dos pássaros, mexem com a terra durante o dia todo - às vezes,
mais do que deviam -, pois é assim que adquirem lombrigas e doenças de pele. Caçam passarinho com atiradeiras, entram no mato, sujam-se todas,
roubam goiabas e tomam banho peladas na caixa d'água do seminário. Tudo muito natural, bem diferente das crianças da baixada, que não conhecem
bichos, vivem trancadas em apartamentos, diante da televisão. Como saúde mental, como infância vivida, nem se pode comparar uma e outra. As daqui
vivem, embora uma vida humilde, mais saudável. E dando valor a tudo".
Padre Júlio não precisava de ter dito, pois o fato é de conhecimento geral: a falta de
terreno (com terra, árvores e jardins), nas casas, e a crescente ocupação de apartamentos foi um dos motivos que levaram à abertura, cada vez maior,
de escolinhas onde os pais podem deixar as crianças de meses até cinco anos passarem as tardes brincando na terra, mexendo com plantas e insetos.
Suprindo uma carência provocada pelo cimento e pela falta de áreas de lazer nos bairros, fator que está levando a cidade a uma queda na qualidade e
vida. Também para as crianças. |