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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - URBANISMO (B)
A ocupação da ilha (6)

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Metropolização, conurbação, verticalização. Os santistas passaram a segunda metade do século XX se acostumando com essas três palavras, que sintetizam um período de grandes transformações no modo de vida dos habitantes da Ilha de São Vicente e regiões próximas.

É desse período esta série de matérias especiais, que  continuou a ser publicada no jornal santista A Tribuna em 31 de maio de 1982:


Na Vila Parise, os moradores são - na maioria - proprietários dos lotes

O processo de ocupação do solo na Baixada Santista provocou o aparecimento de diversas favelas, concentrando uma população aproximada de 300 mil pessoas, vivendo em condições precárias e sem possibilidade de receber os lucros gerados pelo seu próprio trabalho. O surgimento das favelas obedece a uma lógica de valorização da terra, com a posterior expulsão dos favelados, que partem para outras áreas. E o processo é reiniciado.

Os espoliados, vivendo como podem

Texto de Lane Valiengo
Fotos: Arquivo A Tribuna

Nada acontece ao acaso, por maiores que sejam as evidências.

Não é exatamente por não ter dinheiro que alguém vai morar numa favela. Existe toda uma pressão sobre as pessoas de poucos recursos dentro de uma sociedade. No sistema em que vivemos, o processo de urbanização provoca, fatalmente, a expulsão das populações carentes, que passam a procurar a periferia ou os cortiços. Em Santos, existem algumas características bem próprias, como a ocupação dos morros e dos porões do Centro, além das favelas.

É, sem dúvida, um tipo de ocupação do solo desordenada, mas que reflete as relações sociais existentes e, também, o desespero que toma conta de quem não pode pagar os preços exigidos em áreas mais valorizadas.

Em outros tempos, a população mais abastada de Santos ocupava o Centro, além do Paquetá e da Vila Nova, que eram as principais áreas habitacionais. Aos poucos, aqueles que possuíam rendas mais altas começaram a deslocar-se em direção às praias, afastando-se gradativamente do Centro. Com o abandono, surgiram os porões da miséria, cubículos que abrigam, em condições até desumanas, até 15 famílias ao mesmo tempo.

Vamos pedir o reforço das observações de Lúcio Kovarick: "A dinâmica de produção dos espaços urbanos, ao gerar uma melhoria, cria simultaneamente e constantemente milhares de desalojados e desapropriados, que cedem seus locais de moradia para grupos de renda que podem pagar o preço de um progresso que se opera através de uma enorme especulação imobiliária. Tal trama urbana só pode levar à fixação das camadas pobres em zonas desprovidas de serviços públicos, até o dia em que, com o crescimento das metrópoles, também destes locais tenderão a ser expulsos se, porventura, sua iniciativa política ainda continuar bloqueada".

O arquiteto Célio Calestine pode ajudar a entender como se processa a relação entre os espoliados e a sociedade: "A partir do momento em que toda uma área está ocupada, a população passa a exercer uma pressão sobre a administração pública, em termos de serviço. Quando chega este serviço, viver naquela área passa a ser mais caro. E a partir do momento em que fica mais caro, a população é expulsa. É um processo inevitável dentro dos países capitalistas".

E completa explicando que existe toda uma lógica na instalação das favelas: "Ou ocupam áreas públicas ou localizam-se em locais próximos de uma estrutura de transporte".


Geralmente, as favelas localizam-se próximas aos sistemas de transporte

Quem procura, acha... - Inicialmente, a população carente da Baixada Santista procurou os morros, graduando-se na nobre arte do equilíbrio e da força de vontade. Mas esta ocupação encontrou seus próprios limites a partir do momento em que os terrenos, nos morros santistas, conheceram uma valorização considerável, tornando-se proibitivos para uma grande parcela. Além disso, a ameaça de deslizamento reforçou esta tendência, ao mesmo tempo em que determinadas áreas dos morros passaram a ser preservadas para grandes empreendimentos imobiliários (principalmente Nova Cintra), implantarem "loteamentos ecológicos".

A procura por outras áreas intensificou-se e os mangues e diques (incluindo São Vicente) encheram-se de barracos, o mesmo acontecendo com Vicente de Carvalho (especificamente, o Paicará).

E hoje temos milhares de pessoas cercando toda a Baixada Santista, no que se chamou de "cinturão da miséria" - uma imensa legião de espoliados, de carentes, que não têm meios de usufruir dos bens gerados pelo trabalho.

Na metade dos anos 50, exatamente a partir da implantação do parque industrial de Cubatão, a migração para a Baixada Santista intensificou-se, chegando ao exagero. Sim, as ofertas de emprego eram muitas e bastante atrativas. O contingente de mão-de-obra não especializada que chegou à região encontrou trabalho, mas deparou-se com problemas provavelmente maiores do que os existentes em seus municípios de origem. A mudança para um centro mais avançado gera novos hábitos - e estes hábitos, por menores que sejam, sempre são caros, principalmente para quem ganha pouco (e nunca é demais lembrar que, na Baixada, 80 por cento da população recebe abaixo de cinco salários mínimos; e, destes, 60 por cento têm renda familiar inferior a dois salários).

A primeira preocupação - a alimentação - é resolvida de forma precária, não importando se a família vai recolher nos lixões o almoço de amanhã. A questão seguinte - a moradia, um teto para proteger o sagrado momento de sono - obedece às possibilidades econômicas. Como a ocupação de áreas alheias é uma forma de economizar (ou não gastar), basta invadi-las e construir um barraco, com madeira velha e outros materiais usados. Pronto: o que à noite era deserto, com o sol está habitado, com os barracos multiplicando-se como os peixes do milagre.

E o favelado é, antes de tudo, um persistente: se for expulso de uma área, logo estará fincando as estacas em outro lugar, para remontar o seu barraco.

Todo microssistema tem por tendência repetir as situações e relações existentes no sistema maior. Assim, os migrantes que vieram a partir de um segundo ciclo de expansão industrial - os anos 70, quando havia inclusive as perspectivas de um emprego nas obras da Imigrantes - já encontram estabelecidas as regras de dominação econômica nas próprias favelas: são obrigados a pagar aluguel (geralmente abusivos) a outras pessoas, que constroem vários barracos e passam a explorar, da mesma forma que antes eram explorados.

Parece significativo, também, o fato de que em uma população pouco superior a um milhão de habitantes - em toda a Baixada -, mais de 300 mil vivem em favelas. O que nos leva de volta à questão já abordada anteriormente: que tipo de progresso e desenvolvimento é esse?

O medo da reação - Voltemos a ouvir Lúcio Kovarick: "A condição de favelado representa uma vulnerabilidade que o atinge não apenas enquanto morador; atinge-o também no cerne dos direitos civis, pois mais fácil e freqüentemente pode ser confundido com 'malandros' e 'maloqueiros', que constituem objeto especial da ação policial. E muitos são confundidos, o que faz com que, mesmo aqueles que não tenham passado pela experiência, interiorizem a iminência do perigo. Foco de batidas policiais, a favela é também estigmatizada pelos habitantes "bem comportados" como antro de desordem que destoa da paisagem dos bairros melhor providos, precisando ser removida para que a tranqüilidade volte a reinar no cotidiano das famílias que se sentem contaminadas pelo perigo da proximidade dos barracos".

Célio Calestine com a palavra, complementando: "A alta burguesia paulista nunca irá comprar um lote que fique perto de uma favela, por mais bela que seja a paisagem".

Além do problema da ocupação marginal do solo, que são as favelas, estamos agora diante da questão social, tão significativa quanto a anterior. Surgem então os planos de desfavelamento, que veremos a seguir.

Mas surge também, cada vez mais intensamente, a percepção de que os espoliados - de quem se aproveita a força de trabalho, mas se nega os benefícios gerados - representam uma ameaça de convulsão, que pode ocorrer a qualquer momento. Criamos os leões, e eles poderão nos devorar a qualquer hora. Basta apenas que resolvam cobrar tudo o que lhes foi negado até hoje.


Áreas insalubres são ocupadas pelas populações carentes

Apenas dois exemplos típicos

Nestes dois locais, as coisas acontecem de uma maneira um pouco diferente. Tanto a Vila Parise em Cubatão, quanto a Vila Progresso, em Santos (no Morro da Nova Cintra) surgiram de loteamentos aprovados, para transformarem-se em dois exemplos típicos da espoliação urbana.

Vamos ao primeiro caso, onde o diagnóstico é bastante claro: a grande maioria dos moradores da Vila Parisi é proprietária dos lotes em que reside. Surgiu na época da implantação da Cosipa, quando o proprietário de um extenso bananal percebeu que, com a instalação de indústrias - e a respectiva oferta emprego -, haveria muita gente interessada em morar na área, próxima ao local de trabalho.

Aos poucos, o loteamento idealizado tornou-se uma imensa favela, exatamente pela falta de recursos dos moradores-proprietários. Junte-se à receita toda a poluição despejada no ar pelas indústrias, e temos um quadro específico de baixíssima qualidade de vida.

A observação de Calestine: "A partir do momento em que a qualidade de vida de uma determinada população passou a ser inaceitável, inviável, a certeza era de que essa população se retiraria. O que os administradores não chegaram a perceber é que essa população não tinha alternativas de habitação, outro espaço para morar. Mas, como deixar um lugar que era deles? E permaneceram, com todas as características de favela, menos a posse da terra". E acrescenta, falando do momento em que os administradores resolveram que ali era uma vila em extinção: "Quer dizer, por uma lei, tiraram até o direito de propriedade do indivíduo".

Segundo caso - Na Vila Progresso, a situação é outra: os lotes são alugados, em área reconhecida oficialmente pela Prefeitura. O migrante constrói a sua habitação e ainda paga um aluguel pelo lote. A qualquer momento, pode ser retirado daquele espaço - e por esta razão, muitos dos atuais moradores tentaram comprar os terrenos da proprietária, mas não conseguiram chegar a um acordo por causa dos altos preços da terra.

Calestine fala novamente: "São alugados os piores lotes, sem segurança, em encostas, sem serviços, dentro de um processo de valorização de outras áreas, que são reservadas pela proprietária".

Mas vale a pena ainda examinar outra área de grande concentração de favelados: Vicente de Carvalho, em Guarujá; são quase 90 mil pessoas, também incluídas em planos de desfavelamento, assim como Cubatão. Mas o que é esse desfavelamento?

"Em um primeiro momento, o que se pretende é retirar algumas favelas junto à orla, ou em termos de melhoria da paisagem, ou dentro de um processo em que aquelas áreas possam ser utilizadas dentro do seu real valor. Então, há toda uma pressão sobre o Poder Público em termos de desfavelar, como se desfavelar fosse tirar o indivíduo de um espaço e colocar em outro. Mas ele vai ser favelado do mesmo jeito, a condição socioeconômica dele será a mesma, se não ficar pior. A única diferença é que ele passa a ser proprietário do lote ou da habitação onde vai viver. Isso pode trazer conseqüências sérias", explica Calestine.

Ou seja: procura-se sempre limpar a 'sujeira" que uma favela provoca em um espaço que, valorizado pelas melhorias introduzidas, pode alcançar preços significativos. Claro, se a população favelada for expulsa, e seja obrigada a viver em conjuntos habitacionais - logo transformados em favelas de concreto - ou a procurar novas áreas desabitadas. Para construir uma nova favela.


Na Vila Progresso, os terrenos são alugados

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