Aglomerado diante do Paço Imperial, no Rio de Janeiro, no histórico dia 13 de maio de
1888, o povo emocionado aclamava a princesa que libertara, sem que se derramasse uma só gota de sangue, os escravos brasileiros
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Escravos tiveram na Baixada dois heróis: Quintino de Lacerda e Santos Garrafão
Nikôdemos ATHEOS
(Especial para O Diário)
Velha como o próprio Homem, pode-ser afirmar que a
escravidão foi conseqüência natural da Civilização. Em todo e qualquer ponto da História em que nos detenhamos em pesquisas, aí, por certo,
encontraremos relatos ou citações sobre a exploração do ser humano pelo seu semelhante.
Na Bíblia, o livro mais lido e mais comentado pela Humanidade, existem determinações
expressas quanto ao modo de se tratar os escravos, especificando, mesmo, o seu comércio. No velhíssimo Código de Hamurabi encontram-se idênticas
referências e o mesmo ocorre nas páginas do Mahabarata, dos Vedas, da Ilíada, da Odisséia e de inúmeras outras obras clássicas. Sabe-se, por outro
lado, que as pirâmides egípcias, os jardins suspensos da Babilônia, os muros de Tróia, os templos gregos, os pagodes chineses, os palácios romanos,
as mansões bizantinas e mesmo os templos incas e maias, foram todos eles construídos pelo braço escravo.
Ainda hoje, em que pesem as providências dos antiescravagistas e a ação da ONU,
milhares de infelizes são negociados por negreiros que agem na vasta região do Golfo Pérsico e que têm agentes espalhados pelas cortes dos nababos
da Península Arábica, onde o ouro negro fez ressurgir usos e costumes apenas entrevistos nos fantasiosos relatos das Mil e uma noites.
É comum nessa região a existência de haréns com escravas escolhidas a dedo e guardadas por eunucos e estes, é óbvio, em hipótese alguma podem ser
homens livres!...
No Brasil, o escravagismo teve início logo nos primeiros anos após a sua descoberta.
Degredados de sua pátria de origem, os colonizadores que aqui aportaram só tiveram uma preocupação: conseguir, entre os aborígines, o braço
necessário ao desbravamento do sertão. Afirma-se, mesmo, que o famoso Bacharel de Cananéia foi, no Sul, um dos mais eficientes
caçadores de índios e... índias, que lhes proporcionaram pingue lucro quando da chegada dos homens de Martim Afonso de Sousa, em 1532.
Os silvícolas, entretanto, indolentes por natureza, não se adaptaram ao rude trabalho
que os lusitanos deles exigiam e, posteriormente, com a vinda dos jesuítas que aqui aportaram em 1547, foram relegados a segundo plano como elemento
servil, pois os irmãos de Loiola passaram a defender intransigentemente o habitante da terra.
Sobre a vinda dos primeiros escravos negros para o Brasil os pesquisadores ainda não
chegaram a acordo definitivo. Há os que afirmam que os primeiros pretos vieram com Martim Afonso de Sousa, que os trouxe para iniciar na Baixada
Santista o plantio da preciosa cana-de-açúcar e para fazer funcionar o engenho que ali construiria. O que é certo e não padece dúvidas é que o
tráfico de africanos já se processava no Velho Mundo desde o ano de 1442.
Outro ponto que não mais oferece controvérsias é o de que o tráfico normal de negros
para as lavouras brasileiras teve início em 1550 e que até 1850 - trezentos anos, portanto, de asqueroso comércio - haviam sido negociados na Terra
de Santa Cruz nada menos que 6 milhões de infelizes. O preço variava segundo o sexo, o aspecto físico e a procedência. A verdade é que o negro era
caro e mais caro se tornou depois que os ingleses se arvoraram em defensores dos africanos e se propuseram a perseguir os negreiros que
cruzavam o Atlântico.
Os primeiros escravos procediam da Guiné e no decorrer dos anos sua captura foi se
estendendo para o interior da África, atingindo mesmo o Sudão, a região dos Bosquimanos e a Hotentótia.
Bahia, Rio, Minas e Pernambuco foram os grandes centros do mercado de carne humana.
Para a região da Bahia, especialmente, foram encaminhadas grandes levas de negros da nação iorubá, que ali se tornaram conhecidos como nagôs e que
nos legaram os ritos africanos que hoje conhecemos como macumba e candomblé.
Inteligentes, dóceis, saudáveis e corpulentos, os iorubás foram, talvez, o melhor
elemento de miscigenação de nossa raça. Deles descenderam os primeiros mulatos, filhos naturais dos potentados da terra, os grandes latifundiários
de então, possuidores de centenas de negros, milhares de cabeças de gado e fazendas intermináveis. Esses mulatos, em geral criados na companhia dos
filhos legítimos dos senhores, foram a mola propulsora do movimento desencadeado em favor da raça espezinhada.
Nem todos os africanos, porém, se submeteram ao domínio do branco. Inicialmente os
pretos sofriam um estranho mal: o banzo. Separados dos seus entes queridos, davam em entristecer, deixavam de comer e se entregavam a um
ensimesmamento que os levava à morte. Outros, tendo à frente elementos da nação huassa, abandonaram os senhores e se refugiaram nas matas, formando
verdadeiras nações, às quais denominavam quilombos.
Desses aldeamentos, existentes no interior de São Paulo, de Mato Grosso, da Bahia e de
Minas Gerais, o mais célebre é o de Palmares, no sertão de Pernambuco, que compreendia os núcleos de Zumbi (ou Zambi), Acainense, Zumbiabanga,
Sucupira, Macaco e Antolaquituxe. O quilombo dos Palmares, conhecido também como Tróia Negra, foi destruído pelo paulista Domingos Jorge
Velho, sanguinário capitão-do-mato, que passou a vida a caçar negros fugidos com uma ferocidade só comparável aos cães-de-fila.
Em Santos, no Jabaquara, também tivemos um
quilombo e nele pontificaram as figuras imortais de Quintino de Lacerda e José Teodoro dos Santos Pereira, mais conhecido
pela alcunha de Santos Garrafão. Quintino era negro, natural de Sergipe e fora alforriado pelo fazendeiro Antonio de Lacerda Franco.
Para o Jabaquara acorriam os negros fugidos do Planalto e mesmo do Rio e de Minas e
uma vez chegados ao rancho de Quintino jamais voltavam à senzala. Santos Garrafão era português, um lusitano em toda extensão da palavra,
que, tendo se proposto a trabalhar em favor dos escravos, outra coisa não fez enquanto não os viu libertos do jugo aviltante que os transformava em
bestas de carga.
País cuja economia se firmava no braço escravo e praticamente na monocultura da
cana-de-açúcar, o Brasil ficou estagnado e apenas beneficiou os grandes senhores de engenho. As catas de Minas Gerais, de Goiás e de Mato Grosso,
dado o pesado ônus cobrado pela coroa, pouco ou nada rendiam e os escravos, especialmente os que, filhos naturais dos senhores, se criavam nas
casas-grandes e estudavam lado a lado com seus irmãos brancos, foram organizando o movimento de emancipação.
O advento de nossa independência e a projeção da personalidade de
José Bonifácio de Andrada e Silva, outro santista que muito se preocupou com a libertação dos escravos, fez com que o Brasil firmasse em 1826
acordo com a Inglaterra estabelecendo que, dentro de três anos após a assinatura do tratado, o Brasil não mais faria tráfico de escravos africanos.
Esse acordo, para nossa vergonha, não foi cumprido e o Brasil continuou importando quanto escravo podia.
Em 1831, entretanto, o padre António Feijó, como membro de Regência Trina, referendava
lei que declarava livres todos os escravos que, a partir daquela data, entrassem em nosso território. Esta lei também não foi respeitada e o tráfico
prosseguiu.
Em 1845 tivemos o bill Aberdeen, promulgado pelo Parlamento britânico e que
impunha ao Brasil o cumprimento do acordo sobre a proibição do tráfico. Esse bill foi recebido com desagrado pelos brasileiros, que julgaram
violados os seus direitos de povo livre e soberano.
O trabalho dos abolicionistas, porém, não esmorecia. Na corte, no Senado, na Câmara,
nos meios intelectuais, a libertação dos escravos era tema obrigatório. Nesse ínterim, surgiu a idéia - logo concretizada - da imigração de colonos
europeus, particularmente italianos e alemães, que, profundos conhecedores da lavoura, se propunham a abandonar a pátria de origem em busca de novos
horizontes. Finalmente, em 1850, Eusébio de Queirós consegue fazer com que o senado aprove uma lei efetiva contra o tráfico de escravos.
Dez anos mais tarde, o Instituto dos Advogados toma a si a defesa dos cativos e
durante mais dez anos luta bravamente contra o comércio de carne humana. Finalmente, em 1871, com a Lei Rio Branco, veio o que conhecemos como
ventre-livre, isto é, os filhos de escravos não mais seriam cativos. Para os abolicionistas, entretanto, a Lei do Ventre Livre não bastava.
Desejavam esses abnegados a emancipação total do negro e após ingentes batalhas em que se destacaram nomes como os de Eusébio de Queirós, Varnhagen,
Rio Branco, Montezuma, Barão de Penedo, Urbano Pessoa, Perdigão Malheiro, Joaquim Nabuco, Pimenta Bueno, José de Alencar, Paulino de Sousa, Ferreira
Viana, Andrade Figueira, Zacarias, Itaboraí, Muritiba, Jaguari, Tobias Barreto, Castro Alves, José do Patrocínio, Rui Barbosa, João Clapp e muitos
outros, veio a libertação.
D. Pedro II, tido por uns como o mais "republicano dos imperadores" e por outros como
o "imperador caixeiro, viajante", assistia, entre apático e impotente, à luta que se travava entre abolicionistas e escravagistas. Sabia o velho
soberano que o movimento trazia em si não apenas a libertação dos escravos mas também a proclamação da República. Enfermo, em fins de 1887, a
conselho médico, parte para a Europa para tratamento de saúde, deixando à testa do governo, como regente, sua filha, a princesa Isabel Cristina
Leopoldina Micaela Rafaela Gonzaga, condessa D'Eu.
Finalmente, a 13 de maio de 1888, João Alfredo Corrêa de Oliveira, que substituíra o
barão de Cotegipe na presidência do Conselho, submete à assinatura da princesa regente a lei extinguindo a escravidão no Brasil, a famosa Lei Áurea.
Após a assinatura do importante documento, a princesa volta-se, sorridente, para
Cotegipe e diz:
- Então, sr. barão? Ganhei a partida!
- Mas perdeu o trono, alteza, replicou o velho estadista.
E a réplica se cumpriu um ano depois, em 15 de novembro de 1889 o
Brasil se tornava República e bania de seu território a família imperial.
Os negros foram libertados. Não houve lutas sangrentas como as que ocorreram nos
Estados Unidos da América do Norte. O preto, que já se havia mesclado com o branco e com os índios, passou a integrar o homem brasileiro. Entre nós,
não há segregação e os pretos nos dias que correm podem exercer todas as profissões e ocupar todos os postos que os demais brasileiros ocupam.
Existem, é bem verdade, espíritos retrógrados que ainda imaginam que a diferença do
homem está na pigmentação da pele. Para esses, entretanto, temos a Lei Afonso Arinos, que lhes ensina que no Brasil brancos, pretos, amarelos ou
vermelhos, todos somos iguais e estamos aptos para defender os direitos que nos são assegurados pela nossa Constituição de país democrático e
perfeitamente integrado no consenso das nações livres, das nações que crêem - queiram ou não os opressores - na vitória da verdadeira democracia!
Isabel, a Redentora, em foto tirada pouco depois da morte de d. Pedro II
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