Nesta cena antiga, a orla ainda apresenta poucos prédios...
Os prédios tomam conta da orla
(A história da muralha de concreto)
Texto de Lane Valiengo
Fotos: Arquivo A Tribuna
Sopra um vento quente e insistente em Santos,
naqueles dias de calor intenso. É o nosso velho conhecido Noroeste, prometendo chuva para breve, e deixando a certeza de que as noites serão longas
e sufocantes.
Nada mais característico em Santos, tanto que este mesmo vento costuma soprar
também dentro da alma dos santistas, quase como um componente vital das nossas vidas. Afinal, é pequena e quase imperceptível a distância entre as
condições climáticas e o comportamento dos homens. O meio exerce seu poder de influência de forma marcante e decisiva. E o Noroeste tem o estranho
hábito de provocar um incômodo cansaço, uma sensação de letargia gradativa, como uma grande barreira a restringir atos e atitudes.
Uma outra barreira contribui para o sentimento de isolamento: os prédios da orla, a
muralha que impede a circulação do ar, diminui a ventilação, provoca alterações nas condições climáticas, segrega o sol, assim como previu, na
década de 50, antes do grande momento da construção civil, o planejador Prestes Maia. Ele alertava para as conseqüências, em termos de clima e
ocupação do solo, da construção excessiva de edifícios junto às praias.
Mas nada poderia impedir o surgimento da muralha, pois as oportunidades de ganhos
eram fabulosas. Tanto que compensava, naquela época, demolir os antigos e luxuosos palacetes construídos pelo capital saído da cultura e
comercialização do café, e erguer os arranha-céus. Foram duas décadas de intensa atividade, até o final dos anos 60, ocupando praticamente todos os
espaços disponíveis.
A partir de 1970, o Estado surge no mercado imobiliário, com a atuação do Banco
Nacional da Habitação, e o padrão dos edifícios muda radicalmente. E o processo continua, embora bastante restrito.
Hoje, nada indica que haverá uma alteração significativa no padrão de uso da orla
santista, embora cada vez mais os edifícios passem a ser utilizados como primeira habitação, com moradores efetivos, e não mais como imóveis
destinados ao lazer, durante as temporadas. Progressivamente, toda uma camada da população - na maioria, pessoas que vieram de outras cidades - está
ocupando os apartamentos e kitchenettes da orla, ao mesmo tempo em que aumenta o número de unidades colocadas à venda ou alugadas (e que
antes eram utilizadas por seus proprietários ocasionalmente, nas férias e fins de semana).
A deslocação dos turistas de média e alta renda para outros locais - Guarujá e
Litoral Norte - abriu a perspectiva de ocupação da orla, que passa a ser uma área efetivamente residencial. Mas o santista mesmo, continua longe de
ocupar esta área.
E continua longe também de se livrar dos efeitos do vento Noroeste. Os fatos foram
passando diante dos olhos, incluindo as cassações políticas dos anos 60, que culminaram com a perda da autonomia; as restrições à importação de um
número elevado de produtos e a queda nas exportações; a política oficial do café, que provocou falências diversas; a instituição do pedágio mais
caro do País, o mesmo acontecendo com as tarifas dos transportes; o não aproveitamento turístico em bases racionais e esquematizadas; o
empobrecimento, a falta de recursos e muito mais.
O vento Noroeste soprou diversas vezes, e a Baixada Santista foi perdendo a sua
capacidade reivindicatória, seu poder de mobilização. A autêntica cidade do silêncio que aceitou todas as medidas impostas. Incluindo o uso
indiscriminado do seu próprio solo.
... que, por intermédio do surto imobiliário, tomariam conta do cenário
Um capital que veio de fora
I - A BRISA MARÍTIMA E AS OBRAS DE SANEAMENTO
Agora você está pisando a areia úmida das praias, andando lentamente em direção ao
mar, o sol batendo nas costas e o vento no rosto. Volte-se lentamente, e admire o cenário: todo esse concreto, o que faz aqui, como surgiu?
Uma revelação: a muralha de prédios na orla santista é um artigo importado.
Explica-se: o capital que gerou os edifícios veio de fora, não era santista; os responsáveis, os construtores, em sua grande maioria, vieram de fora
e, principalmente, não foram os santistas que ocuparam estas habitações inicialmente - as construções destinavam-se a uma população que residia em
outros locais, e eram ocupadas nos fins de semana ensolarados ou nas temporadas de verão.
Já vimos que no início existiam as chácaras na orla, destinadas ao lazer dos
comissários de café. A brisa era agradável, o ar saudável, o mar limpo. Como diz a geógrafa Odete Seabra, em A Muralha Que Cerca o Mar - Uma
Modalidade de Uso do Solo Urbano: "O desenvolvimento da função balneária de Santos está ligado à exploração de um recurso natural que lhe é
próprio, as praias situadas ao fundo da Baía de Santos. Essa exploração de caráter mercantil e cujos efeitos têm sido predatórios, encontrou
rapidamente seus limites na medida em que, tanto a possibilidade de uma vista para o mar, assim como a possibilidade de usufruir de brisas marítimas
e até mesmo o simples banho de mar, foram se tornando cada vez mais restritivos em conseqüência do padrão do uso do solo vigente nesta fração do
espaço santista".
Segundo o mesmo estudo, tudo indica que a utilização balneária das praias seja tão
antiga quanto a própria Cidade, ou até mesmo anterior a ela. A geógrafa separa o processo de ocupação em dois períodos principais, tendo o primeiro
seus limites no final dos anos 40. A fase seguinte compreenderia os anos 50 e 60.
Vamos voltar à sábia História: no início deste século (N.E.:
século XX), inicia-se uma rápida mudança no padrão de uso do solo, principalmente em função da utilização das praias.
As chácaras são substituídas pelos palacetes construídos por paulistas. Examinemos os fatores que provocaram estas alterações.
As distâncias eram longas em Santos, na passagem do século. A camada mais rica da
população - o café, ainda, gerando riquezas - vivia principalmente no Paquetá e na Vila Nova, e utilizava as chácaras no fim de semana.
Os gênios têm o curioso hábito de modificar o mundo, e foi o que aconteceu com o
sanitarista Saturnino de Brito. Entre 1905 e 1912, empenhou-se no projeto da criação do sistema de esgotos de Santos, trabalho considerado pioneiro
e reconhecido até mesmo na Europa. Vamos prestar atenção ao que escreveu, em 1950, Prestes Maia: "Santos até essa época continuava vítima das
epidemias periódicas, que além dos prejuízos imediatos, desmoralizavam o estado no estrangeiro".
E mais: "As obras do cais do porto iniciaram o saneamento em grande escala; sendo a
ação municipal impotente, o Governo Estadual desde 1892 interveio no serviço de esgotos, que teve seu período decisivo em 1905-1912 com o projeto e
execução geral por Saturnino de Brito".
Tornou-se possível então a ocupação das áreas insalubres do sopé dos morros, até a
orla, além de condicionar o traçado futuro da Cidade, por causa dos canais de drenagem. "Acrescente-se que sua concepção geral condicionou o traçado
da Cidade, a malha urbana que se formou obedecendo à orientação geral dada pelos canais de drenagem a céu aberto. É sem dúvida uma obra que
perdura", diz Seabra.
Podem-se acrescentar mais alguns acontecimentos: a intensificação e ampliação das
ligações ferroviárias, a melhoria da circulação urbana, com as ligações entre as então abertas avenidas Ana Costa e Conselheiro Nébias (pelos bondes
elétricos) e os loteamentos que surgiram em extensas áreas do Gonzaga, Boqueirão e José Menino - exatamente os locais das chácaras de veraneio.
Aos poucos, os palacetes deram lugar aos edifícios
II - PRAIAS CONCORRIDAS, PALACETES, OS HOTÉIS E OS CASSINOS
Ano: 1921.
Situação: o café, novamente amparado pelo Governo, recuperava-se.
Como estava Santos: "...e o aspecto de Santos era de verdadeira euforia. As ruas
sempre cheias de gente, as praias concorridíssimas, os clubes de regatas com suas sedes sempre repletas, em toda a parte, enfim, a cidade entoava de
vida" (Santos, Berço da Cultura Paulista, Instituto Histórico e Geográfico de Santos, 1940).
Detalhes, segundo Odete Seabra: nessa época, já funcionava o Hotel Parque Balneário -
inaugurado em 1914 - e o Atlântico Hotel, ambos no final da Ana Costa, no ponto mais valorizado da orla, já naquela época. Santos representava então
o refúgio dos fazendeiros e comerciantes de café, que construíram uma segunda residência na orla, os palacetes, reprodução esmerada e luxuosa das
residências dos pontos mais abastados de São Paulo (principalmente o nobre Bairro de Higienópolis).
Os mais luxuosos - ainda recorrendo ao estudo de Seabra - ficavam nas avenidas
Presidente Wilson, Vicente de Carvalho e Bartolomeu de Gusmão, frente para o mar. "As localizações mais valorizadas eram primeiramente o Gonzaga,
nas proximidades da Ana Costa, depois o José Menino e Boqueirão, nas proximidades da Conselheiro Nébias. Isso explica o fato de serem as construções
mais numerosas ao longo da Presidente Wilson, em direção ao José Menino, com lotes menores do que aqueles da Bartolomeu de Gusmão, pelo menos quanto
à testada".
Continuemos: "Por volta dos anos 30, os segmentos mais abastados da sociedade santista
já habitam em caráter permanente a orla entre o Gonzaga e o Boqueirão ou, mais precisamente, entre a Ana Costa e Conselheiro Nébias, na área
posteriormente denominada Vila Rica. Do outro lado da Ana Costa, em direção aos canais 1 e 2, em algumas ruas perpendiculares à praia e mesmo na
paralela à Avenida Presidente Wilson, ou seja, na Floriano Peixoto, começam a ter lugar edificações de dois pavimentos".
Eram os sobrados que surgiam, com mais ou menos 200 metros quadrados. Assim, na frente
ficavam os palacetes, os hotéis e os cassinos, enquanto no segundo quarteirão começava a fixar-se uma população santista: "...que tudo indica
compunha extratos da classe média local, pois ocupou, nessa posição de retaguarda da orla, habitações do tipo média".
Exceção apenas à Vila Rica, que apresentava um padrão mais requintado: os sobradões. E
Seabra ainda registra: "Para a função balneária, nos anos 30, já não concorria apenas a aristocracia do café. Uma população urbana constituída por
artesãos, profissionais liberais e por um proletariado industrial também para lá se dirigia".
Aos poucos, os palacetes deram lugar aos edifícios
III - FORMIGUEIROS, A CRISE E A BURGUESIA
Vamos seguindo no passado, e entramos nos anos 30, marcados pela Grande Depressão.
Ainda vemos remanescentes da aristocracia do café utilizando os palacetes, enquanto os artesãos, os profissionais liberais e os comerciantes
utilizavam pensões e hotéis. "Contingentes de menor poder aquisitivo usavam cabinas instaladas nas praias e constituíam-se sobretudo na população
flutuante, aquela que na área fazia curta permanência".
Novamente, lemos o documento do Instituto Histórico e Geográfico: "A Avenida
beira-mar, desde o Miramar (cassino do Boqueirão) até o José Menino, um formigueiro, um redemoinho: milhares e milhares de pessoas de todos os
recantos do Estado em quase oitenta mil. Os hotéis e pensões praianos, tudo cheio, sem um só cantinho para os que gostam de chegar tarde".
A década reservou dificuldades para Santos, e as possibilidades econômicas são
reduzidas. Mas o café, pelo menos, havia deixado uma riqueza acumulada que permitia alguns exageros. A burguesia gerada pelo comércio do café
conquistara em pouco tempo fortunas consideráveis, e passam a utilizar estes capitais em outros setores econômicos, quando a crise surgiu.
Atravessamos os anos 40 - com a crescente utilização da praia para o lazer - e
chegamos a 1947, com a inauguração da via Anchieta. Ao mesmo tempo, inicia-se um processo acentuado de construção na orla, ocupando inicialmente os
terrenos vazios, edifícios de dois a quatro andares. Entre 45 e 49, existiam cerca de 15 edifícios deste tipo, segundo o Cadastro Fiscal da
Prefeitura de Santos. Como o fluxo turístico aumentava, as pensões e hotéis já não conseguiam absorver a população flutuante. Era preciso encontrar
uma saída.
Surgem os apartamentos.
Desde o início da efetiva ocupação, o Gonzaga tornou-se o ponto mais valorizado
IV - CONSTRUIR É PRECISO...
"As atividades do setor de construção civil, em Santos, no ramo de edificações,
reproduziram lá, como não poderia deixar de ser, as características gerais do setor no que se refere ao processo capitalista de produção de
habitações", escreveu Odete Seabra.
As oportunidades de ganhos eram, presumivelmente, fabulosas. Tanto que era compensador
derrubar os palacetes e substituí-los por prédios. A construção civil encontrava, ainda, o capital gerado pelo café como forma de expansão.
Na pesquisa realizada, Odete Seabra chegou a algumas conclusões no mínimo curiosas: em
1950, segundo o cadastro da Prefeitura, estavam registradas 114 empresas de construção, sendo que 89 eram de São Paulo, que também atuavam em
Santos. As daqui (N.E.: de Santos) eram empresas também paulistas, que abriram filiais por
razões administrativas. Então, efetivamente, eram capitais que tinham vindo de fora, percebendo uma forma de uso. E começou uma mudança
significativa na forma de uso da orla.
Em 1955, praticamente não existiam altas edificações, mas o surto imobiliário - que
encontraria seu auge nos anos 60, rapidamente ergueu a muralha de prédios. O fenômeno da valorização do solo em Santos foi planejado e provocado,
por assim dizer, fora do Município.
Outros fatos interessantes: três tipos de empresas atuaram aqui, começando por aquelas
que possuíam alguma tradição no setor da construção civil; depois, as que operavam com o que se costuma chamar de construção pesada e, por fim,
empresas sem tradição alguma. Eram, por exemplo, importadoras - como a Três Leões - de eletrodomésticos, mas que em Santos transformava-se em firma
de construção civil.
A conclusão de Seabra: "Deveria ser muito bom derrubar os palacetes e construir
edifícios na orla de Santos, tanto que empresas essencialmente comerciais acabavam se tornando construtoras".
Havia um grande e promissor mercado, gerado pelas necessidades da classe industrial
paulista, que alimentavam ardentemente o sonho de ter a sua residência de veraneio em Santos. E o surto desenvolveu-se até os primeiros anos da
década de 60. Em 1964, praticamente não havia mais nenhuma empresa produzindo apartamentos na orla.
"Os anos 70 trariam algumas pequenas modificações: o mercado abriu-se
lentamente, principalmente com a atuação do BNH, e novos edifícios surgiram, com padrões de construção totalmente diferenciados.
O que o futuro reserva para a orla e, em conseqüência, para a muralha? Não existem
indícios de que as alterações serão significativas, embora nada impeça que, diante das necessidades de uma ocupação maior ainda, os atuais edifícios
e kitchenetes sejam derrubados.
Para darem lugar a novos edifícios.
Afinal, a muralha resiste... |