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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - OS ANDRADAS - BIBLIOTECA
Clique na imagem para ir à página principal desta sérieAntónio Carlos (3)

A história do Patriarca da Independência e sua família

Esta é a transcrição da obra Os Andradas, publicada em 1922 por Alberto Sousa (Typographia Piratininga, São Paulo/SP) - acervo do historiador Waldir Rueda -,  volume I, em seu capítulo IV (António Carlos), com ortografia atualizada (páginas 465 a 477):
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Lutas do auditor com o capitão-general

No exercício do seu cargo de auditor de guerra, houve-se António Carlos com a mesma turbulência com que se conduzira na magistratura civil, armando a cada passo conflitos com as autoridades militares e seu respectivo chefe supremo, que era o capitão-general.

Tais conflitos começaram depois que, com a sua nomeação para juiz de fora, passou a residir definitivamente em Santos. Tantas vezes faltou, sob pretextos vários, aos conselhos de guerra em que devia de funcionar, embaraçando dest'arte a marcha regular dos trabalhos da justiça, que, por portaria de 12 de dezembro de 1806, a junta militar mandou excluí-lo da folha de pagamento até que o príncipe, a quem ia ser comunicado o acontecimento, resolvesse conforme a Lei. Parece que a solução achada foi considerá-lo em licença pelo tempo em que estivesse ausente dos conselhos. É, pelo menos, o que deduzimos de alguns avisos régios que consultamos no Arquivo de São Paulo.

Em setembro de 1807 instalou-se um conselho para julgar certo soldado da Legião de Voluntários Reais. António Carlos subiu a S. Paulo especialmente para tomar assento no tribunal, o que fez. Mas, um belo dia, sem prévia participação a ninguém, abandonou os trabalhos em meio, descendo para Santos, e limitando-se a comunicar ao presidente a sua resolução, em carta de 24 daquele mês, depois de partir.

O presidente, estomagado com a estranha descortesia, queixou-se por escrito ao capitão-general, não só desse procedimento insólito do auditor, como das palavras grosseiras e injuriosas que, em reunião, dirigira a outros membros do conselho e ao comandante dos Voluntários Reais, Anastácio de Freitas Trancoso.

E terminava, solicitando-lhe a nomeação de um auditor ad hoc, pois a presença do efetivo só servia para gerar o tumulto no tribunal [143]. Franca e Horta determinou que António Carlos continuasse servindo, pois só se poderia, na forma da Lei, nomear um capitão para auditor, quando o juiz faltasse por motivos justos; e esse não era o caso ocorrente.

Das pesadas injúrias que assacara ao comandante Trancoso e a alguns militares que faziam parte do dito conselho, deram vários oficiais e soldados, que se achavam presentes, uma atestação minuciosa, que foi levada ao capitão-general. Este, que para molestar António Carlos, não cogitava de meios, baixou uma portaria, determinando que o juiz ordinário de S. Paulo, João Lopes França, inquirisse judicialmente o auditor, que era, entretanto, seu superior na hierarquia judiciária, por ser juiz de fora e de órfãos! Não se concebe, portanto, mais espaventoso desrespeito à Lei e às sugestões do senso comum.

António Carlos explodiu de raiva, em ofício de 5 de novembro do referido ano, protestando que não podia ser questionado sem ordem expressa, terminante e direta do príncipe regente. E acrescentava que as coisas, sobre as quais se pretendia questioná-lo, tendo-se passado num tribunal, "haviam de ser sagradas e seu segredo inviolável, na forma dos decretos de 25 de janeiro de 1641 e de 9 de novembro de 1629".

Depois de estranhar o ato do capitão-general, concluía, naquele tom seco, incisivo, peremptório e arrogante que caracterizava sua organização combativa: "Todavia, neste país e no tempo atual, pode-se crer em quanta raridade houver" [144].

Ainda em setembro do mesmo ano, foi convocado outro conselho a que tinha de ser submetido o capitão-governador da Vila de S. Sebastião. António Carlos, solicitado a comparecer, escusou-se de fazê-lo a pretexto de não poder sair de Santos, onde o prendiam diligências requeridas na sua Vara de Juiz, segundo se lê na sua carta de 9 de outubro.

O presidente do conselho reiterou por duas vezes a solicitação, a que o auditor continuou desatendendo, pelos motivos que expôs em suas cartas de 20 e 30 de outubro, o que deu em resultado o adiamento da reunião. A 29 do mesmo mês, o referido presidente, tenente-coronel Francisco José da Silva, em judicioso ofício, rebateu as alegações apresentadas por António Carlos para não comparecer, pondo em dúvida a veridicidade das mesmas, e intimando-o a obedecer-lhe prontamente, sob ameaça de levar ao conhecimento do capitão-general o que se estava passando.

Retorquiu-lhe o auditor, em longo ofício de 11 do mês seguinte, estranhando que a probidade da palavra de um magistrado fosse posta em dúvida de maneira tão formal; que as razões, com que se escusara, eram reais e não aparentes, pois tinha de fazer a remessa, para Lisboa, dos dinheiros de ausentes, e estava atarefado com as respectivas contas; e que, de acordo com a lei, podia ele ser substituído em seus justos impedimentos. E em represália, rematava, comunicando-lhe que ia levar ao conhecimento do soberano o modo por que o dito coronel tratava oficialmente os ministros da Justiça.

Esta irregular situação se prolongou durante muitos anos. O auditor continuava caprichosamente a desatender aos seus superiores hierárquicos na disciplina militar, faltando consecutivamente aos conselhos convocados; e o capitão-general, ou diretamente, ou por intermédio das autoridades que lhe eram subalternas, continuava a aplicar teimosamente ao magistrado faltoso as penalidades regimentais em que incorria.

Afinal, em 1811, Franca e Horta não esteve com meias medidas e resolveu dar ao caso, definitivamente, uma solução radical. Fora convocado um conselho de guerra, sob a presidência do tenente-coronel Luís Manuel de Brito, para julgar o soldado Calixto José de Campos e outros, cujo processo vinha de adiamento em adiamento, havia longo tempo, por falta de comparecimento do auditor.

Este, ainda uma vez, na forma do costume, e apesar de já não ser mais juiz de fora, deixou de comparecer; pelo que, o capitão-general, por portaria de 2 de abril daquele ano, mandou considerá-lo como desertor, e nomeou ato contínuo para substituí-lo o juiz de fora de S. Paulo, dr. Estêvão Ribeiro de Rezende.

Os fatos que acabamos de narrar justificam o que de começo dissemos quanto ao malogro de António Carlos nas funções de magistrado, porquanto - repetimo-lo - a sua honestidade pessoal, o vigor do seu talento e a extensão e intensidade de seu preparo - atributos que nele realçavam luminosamente - não bastavam contudo ao pleno êxito de sua carreira na Judicatura.

A impulsividade de seu temperamento desabrido o arrastava para a luta; seu espírito se comprazia no tumulto revolucionário, na discussão belicosa, na polêmica eivada de paixões. Faltava-lhe, para a missão de julgador, a impessoalidade das atitudes serenas, elevadas e refletidas.

Nomeação para ouvidor de S. Paulo

Tão grande era, porém, o conceito de que gozava junto à Corte, por seus méritos inquestionáveis, que, não obstante os passados desatinos, obteve ele sobre o governador inimigo uma vitória estrondosa: a sua nomeação, em 1811, para o cargo de ouvidor da Comarca de S. Paulo, em substituição do desembargador doutor Miguel António de Azevedo Veiga. Este acontecimento, que nos não lembramos de ter visto narrado em nenhum historiador ou biógrafo que dos Andradas tivesse escrito, parece-nos, por isso, que ora é tornado público pela primeira vez; e explica-nos a razão porque, em mais de um documento da época, encontra-se o nome de António Carlos precedido do título de desembargador [145].

Infelizmente, os fados adversos lhe não permitiram que de seu novo e elevado cargo se empossasse. É agora que sua vida vai ser tragicamente abalada por uma tremenda provação que seria, como efetivamente foi, de graves conseqüências para o seu destino e para o seu futuro, porque se viu forçado a abandonar a pátria natal em busca de Pernambuco, onde se envolveria nos sucessos revolucionários de 1817, que o levaram à solitária nos cárceres da Bahia e quase o fizeram perecer no cadafalso.

***

Um crime nas trevas [NOTA SUPLEMENTAR]

Morava por esse tempo em nossa terra, numa das melhores casas da Rua Direita, não mui distante da residência da família Andrada, o negociante português José Joaquim da Cunha, natural de Lisboa, da idade de 32 anos, casado com uma distinta senhora santista, dona Bárbara Emília de Athayde Fernandes Pinheiro, batizada a 10 de janeiro de 1782.

Tinha o casal dois filhos apenas: José, de 2 anos, e Gustavo, de 1 ano. A esposa era filha legítima do capitão José Fernandes Martins e sua mulher dona Teresa de Jesus Pinheiro, e, portanto, irmã de José Feliciano Fernandes Pinheiro, mais tarde Visconde de S. Leopoldo [146].

Corria a noite de 11 de agosto de 1811. Como já houvesse terminado o período da Páscoa, o toque de recolher era dado às 8 horas, pelo sino da Matriz, e a rufos de caixa, pela Guarda do Quartel da Guarnição. Por esse motivo, e também porque a temperatura ainda se mantinha baixa naquela época do ano, não transitava então viv'alma pelas ruas escuras e caladas da solitária vilota.

Por volta das 9 horas, José Joaquim da Cunha, que se demorara a palestrar agradavelmente nalguma costumeira reunião amiga, aproxima-se descuidadamente da porta de sua casa para entrar. Nesse momento, dois vultos, que a intensa escuridão da noite ocultava e protegia, caem de surpresa sobre ele; e, enquanto um lhe prende fortemente os braços para tolher-lhe qualquer movimento de defesa, o outro vibra-lhe uma estocada mortal no coração.

Aos gritos de desespero da vítima, bradando por socorro, acodem, pressurosos e espantados, os diligentes escravos da família, conduzindo velas acesas; a alarmada esposa que o terror domina, e o padre Manuel Pinheiro Ribas, que vivia agregado ao mesmo fogo (N.E.: fogo tem aqui o sentido de núcleo familiar).

Ao trêmulo clarão das luzes, que o vento agitava sem cessar, doloroso quadro surpreendeu-lhes a visão: José Joaquim da Cunha jazia estatelado, imóvel, ofegante, na soleira da porta do seu lar. Do peito, que arquejava opresso, borbotava-lhe o sangue em ondas quentes; o palor da agonia lhe demudara rápido as feições; na vagueza do olhar quase sem brilho, melancólicas sombras já passavam, e dos lábios entreabertos, frases entrecortadas escapavam-lhe confusamente.

Assomam às sacadas alguns vizinhos curiosos, atraídos pelo insólito rumor, e, ao saberem do que se tratava, aproximam-se do desolado grupo, para prestar serviços, lembrar providências ou acalmar os ânimos aflitos. Um deles vai solicitamente bater à porta do dr. Joaquim José Freire, médico oficial do presídio, que morava na mesma rua, um pouco mais adiante.

Apesar de septuagenário e achacado das doenças próprias de sua idade, não se detêm um só instante em acudir com seus cuidados em emergência tão grave. Outro sai correndo em direção da Matriz, em cuja sacristia, cada noite, velava um padre, pronto para atender, a qualquer hora, aos que precisassem dos últimos socorros espirituais da Igreja. O sino paroquial quebrou funereamente o silêncio daquela fria noite de agosto, anunciando a saída do viático; os moradores das adjacências, abandonando o aconchego doméstico a que se tinham recolhido, incorporaram-se ao préstito, e foram, contritos e penalizados, até a residência do moribundo.

Os esforços empregados pelo velho clínico tinham sido infrutíferos; a sede e a natureza do ferimento não permitiam manterem-se inúteis ilusões quanto ao desfecho fatal, que não demoraria. De fato, quando o sacerdote chegou, só pôde absolvê-lo e ungi-lo, não lhe recebendo a confissão final, porque o seu estado impedia-lhe já de articular qualquer palavra. Apenas a respiração estertorosa agitava-lhe penosamente o tórax. Daí a pouco era cadáver.

A sensacional novidade correu célere de boca em boca; e dentro de poucas horas a casa de José Joaquim da Cunha enchia-se da melhor gente do lugar. Ali se viam o comandante da Praça, o juiz de fora, o juiz da Alfândega, o velho vigário colado da Matriz e da Vara, padre José Xavier de Toledo, curvado ao peso de seus setenta anos passados; o seu coadjutor, padre António Joaquim da Silva; muitos comerciantes e grande número de senhoras das famílias principais, que iam levar a dona Bárbara palavras de conforto, de estímulo e de resignação, implorando para a sua desdita a misericórdia de Deus.

No dia seguinte iniciou-se a devassa, para se descobrir o criminoso ou criminosos. Sob a presidência do juiz de fora, dr. João Carlos Leal, o processo corria com singular morosidade e, à medida que depunham as testemunhas e que as diligências se sucediam para esclarecimento da verdade, a opinião pública local começava a imputar a António Carlos a autoria principal de tão nefando delito.

Não sabemos em que se baseava essa teimosa convicção do povo, porque os autos do processo já não existem, e estamos reconstituindo os fatos de acordo com alguns documentos incompletos e fragmentários que se nos depararam no Arquivo Público deste Estado.

Concluída a devassa, o magistrado mandou prender os dois executores do crime, cujos nomes não constam dos documentos oficiais que a eles se referem e que existem naquele Arquivo. Mas a jovem e desditosa viúva de Joaquim José da Cunha, que vira desfeito em breve tempo seu ditoso lar e borrifadas do paterno sangue a inocência infantil de seus dois filhos, após três rápidos anos de feliz e harmoniosa vida conjugal, encontrou, na saudosa recordação desse passado gentil, os assomos de energia de que precisava para vingar seu marido e exigir a merecida punição de seus bárbaros algozes.

Oriunda de família conceituada e ilustre, como já fizemos ver, dispunha ela dos necessários meios para levar ao fim sua corajosa tarefa. E dominada por essa preocupação obsessora, mudou-se de Santos para a Corte do Rio, onde representou ao príncipe regente, pedindo-lhe que mandasse proceder a nova devassa.

Os mandatários do crime tinham sido presos, e estavam sendo devidamente processados: não assim o mandante que lhes armara o braço. E porque esta injustiça? Porque o juiz de fora de Santos, hóspede então de António Carlos, agira de modo a não apurar a responsabilidade do seu amigo na prática do homicídio que lhe imputavam. Argüindo, pois, de suspeito aquele magistrado e seus respectivos escrivões, pedia que o juiz de fora de S. Paulo ou o ouvidor da mesma comarca fossem encarregados de abrir nova e imparcial devassa.

Da enérgica representação de dona Bárbara de Athayde, que reproduzimos integralmente em nota, consta que o juiz de Santos era, então, hóspede do mandante do crime, o que nos deixa um tanto ou quanto perplexos e confusos. O juiz de que se trata devia ser o bacharel João Carlos Leal, nomeado para substituir António Carlos, por três anos e por decreto de 26 de agosto de 1809, confirmado pela carta patente de 17 de setembro do mesmo ano [147]; o qual foi, por sua vez, substituído pelo bacharel Agostinho Marques Perdigão, cuja patente se acha registrada a 12 de dezembro de 1812 [148].

Mas, João Carlos Leal, até pelo menos 1810, residia à Rua Direita em companhia de dois agregados e um escravo; ao passo que António Carlos morava com sua mãe em outra casa da mesma rua. A representação diz textualmente: "...pela justa razão de ser este ministro atualmente hóspede do mesmo agressor mandante".

O emprego daquele advérbio - atualmente - parece indicar que houve um momento em que o juiz não fora hóspede do referido mandante. Dar-se-á caso que, pelo fato de ser o dr. Leal solteiro, tivesse-o convidado António Carlos para viver em sua companhia e ao lado de sua mãe e irmãs, a fim de que a vida em Santos lhe corresse menos monótona e descaroável? Ou estaria o juiz de fora em gozo de licença, ao tempo do assassinato? Mas, neste caso, competia ao juiz ordinário substituí-lo; e o juiz ordinário, residente na terra, não podia também ser hóspede de António Carlos [149].

Da continuação da mesma frase deduz-se que os mandatários confessaram ter agido por ordem de António Carlos: "...pela justa razão de ser este ministro atualmente hóspede do mesmo agressor, mandante do referido assassínio, como é voz pública nada equívoca, visto estarem já presos os bárbaros mandatários".

D. João recebeu benignamente a petição da viúva e, por aviso régio de 9 de outubro de 1811, mandou que o ouvidor da Comarca de S. Paulo, desembargador Miguel António de Azevedo Veiga, se transportasse a Santos, a fim de proceder a nova devassa, por serem justas as razões apresentadas pela suplicante.

Felizmente para António Carlos, daí a poucos dias deixava as rédeas da administração Franca e Horta, seu implacável inimigo, que certamente lhe não pouparia novas perseguições e acintosas violências, a pretexto de apurar a sua responsabilidade, real ou aparente, no lamentável homicídio.

A 1º de novembro assumia o governo, em seu lugar, Luís Telles da Silva, marquês de Alegrete, que serviu até 20 de agosto de 1813. A este é que o marquês de Aguiar, ministro de Estado, transmitiu, por ofício de 6 de novembro, em nome do príncipe, ordens positivas a fim de que se tirasse outra devassa, rodeada de todas aquelas garantias de imparcialidade que eram indispensáveis para a completa e ampla averiguação do monstruoso atentado, em modo a serem colhidos pela Justiça os verdadeiros autores ou responsáveis.

Mas o ouvidor de S. Paulo se não quis encarregar da espinhosa diligência, e deu-se de suspeito. Alegava ele que, sendo apontado como mandante do crime António Carlos, que se achava então nomeado para substituí-lo nas funções da Ouvidoria - se o condenasse, taxa-lo-iam de ambicioso, que assim agia para se conservar por mais tempo no lugar; e se o absolvesse, tê-lo-iam como condescendente com aquele que viria em breve suceder-lhe. Em qualquer dos casos entendia que a sua honra ficava exposta à malevolência das opiniões injustas.

Ao seu ofício de escusa, cujos trechos principais transcrevemos integralmente em nota [150], e que foi dirigido ao governador em data de 18 de novembro de 1811, respondeu este, a 2 do mês seguinte, em nome e por ordem do marquês de Aguiar, fazendo-lhe saber que Sua Alteza não achava procedentes as razões de escusa e mandava-lhe que cumprisse fielmente as suas determinações.

Em vista da reiteração das ordens régias, o desembargador Azevedo Veiga passou-se em janeiro do ano seguinte a Santos, a iniciar novo processo, tendo recebido, em data de 8 do mesmo mês, das mãos do juiz de fora de S. Paulo, dr. Estêvão Ribeiro de Rezende, com quem se achavam para fazer certas diligências, os autos da primeira devassa [151].

Concluída que foi sua desagradável tarefa, remeteu o ouvidor de S. Paulo ao marquês de Alegrete, em data de 4 de março de 1812, todo o processado, inclusive os papéis da devassa a que procedera o juiz de fora de Santos e das investigações anteriormente feitas pelo juiz de fora de S. Paulo.

A 12 do referido mês, aquele governador os remetia ao intendente geral da Polícia do Rio, conforme ordens que da Corte recebera; e na mesma ocasião, e à mesma autoridade, remetia também os dois mandatários presos (cujos nomes, aliás, não eram declinados no ofício), acompanhados por uma escolta comandada pelo tenente Felisberto Joaquim de Oliveira César Leme.

Infelizmente, não se sabe onde param esses autos atualmente. Não os encontramos no Arquivo Nacional, onde era de presumir que estivessem guardados, uma vez que tinham sido enviados a uma repartição pública do Rio [152].

Ficamos, por isso, privados de saber qual o móvel do crime imputado ao nosso grande patrício, quais os nomes e a condição social dos que eram tidos como seus cúmplices, a marcha enfim de tão importante quão escandaloso processo.

Fuga, processo e prisão de António Carlos

O que por outras fontes se sabe é que António Carlos, quando o ouvidor de S. Paulo desceu a Santos para proceder a novo inquérito, desapareceu da Vila natal, indo homiziar-se na Freguesia de S. Gonçalo, na Praia Grande de Niterói, onde, talvez, como um protesto à prepotência das autoridades regalistas, fundou, com o patriota pernambucano José Mariano Cavalcanti de Albuquerque, uma Loja Maçônica, denominada Distinctiva, e cujo fim era a propaganda revolucionária das idéias republicanas [153].

Foi, afinal, preso, segundo nos informa nas seguintes linhas, o padre Dias Martins, cuja fervorosa admiração pelo paulista ilustres salientamos há pouco: "...seus ingratos patrícios até lhe imputaram um nefando assassinato! Por este crime, processado e preso, padeceu longos trabalhos; mas a Providência remunerou sua constância, benquistando-o com a justiça, com o público, e com o soberano, que o consolou com o Hábito da Ordem de Cristo, e escolheu-o para primeiro ouvidor, criador da Comarca de Olinda, em Pernambuco" [154].

Na Ouvidoria de Olinda

Desembaraçado dos penosos trabalhos e canseiras desse aborrecido processo, voltou a reassumir o seu cargo de auditor de guerra em S. Paulo; mas, parece que logo percebeu a incompatibilidade moral em que se encontrava com a opinião pública da Capitania, depois do deplorável sucesso em que se envolvera em Santos, e aceitou sua nomeação, em 1815, para ouvidor de Olinda, a fim de dar tempo a que as coisas fossem definitivamente esquecidas.

António Carlos "era acusado de ter deixado a terra paulista por crime de homicídio" - esclarece-nos o provecto historiador pernambucano, dr. Oliveira Lima, nas suas excelentes anotações à edição comemorativa da História da Revolução de Pernambuco, em 1817, de Muniz Tavares - anotações e história a que já nos referimos [155].

No novo cargo que fora ocupar longe de sua terra, parece que não mudou de gênio, nem de modo de agir como magistrado. Conta-nos o mesmo Oliveira Lima, na citada obra [156], que António Carlos, a propósito de questões jurisdicionais, escreveu em fins de 1816 ao juiz de fora do Recife, um certo bacharel Barradas, "uma carta cheia de grosseiras brutalidades".

Não era intenção do nosso emérito conterrâneo permanecer além do triênio legal naquela Comarca; antes, pretendia voltar a S. Paulo e aqui viver. É, pelo menos, o que se depreende claro das cartas que escreveu a Martim Francisco e José Bonifácio, logo depois que entrou a fazer parte do Conselho que assistia ao Governo Provisório da República Pernambucana, em 1817 - cartas que adiante reproduzimos na íntegra e comentamos.

A Martim lamentava-se de que, além de perder o cargo de ouvidor de Olinda, corria o risco de perder o ofício que tinha em S. Paulo; e a José Bonifácio dizia: "A Revolução de Pernambuco destruiu o meu lugar, e isto tendo eu só um ano de ocupá-lo...". O seu tempo como ouvidor terminava em 1818.

O ofício a que se refere na carta a Martim era a serventia vitalícia de Escrivão da Ouvidoria de S. Paulo; e não a sua profissão de advogado, como pensam erroneamente alguns escritores, por ignorarem que ele estava provido naquele cargo havia muitos anos.

***


NOTAS:

[143] A propósito mesmo de António Carlos, quando ouvidor de Olinda, comenta OLIVEIRA LIMA, nas Notas apensas à História da Revolução Pernambucana, de MUNIZ TAVARES, pág. 33: "Os Andradas eram de fato malcriados".

[144] No Arquivo Público do Estado (maço de juízes de fora e ouvidores).

[145] ROCHA POMBO (Hist. do Brasil, v. 5º) diz-nos que o ouvidor precisava ser casado. Mas António Carlos era solteiro, quando foi nomeado ouvidor de S. Paulo e depois de Olinda.

[146] Livro de batizados da Paróquia de Santos, dos anos de 1771-1801, folha 155. Recenseamento de Santos, 1810.

[147] Livro de Patentes Régias, nº 47, página 72v. (No Arquivo do Estado).

[148] Idem, nº 48, página 113 verso.

[149] É este o inteiro teor da representação da digna viúva ao príncipe regente: "Diz Bárbara Emília de Athayde Fernandes Pinheiro, viúva do falecido José Joaquim da Cunha, comerciante na Praça de Santos, Capitania de S. Paulo, que no dia 11 de agosto deste ano mataram cruelmente ao dito seu marido, com um instrumento de ferro, pelas 9 horas da noite pouco mais ou menos, ao entrar em sua própria casa. E como deu por suspeito o juiz de fora territorial e por conseqüência seus escrivões, pela justa razão de ser este Ministro atualmente hóspede do mesmo agressor, mandante do referido assassínio, como é voz pública em nada equívoca, visto estarem já presos os bárbaros mandatários, tiranos executores de tão lastimoso delito, pede que o juiz de fora de S. Paulo ou o ouvidor da mesma Comarca seja incumbido de tirar nova devassa". (A representação, que não traz data nem designa o lugar onde foi escrita, acha-se em original no Arquivo do Estado).

[150] "Pelo respeitável ofício que V. Exa. me dirigiu, na data de 6 do corrente, a que acompanhou por cópia o aviso régio de 9 de outubro próximo passado e representação de dona Bárbara Emília de Athayde Fernandes Pinheiro, viúva do falecido José Joaquim da Cunha, ordena-me V. Exa. dê cumprimento ao aviso régio, mandando proceder a nova devassa. Pondero a V. Exa. que a voz pública faz cúmplice, na qualidade de mandante daquele homicídio (não sei se justa ou injustamente) ao dr. António Carlos, que se acha despachado por Sua Alteza Real para vir suceder-me no lugar de ouvidor desta Comarca, que presentemente ocupo; em circunstâncias tais, persuado-me dar-se em mim legítima razão de suspeição para proceder à diligência ordenada, porquanto a minha honra não pode ficar ilesa, quer o processo obrigue ao dito meu sucessor, quer o absolva; no primeiro caso, posso ser notado de ambicioso para me conservar por mais tempo no lugar; e, no segundo, de condescendente com aquele que tem de suceder-me". (Original existente no Arquivo do Estado. Maço de ouvidores e juízes de fora).

[151] O ofício do juiz de fora de S. Paulo, comunicando ao governador a entrega da devassa ao dr. ouvidor da Comarca, está assim redigido: "Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor. Acuso a recepção do ofício de V. Exa., datado do dia de ontem, em que me ordena a remessa, ao doutor ouvidor desta Comarca, da Devassa, e todos os mais papéis relativos à morte de José Joaquim da Cunha, a fim de poder aquele ministro tirar nova Devassa, conforme a Real Determinação.

Acabo de satisfazer ao que V. Exa. me ordena, havendo remetido já ao mesmo doutor ouvidor tudo quanto existia em meu poder sobre este objeto. Deus Guarde a V. Exa. Cidade de S. Paulo, 8 de janeiro de 1812". (Original no Arquivo Público do Estado. Maço de ouvidores e juízes de fora).

[152] Aproveitamos a oportunidade para agradecer de público ao ilustrado escritor Escragnolle Dória, diretor do Arquivo Nacional, as diligências em que pessoalmente se empenhou na busca de tais papéis.

[153] MELLO MORAES - História das Constituições, t. 1º, pág. 16, cols. 1ª e 2ª. Cumpre-nos prevenir aos leitores que os informes de Mello Moraes, quando não baseados em documento escrito, devem-se receber com cautelosa reserva, porque a sua ingênita boa-fé dava acolhida a quantas mexeriquices e boatos levavam ao seu conhecimento.

[154] Obr. cit. página 31.

[155] Página 156, nota LIV.

[156] Página 33, nota IX.


NOTA SUPLEMENTAR: (N.E.: publicada no primeiro volume, págs. 559/560)

UM CRIME NAS TREVAS (página 469) - Na reprodução da cena de sangue em que foi vítima Joaquim José da Cunha - os fatores realidade e ficção concorreram em partes iguais. O dia e hora do crime; o assalto de emboscada; a natureza da arma; a morte quase instantânea do agredido; os socorros espirituais que recebeu - pertencem ao primeiro fator, pois são colhidos em documentos dignos de fé.

A assistência do dr. Freire; a intervenção da vizinhança; a atitude da família e mais moradores da casa; o comparecimento das pessoas mais importantes da sociedade local na residência do assassinado - pertencem ao segundo fator. São pormenores que imaginamos, mas que não contradizem os documentos reais existentes, porque as personagens que figuramos como presentes na ocasião e depois do assassinato faziam parte do meio social santista e quase todas moravam pelas imediações da casa de Joaquim José da Cunha, na mesma rua ou em ruas muito próximas, como, por exemplo, o vigário José Xavier de Toledo e o médico do presídio. Aquele foi quem passou o atestado de óbito e este é natural que fosse chamado para examinar o estado do ferido, uma vez que morava poucos passos adiante, mesmo na Rua Direita.

Completando as informações relativas ao crime, diremos que três anos depois, isto é, a 3 de agosto de 1814, os ossos do desafortunado negociante português, por provisão do bispo diocesano d. Matheus de Abreu Pereira, foram trasladados para a Corte do Rio de Janeiro [*], onde se achava então residindo sua dedicada viúva com seus dois filhos menores.

[*] Livro de Óbitos da Paróchia de Santos, de 1810 a 1840, folhas 11 verso.

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