Na Vila Parise, os moradores são - na maioria - proprietários dos lotes
O processo de ocupação do solo na Baixada Santista provocou o aparecimento de
diversas favelas, concentrando uma população aproximada de 300 mil pessoas, vivendo em condições precárias e sem possibilidade de receber os lucros
gerados pelo seu próprio trabalho. O surgimento das favelas obedece a uma lógica de valorização da terra, com a posterior expulsão dos favelados,
que partem para outras áreas. E o processo é reiniciado.
Os espoliados, vivendo como podem
Texto de Lane Valiengo
Fotos: Arquivo A Tribuna
Nada acontece ao acaso, por maiores que sejam as
evidências.
Não é exatamente por não ter dinheiro que alguém vai morar numa favela. Existe toda
uma pressão sobre as pessoas de poucos recursos dentro de uma sociedade. No sistema em que vivemos, o processo de urbanização provoca, fatalmente, a
expulsão das populações carentes, que passam a procurar a periferia ou os cortiços. Em Santos, existem algumas características bem próprias, como a
ocupação dos morros e dos porões do Centro, além das favelas.
É, sem dúvida, um tipo de ocupação do solo desordenada, mas que reflete as relações
sociais existentes e, também, o desespero que toma conta de quem não pode pagar os preços exigidos em áreas mais valorizadas.
Em outros tempos, a população mais abastada de Santos ocupava o Centro, além do
Paquetá e da Vila Nova, que eram as principais áreas habitacionais. Aos poucos, aqueles que possuíam rendas mais altas começaram a deslocar-se em
direção às praias, afastando-se gradativamente do Centro. Com o abandono, surgiram os porões da miséria, cubículos que abrigam, em condições até
desumanas, até 15 famílias ao mesmo tempo.
Vamos pedir o reforço das observações de Lúcio Kovarick: "A dinâmica de produção dos
espaços urbanos, ao gerar uma melhoria, cria simultaneamente e constantemente milhares de desalojados e desapropriados, que cedem seus locais de
moradia para grupos de renda que podem pagar o preço de um progresso que se opera através de uma enorme especulação imobiliária. Tal trama urbana só
pode levar à fixação das camadas pobres em zonas desprovidas de serviços públicos, até o dia em que, com o crescimento das metrópoles, também destes
locais tenderão a ser expulsos se, porventura, sua iniciativa política ainda continuar bloqueada".
O arquiteto Célio Calestine pode ajudar a entender como se processa a relação entre os
espoliados e a sociedade: "A partir do momento em que toda uma área está ocupada, a população passa a exercer uma pressão sobre a administração
pública, em termos de serviço. Quando chega este serviço, viver naquela área passa a ser mais caro. E a partir do momento em que fica mais caro, a
população é expulsa. É um processo inevitável dentro dos países capitalistas".
E completa explicando que existe toda uma lógica na instalação das favelas: "Ou ocupam
áreas públicas ou localizam-se em locais próximos de uma estrutura de transporte".
Geralmente, as favelas localizam-se próximas aos sistemas de transporte
Quem procura, acha... - Inicialmente, a população carente da Baixada Santista
procurou os morros, graduando-se na nobre arte do equilíbrio e da força de vontade. Mas esta ocupação encontrou seus próprios limites a partir do
momento em que os terrenos, nos morros santistas, conheceram uma valorização considerável, tornando-se proibitivos para uma grande parcela. Além
disso, a ameaça de deslizamento reforçou esta tendência, ao mesmo tempo em que determinadas áreas dos morros passaram a ser preservadas para grandes
empreendimentos imobiliários (principalmente Nova Cintra), implantarem "loteamentos ecológicos".
A procura por outras áreas intensificou-se e os mangues e diques (incluindo São
Vicente) encheram-se de barracos, o mesmo acontecendo com Vicente de Carvalho (especificamente, o Paicará).
E hoje temos milhares de pessoas cercando toda a Baixada Santista, no que se chamou de
"cinturão da miséria" - uma imensa legião de espoliados, de carentes, que não têm meios de usufruir dos bens gerados pelo trabalho.
Na metade dos anos 50, exatamente a partir da implantação do parque industrial de
Cubatão, a migração para a Baixada Santista intensificou-se, chegando ao exagero. Sim, as ofertas de emprego eram muitas e bastante atrativas. O
contingente de mão-de-obra não especializada que chegou à região encontrou trabalho, mas deparou-se com problemas provavelmente maiores do que os
existentes em seus municípios de origem. A mudança para um centro mais avançado gera novos hábitos - e estes hábitos, por menores que sejam, sempre
são caros, principalmente para quem ganha pouco (e nunca é demais lembrar que, na Baixada, 80 por cento da população recebe abaixo de cinco salários
mínimos; e, destes, 60 por cento têm renda familiar inferior a dois salários).
A primeira preocupação - a alimentação - é resolvida de forma precária, não importando
se a família vai recolher nos lixões o almoço de amanhã. A questão seguinte - a moradia, um teto para proteger o sagrado momento de sono - obedece
às possibilidades econômicas. Como a ocupação de áreas alheias é uma forma de economizar (ou não gastar), basta invadi-las e construir um barraco,
com madeira velha e outros materiais usados. Pronto: o que à noite era deserto, com o sol está habitado, com os barracos multiplicando-se como os
peixes do milagre.
E o favelado é, antes de tudo, um persistente: se for expulso de uma área, logo estará
fincando as estacas em outro lugar, para remontar o seu barraco.
Todo microssistema tem por tendência repetir as situações e relações existentes no
sistema maior. Assim, os migrantes que vieram a partir de um segundo ciclo de expansão industrial - os anos 70, quando havia inclusive as
perspectivas de um emprego nas obras da Imigrantes - já encontram estabelecidas as regras de dominação econômica nas próprias favelas: são obrigados
a pagar aluguel (geralmente abusivos) a outras pessoas, que constroem vários barracos e passam a explorar, da mesma forma que antes eram explorados.
Parece significativo, também, o fato de que em uma população pouco superior a um
milhão de habitantes - em toda a Baixada -, mais de 300 mil vivem em favelas. O que nos leva de volta à questão já abordada anteriormente: que tipo
de progresso e desenvolvimento é esse?
O medo da reação - Voltemos a ouvir Lúcio Kovarick: "A condição de favelado
representa uma vulnerabilidade que o atinge não apenas enquanto morador; atinge-o também no cerne dos direitos civis, pois mais fácil e
freqüentemente pode ser confundido com 'malandros' e 'maloqueiros', que constituem objeto especial da ação policial. E muitos são
confundidos, o que faz com que, mesmo aqueles que não tenham passado pela experiência, interiorizem a iminência do perigo. Foco de batidas
policiais, a favela é também estigmatizada pelos habitantes "bem comportados" como antro de desordem que destoa da paisagem dos bairros melhor
providos, precisando ser removida para que a tranqüilidade volte a reinar no cotidiano das famílias que se sentem contaminadas pelo perigo da
proximidade dos barracos".
Célio Calestine com a palavra, complementando: "A alta burguesia paulista nunca irá
comprar um lote que fique perto de uma favela, por mais bela que seja a paisagem".
Além do problema da ocupação marginal do solo, que são as favelas, estamos agora
diante da questão social, tão significativa quanto a anterior. Surgem então os planos de desfavelamento, que veremos a seguir.
Mas surge também, cada vez mais intensamente, a percepção de que os espoliados - de
quem se aproveita a força de trabalho, mas se nega os benefícios gerados - representam uma ameaça de convulsão, que pode ocorrer a qualquer momento.
Criamos os leões, e eles poderão nos devorar a qualquer hora. Basta apenas que resolvam cobrar tudo o que lhes foi negado até hoje.
Áreas insalubres são ocupadas pelas populações carentes
Apenas dois exemplos típicos
Nestes dois locais, as coisas acontecem de uma maneira
um pouco diferente. Tanto a Vila Parise em Cubatão, quanto a Vila Progresso, em Santos (no Morro da Nova Cintra) surgiram de loteamentos aprovados,
para transformarem-se em dois exemplos típicos da espoliação urbana.
Vamos ao primeiro caso, onde o diagnóstico é bastante claro: a grande maioria dos
moradores da Vila Parisi é proprietária dos lotes em que reside. Surgiu na época da implantação da Cosipa, quando o proprietário de um extenso
bananal percebeu que, com a instalação de indústrias - e a respectiva oferta emprego -, haveria muita gente interessada em morar na área, próxima ao
local de trabalho.
Aos poucos, o loteamento idealizado tornou-se uma imensa favela, exatamente pela falta
de recursos dos moradores-proprietários. Junte-se à receita toda a poluição despejada no ar pelas indústrias, e temos um quadro específico de
baixíssima qualidade de vida.
A observação de Calestine: "A partir do momento em que a qualidade de vida de uma
determinada população passou a ser inaceitável, inviável, a certeza era de que essa população se retiraria. O que os administradores não chegaram a
perceber é que essa população não tinha alternativas de habitação, outro espaço para morar. Mas, como deixar um lugar que era deles? E permaneceram,
com todas as características de favela, menos a posse da terra". E acrescenta, falando do momento em que os administradores resolveram que ali era
uma vila em extinção: "Quer dizer, por uma lei, tiraram até o direito de propriedade do indivíduo".
Segundo caso - Na Vila Progresso, a situação é outra: os lotes são alugados, em
área reconhecida oficialmente pela Prefeitura. O migrante constrói a sua habitação e ainda paga um aluguel pelo lote. A qualquer momento, pode ser
retirado daquele espaço - e por esta razão, muitos dos atuais moradores tentaram comprar os terrenos da proprietária, mas não conseguiram chegar a
um acordo por causa dos altos preços da terra.
Calestine fala novamente: "São alugados os piores lotes, sem segurança, em encostas,
sem serviços, dentro de um processo de valorização de outras áreas, que são reservadas pela proprietária".
Mas vale a pena ainda examinar outra área de grande concentração de favelados: Vicente
de Carvalho, em Guarujá; são quase 90 mil pessoas, também incluídas em planos de desfavelamento, assim como Cubatão. Mas o que é esse
desfavelamento?
"Em um primeiro momento, o que se pretende é retirar algumas favelas junto à orla, ou
em termos de melhoria da paisagem, ou dentro de um processo em que aquelas áreas possam ser utilizadas dentro do seu real valor. Então, há toda uma
pressão sobre o Poder Público em termos de desfavelar, como se desfavelar fosse tirar o indivíduo de um espaço e colocar em outro. Mas ele vai ser
favelado do mesmo jeito, a condição socioeconômica dele será a mesma, se não ficar pior. A única diferença é que ele passa a ser proprietário do
lote ou da habitação onde vai viver. Isso pode trazer conseqüências sérias", explica Calestine.
Ou seja: procura-se sempre limpar a 'sujeira" que uma favela provoca em um
espaço que, valorizado pelas melhorias introduzidas, pode alcançar preços significativos. Claro, se a população favelada for expulsa, e seja
obrigada a viver em conjuntos habitacionais - logo transformados em favelas de concreto - ou a procurar novas áreas desabitadas. Para construir uma
nova favela.
Na Vila Progresso, os terrenos são alugados
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