Através dos tempos, as imagens de diversos...
Viver nos morros, uma aventura perigosa
Texto de Lane Valiengo
Fotos: Arquivo A Tribuna
Olhe atentamente a Cidade se espalhando, procurando
romper as limitações que impedem sua expansão. Daqui de cima, no alto dos morros santistas, é fácil perceber que os espaços são poucos, quase
inexistentes, sufocando a tentativa de crescimento. Veja as estruturas de concreto que sobem verticalmente, substituindo antigas construções,
invadindo os bairros, e teremos a certeza de que aqui, nos morros, estamos a salvo dos tentáculos do progresso.
Estamos mesmo?
Sem dúvida, respiramos melhor e com muito mais tranqüilidade. A sensação de estar mais
perto das nuvens pode até fazer sonhar, como se a felicidade fosse algo bem próximo. A cidade que vemos cresceu muito através dos anos, até atingir
a saturação, todos sabem. E ganhou problemas variados, incluindo a pressão exercida sobre seus habitantes pela falta de áreas livres, pela precária
circulação do ar.
Aqui não temos estes problemas, não é?
Mas será que tudo é assim tão simples nos morros de Santos?
Não. Corremos o risco de deslizar encosta abaixo, em qualquer dia destes, com uma
chuva mais insistente. Ou ainda chegar em casa, numa noite qualquer, e não encontrar mais nada, nem mesmo a família. Nos morros, a insegurança está
ao alcance de todos.
O homem costuma pensar nas montanhas e nas elevações como algo imutável, impermeável,
insondável. Mas geologicamente não são assim que os fatos ocorrem. Os deslizamentos representam uma forma natural de acomodamento ou evolução dos
maciços. A própria Serra do Mar, segundo descobriram especialistas da USP, está em contínuo movimento. Para nós, simples mortais, estes movimentos
são imperceptíveis, é claro.
Os morros constituem uma parte do mesmo conjunto da Serra, com altitudes máximas de
200 metros acima do nível do mar e área aproximada de 8,3 quilômetros quadrados. Desenvolvem-se basicamente na direção Norte-Sul e situam-se no
centro das áreas, ocupadas pelos municípios de Santos e São Vicente.
A população está próxima dos 40 mil habitantes, sendo que 80 por cento ganha menos que
cinco salários mínimos.
Desde o início da efetiva ocupação, na década de 50, foi exatamente a condição
econômica a principal motivação para que as encostas passassem a ser habitadas. Até 1950, o crescimento de Santos dirigia-se às áreas vazias na
parte Leste do município, a partir do Centro e seguindo as avenidas surgidas com a abertura dos canais de saneamento construídos por Saturnino de
Brito.
Vamos relembrar: a população começa a crescer progressivamente, a implantação do
parque industrial de Cubatão atrai milhares de migrantes e a região é impulsionada, a caminho de seu grande destino.
A valorização do solo - pela implantação de benfeitorias urbanas - obriga então as
camadas mais carentes da população a partirem em busca das áreas ainda disponíveis. Tem início a ocupação das encostas dos morros da Penha, Fontana
e Nova Cintra, apesar dos perigos decorrentes e da falta de infra-estrutura. Afinal, aqueles que optaram por subir os morros já estavam calejados,
acostumados a conviver com riscos de toda espécie (principalmente o de desafiar as leis da Física e a própria morte).
Algumas vantagens significativas: a proximidade com o Centro (onde havia
disponibilidade de transporte, principalmente) e os preços da terra, bem inferiores. Além disso, a região Leste de Santos apresentava muitos
terrenos alagados, inabitáveis.
A diversificação das atividades econômicas da região - antes resumidas ao porto e suas
atividades de suporte, e que agiam como o agente principal da ocupação do solo - provocaria igualmente a alteração das características do espaço
urbano. O turismo intensificava-se, gerando a necessidade de criação de novas áreas para atender a população flutuante, surgem novos bairros na Zona
Noroeste e, após os serviços de recuperação dos mangues pelo DNOS, são ocupadas as áreas dos diques, em Santos e São Vicente.
A ocupação das encostas dos morros, ao mesmo tempo em que resolvia precariamente o
problema da habitação para as camadas mais pobres, acarretava problemas ecológicos e comprometia as condições de segurança. Não houve, é evidente, a
adoção de critérios que disciplinassem as construções nos morros. Surgiram então núcleos excessivamente concentrados e técnicas (?) de construção
incompatíveis com a estrutura do solo.
Lembrança importante: os habitantes originais dos morros santistas - portugueses e
espanhóis - traziam toda uma técnica secular de construção em terrenos acidentados, principalmente aqueles que antes viviam na Ilha da Madeira.
Mas os novos migrantes não tinham na bagagem estes conhecimentos tão vitais, e
puseram-se a construir indiscriminadamente. Só obedeciam um critério: se há um espaço vazio, vamos construir um barraco.
E então, adeus segurança!
Os deslizamentos que se sucederam (os principais e que mais vítimas fatais provocaram,
ocorreram em 1929, 1956, 1978 e 1979) mostraram que morar nos morros é, antes de tudo, um ato de coragem. O Instituto de Pesquisas Tecnológicas foi
chamado, era preciso fazer alguma coisa para evitar os desastres. Os relatórios apontaram as áreas inseguras e sujeitas a novos abalos.
E mais: foram apresentados, ainda recentemente, todos os subsídios necessários à
implantação de uma legislação específica sobre o uso do solo nos morros.
O mundo está insistentemente cheio de boas intenções, não?
Os planos e estudos continuam nas gavetas, e nada foi feito a respeito desta
legislação. E a cada nova temporada de chuvas na Baixada, o medo de que novas vítimas serão enterradas volta a preocupar.
... deslizamentos nos morros santistas...
As sugestões existem. Só falta aplicá-las
A área liberada para ocupação, nos morros, é de 420
hectares, segundo o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), com um adensamento populacional médio de 260 habitantes por hectare. O que significa
que estariam em condições de absorver uma população de 117 mil habitantes, aproximadamente (hoje, são pouco mais de 30 mil).
Este raciocínio leva a uma questão importante nos tempos atuais: o problema
habitacional de Santos (e mesmo o da saturação) poderia ser resolvido com o aproveitamento das áreas dos morros?
Em tese, a resposta só poderia ser afirmativa. Mas, para tanto, teríamos que ter uma
definição a respeito da ocupação do solo, uma política orientadora e, principalmente, um código de uso, para direcionar o crescimento ocupacional.
Claro, sempre levando em conta as recomendações sobre as áreas inseguras.
"Normalização do Uso e Ocupação do Solo nos Morros de Santos - Subsídios e
Diretrizes Técnicas" é o título da terceira fase dos estudos efetuados pelo IPT (a primeira refere-se ao cadastramento das moradias e áreas
críticas, enquanto a segunda faz recomendações para a consolidação destas áreas críticas).
O documento sugere a criação da Zona Especial dos Morros, inicialmente, "considerando
as peculiaridades do meio físico e a necessidade de um tratamento legal diferenciado com relação às demais zonas". E vai mais longe, referindo-se à
possibilidade de criação de um Distrito, formado exclusivamente pelos morros.
"É de suma importância a criação desta estrutura administrativa, considerando a
necessidade de um órgão da Prefeitura, que disponha, de forma centralizada, todos os elementos necessários à orientação e fiscalização da
implantação de obras na Zona Especial dos Morros", diz o IPT, a respeito da criação de um núcleo administrativo específico para os morros. Este
órgão deveria coordenar os trabalhos relativos a:
- regularização junto à Prefeitura dos loteamentos, desmembramentos e edificações
atualmente em situação irregular;
- implantação das obras e medidas necessárias à consolidação das edificações que hoje
se encontram em situação de risco;
- elaboração de estudos para a determinação e definição de prioridades para a
implantação do equipamento urbano e comunitário, do sistema viário e de circulação interna, determinando-se as áreas institucionais a serem
preservadas para estes fins, constituindo um Plano Diretor para a Zona Especial dos Morros.
Divisão - De acordo com as sugestões do IPT, a divisão dos morros deve obedecer
à homogeneidade "quanto às potencialidades e limitações para o uso e ocupação do solo". São três as categorias: áreas passíveis de ocupação; áreas
impróprias e áreas de preservação ecológica.
Dentro da primeira classificação, estão as seguintes subzonas:
ZP-1: caracterizada por uma planície aluvionar encaixada no alto dos morros,
que não apresenta problemas geotécnicos quanto à ocorrência de escorregamentos, mas que pode ser afetada por enchentes e assoreamentos);
ZP-2: constituem topos de morros e segmentos de encostas de inclinação inferior
a 36 por cento ou 20 graus com a horizontal. São encontradas camadas de solo de até dez metros de espessura, e podem ter problemas de erosão, se a
camada superficial do solo for removida de forma indiscriminada;
ZP-3: segmentos de encosta com inclinação predominante entre 36 e 57 por cento,
ou entre 20 de 30 graus. Neste caso, são registrados problemas de escorregamentos associados às mutilações nas encostas, depósito de lixo e
concentração de águas pluviais. Segundo o IPT, são áreas que exigem cuidados especiais, necessitando de medidas de consolidação nas encostas, para a
sua ocupação;
ZP-4: são as áreas de pedreiras. Diz o estudo: "Para ocupação destas áreas,
deverão ser interrompidas todas as atividades relacionadas à exploração das pedreiras e implantadas obras e medidas necessárias à recuperação
urbanística, incluindo as obras de contenção de encostas".
As áreas impróprias (ZI-1 e ZI-2) têm inclinação predominante entre 57 e 84 por cento,
ou 30 e 40 graus. "São áreas altamente sensíveis a quaisquer tipos de mutilação". E as áreas de preservação ecológica também são duas: ZV-1 e 2. A
primeira apresenta vegetação natural secundária, "constituída por uma cobertura contínua de mata pouco alterada pela interação humana", e deverá ser
destinada à implantação de um parque público, sendo proibida a implantação de qualquer edificação particular, a remoção de vegetação e a exploração
de materiais terrosos ou rochosos. A segunda, para o IPT, será destinada ao lazer.
Existem ainda muitos itens, que serão abordados posteriormente. Mas é interessante
notar que nenhum passo foi dado, a nível administrativo, para a efetiva implantação de um código desta natureza.
... demonstra o risco que correm os habitantes
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