Até hoje, poucas mudanças
Até agora, nesta série, percorremos o passado, buscando as explicações para a
saturação da Baixada Santista, em termos de ocupação do solo. Conhecemos o tipo de ocupação gerado pelo comércio do café, a influência do porto, da
industrialização e, ainda, a construção da muralha de prédios na orla de Santos. Agora, vamos ao presente.
Vamos a Bertioga, é claro.
Praias tranqüilas e preservadas. Até quando?
O futuro já chegou para Bertioga
Texto de Lane Valiengo
Fotos: Arquivo A Tribuna
A expansão das cidades tem contradições que o mais
simples dos mortais não consegue entender: enquanto nos debatíamos com a falta de espaço e a degradação da qualidade de vida na Ilha de São Vicente,
bem próximo, um paraíso permanecia intocado, praticamente deserto, e só ocasionalmente recebendo a atenção dos santistas.
O Distrito de Bertioga certamente habitou o sonho de muitas pessoas, incluindo alguns
administradores municipais e pretendentes ao cargo. Separado fisicamente da sede, guarda tesouros que chegam a parecer inesgotáveis. São
aproximadamente 360 quilômetros quadrados, dez vezes superior à nossa metade da ilha, e conserva muitas das praias mais belas do Litoral.
A dificuldade de acesso sempre contribuiu para que - pelo menos fora dos feriados e
temporadas - Bertioga permanecesse intacta. Mas o tempo tem alguns hábitos estranhos e fez mais uma das suas, pregou mais uma peça.
O amanhã chegou cedo demais, e um belo dia - e qual o dia que não é belo em Bertioga?
- percebeu-se que a invasão já tinha começado, era uma realidade palpável e movida a gasolina.
Retorno rápido ao passado: nos tempos do artilheiro Hans Staden, muitas vezes a antiga
Armação de Bertioga sofreu invasões, de índios ferozes e piratas sanguinários. O Forte São João está lá mesmo, guardando as lembranças que mostram
como foram difíceis aqueles tempos coloniais.
Através dos anos, pequenas invasões - bem mais pacíficas, é preciso reconhecer -
repetiram-se na vila, até que as máquinas começaram a desvendar os mistérios da Serra, abrindo caminho para o inevitável asfalto. E tudo se
transformou.
Voltando ao presente imediato: a Mogi-Bertioga finalmente foi aberta, e os novos
invasores chegaram, atraídos pela praia, pelo cenário nunca antes percorrido e visto, pelo mar imenso e milagrosamente limpo. E atraídos
principalmente pelo lazer, esta coisa tão necessária e tão proibida nos dias em que vivemos.
Mas que não se diga que tudo ocorreu de repente, como um pesadelo ou uma desagradável
surpresa. Ao contrário, os indícios e os avisos surgiram em número considerável e insistentes, nos últimos anos, e o destino de Bertioga estava bem
claro. A construção da estrada representava um dado concreto, a perspectiva de transformar o Distrito em um importante e concorrido centro de lazer
da classe trabalhadora, uma Praia Grande em duplicata.
Implacável, o destino cumpriu a parte que lhe cabia.
Os homens continuaram com os braços cruzados, impávidos e insensíveis. Tanto que
surgiu até um movimento para a emancipação de Bertioga, sob o argumento primeiro de que Santos não dá a mínima atenção necessária aos problemas
locais.
O asfalto chegou, e com ele a certeza de que o Código de Uso do Solo - bastante
rígido, tentando preservar um pouco do aspecto selvagem e natural das praias - não conseguirá resistir durante muito tempo às investidas de grupos
econômicos e imobiliários. Basta lembrar as violentas disputas entre posseiros e jagunços, a soldo de grandes companhias.
O asfalto não parou aí sua investida, e está chegando também em outra direção: está
sendo asfaltada a SP-55, que liga Bertioga a São Sebastião, passando pelas praias mais belas e tranqüilas de todo o Estado. A ameaça da Rio-Santos
parece estar temporariamente congelada.
Tanto asfalto assim só poderá mesmo causar uma inversão total de valores.
Resistir é preciso - Sem a infra-estrutura necessária, Bertioga passou a ser
ocupada nos fins de semana por uma imensa população - a classe operária encontrou finalmente o seu paraíso, a terra prometida.
Hoje, não há tanta certeza de que o Distrito ainda pertence a Santos. Não só pelo
movimento que tenta conseguir a emancipação, mas principalmente pelo sentimento dos moradores de Mogi das Cruzes, Suzano, Arujá, São José dos
Campos, São Bernardo, Santo André, São Caetano, Guarulhos, Ribeirão Pires e da Zona Leste de São Paulo.
Não há nada - nada mesmo - para atender esses turistas. E como a administração
municipal preferiu fechar os olhos ao inevitável, algumas iniciativas particulares já começam a surgir, procurando ocupar os espaços - em termos de
comércio - que se abriram com a Mogi-Bertioga. São bares, restaurantes, mercadinhos, cabines para banhistas, pensões e até mesmo postos de gasolina,
que se preparam para atuar em Bertioga.
No primeiro fim de semana, a improvisação tentou resolver os principais problemas,
como a falta de locais disponíveis, o trânsito pela praia, junto aos banhistas, a insegurança, a assistência médica e muito mais.
Mas o fluxo de turistas continuará, aumentando sempre. O paraíso agora está ao alcance
- apenas 40 minutos de viagem - de uma população que precisa renovar-se, reciclar-se. O direito ao ócio, antes de mais nada. Sem disciplina, a
devastação será total.
Ainda é tempo, basta apenas ter olhos para o futuro. Que já chegou.
Os turistas tomaram conta dos espaços
O código ecológico resiste. Até quando?
Preservar a ecologia. Em 1976, esta era a palavra de
ordem: ecologia. O nível de vida do homem moderno conheceu uma deterioração sem precedentes e a volta à natureza tornou-se uma obsessão. Ao mesmo
tempo era preciso cuidar para que o Distrito de Bertioga estivesse a salvo da especulação imobiliária, não deixando que se repetisse lá o que
ocorreu em Santos, onde uma muralha de prédios nasceu principalmente diante da perspectiva de lucros fabulosos.
Dentro destas variáveis, surgiu um projeto para disciplinar a ocupação do solo em
Bertioga, logo denominado de "Projeto Ecológico", elaborado pela administração municipal na gestão do ex-prefeito Antônio Manoel de Carvalho.
Transformado em lei, apresenta alguns pontos importantes, obedecendo às seguintes diretrizes:
1 - evitar uma ocupação pouco densa, para não desperdiçar as necessidades futuras;
2 - evitar urbanização do tipo linear ou além da Rio-Santos, criando-se setores de
aproveitamento separados por janelas, em locais fisicamente privilegiados, como o são as partes do litoral correspondentes às desembocaduras dos
rios;
3 - permitir realizações variadas no interior desses setores de aproveitamento, para a
clientela popular e também para a clientela pouco mais abastada;
4 - manter, com aproveitamento de vastas áreas públicas, livre acesso às praias, para
que atenda à demanda popular, em especial em fins de semana e feriados.
Este Código de Uso do Solo e Proteção dos Recursos Naturais definiu também as áreas e
o zoneamento para efeito de ocupação do solo, principalmente no que se refere à construção de edifícios: nenhum prédio pode ser construído em
Bertioga com mais de seis andares, e os que tiverem mais de dois andares serão obrigados a instalar elevadores. Para qualquer construção, a área de
corte ou remoção de vegetação não pode ultrapassar a dez por cento e os cortes ou aterros decorrentes da implantação de vias não podem apresentar
alturas superiores a um metro.
E as edificações também estão disciplinadas com relação à área de aproveitamento: em
cada terreno, a taxa de ocupação máxima é de 40 por cento. Assim, todas as construções devem apresentar um mínimo de 60 por cento de área livre e
recuos laterais de três metros.
A vida em Bertioga - Apenas 20 por cento da área do distrito é urbanizada ou
loteada. São cerca de 8 mil habitantes fixos, a maioria concentrada em torno da vila - o pequeno centro comercial. Até hoje, o sabor de vida simples
sobreviveu a tudo, mas grandes mudanças estão em marcha, e o já desgastado caiçara está perdendo o seu lugar. Como sempre acontece durante os
processos de ocupação do solo, as populações carentes, gradativamente, são expulsas do lugar que ocupam, para abrir caminho ao concreto.
Em Bertioga, este processo ficou patente nos "acordos" que os posseiros aceitaram para
abandonar suas terras, reivindicadas por uma grande empresa imobiliária. Embora o código ainda consiga evitar a especulação desenfreada, a população
tem plena consciência de que não será por muito tempo.
"Querer preservar isto aqui do jeito que é me parece uma posição discutível, pois
evidencia um comportamento elitista. O pessoal tem direito ao lazer, não são apenas os ricos", comentava um comerciante ao observar a invasão dos
moradores de Mogi.
Mas para outros, acostumados a acampar nas praias (Enseada, Indaiá, São Lourenço,
Boracéia e Guaratuba são as praias, e os acampamentos são permitidos apenas nas três últimas, embora nos fins de semana seja praticamente impossível
cumprir estas determinações), o asfalto decretou o fim de Bertioga: "Nem fale nisso. Isso aqui tem que ficar assim mesmo, não pode mudar. E tem que
ficar com estas pontes velhas mesmo, com as balsas e tudo mais. Se não, vai acontecer o mesmo que em Ilha Comprida, cheia de loteamentos", dizia um
turista de Diadema, acostumado a visitar o Distrito, com sua barraca e sua família.
Enquanto os comerciantes sonham com os lucros que a invasão trará, existe a
preocupação de que esteja nascendo uma nova Praia Grande. E a certeza de que nada será como antes. Sim, adeus Bertioga!
Modificações - Em 1980, o prefeito Paulo Gomes Barbosa determinou a realização
de um estudo a respeito dos problemas locais, para adotar soluções a curto prazo. Entre as idéias comentadas na época, estava uma "ligeira"
modificação no código, permitindo a construção de edificações acima dos limites previstos originariamente, em algumas regiões, "onde as
possibilidades de desenvolvimento turístico sejam consideráveis".
Explicava-se então que não existia a intenção de descaracterizar Bertioga, mas "apenas
criar condições para a instalação de complexos hoteleiros", sob o argumento de que a legislação torna praticamente impossível a construção de
grandes hotéis e diminuindo consideravelmente a possibilidade de atrair turistas de nível médio e alto.
As intenções permanecem no ar, principalmente agora que o asfalto é mais do que uma
realidade e que o movimento separatista tenta se fortalecer.
Um outro detalhe: daqui há alguns meses, estará pronta a ponte sobre o Rio Itapanhaú,
que realizará verdadeiros milagres, ligando Santos a Bertioga (pela Piaçagüera-Guarujá) e permitindo ainda o acesso mais tranqüilo dos turistas
cariocas (que utilizarão a SP-55, atualmente em obras). A invasão será ainda maior, a especulação também.
Até quando um código idealizado em 1976 e responsável por sérios entraves à atividade
imobiliária conseguirá resistir?
O asfalto chegou. E agora?
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