António Carlos Ribeiro de Andrada
Imagem publicada com o texto
Herói muito superior à sua mesma fama! Quem ousará descrevê-lo?
Padre Joaquim Dias Martins
(Os Mártyres Pernambucanos, página 31)
|
Nascimento e batismo
s
antigos livros paroquiais da Diocese de S. Paulo não registram nos seus assentamentos de batismo senão a data da respectiva celebração. O dia do
nascimento não é neles mencionado, de maneira que para os efeitos civis, se provava então pelo dia do batismo. Quer isso dizer que naqueles tempos,
sendo mais rigorosa a disciplina eclesiástica a certos respeitos, os recém-nascidos eram levados à pia dentro do prazo máximo estipulado pelas leis
canônicas em vigor, embora talvez não fossem poucas as exceções impostas pelas circunstâncias a muitos pais. O que é certo, porém, é que semelhante
uso veio dificultar, no decorrer dos séculos, as investigações dos estudiosos de nossa história passada.
António Carlos, por exemplo, foi batizado a 1º de novembro de 1773 e essa data é a que
todos os seus biógrafos dão como sendo a do seu nascimento. Teria ele acaso recebido os santos óleos batismais no mesmo dia em que nasceu? É isso
possível, à vista das razões de ordem disciplinar a que nos referimos. Parece-nos, entretanto, pouco provável que a família, sem motivo ponderoso,
se não aproveitasse do prazo que a Igreja concede a todos indistintamente em casos tais.
Admitir-se-ia tamanha sofreguidão no cumprimento desse dever, que não era somente
religioso, senão também cívico, se porventura a vida do recém-nascido corresse iminente perigo, o que não aconteceu, porquanto, numa urgente
necessidade dessas, era natural que o ato fosse realizado em casa e não na igreja, principalmente que se tratava de pessoas gradas e de alta posição
e hierarquia na república (N.E.: palavra aqui empregada no sentido de "comunidade"). E nem
dos assentamentos consta nada a tal respeito.
O que é positivo é que António Carlos foi batizado a 1º de novembro
de 1773, na Matriz de Santos, pelo reverendo vigário Domingos Moreira e Silva; e por sinal que íamos ficando sem prova alguma desse acontecimento,
porque o celebrante morreu sem ter feito o indispensável registro no livro competente. Só depois de sua morte é que o coadjutor João Lim de Córdova,
"por huma lembrança achada na gaveta da Matriz", fez o assentamento devido e do qual
consta que foram padrinhos o dr. ouvidor José Gomes Pinto de Moraes, viúvo, e d. Rosa Jacintha da Silva, mulher do sargento-mor Manuel Ângelo
Figueira [107].
Estudos que fez em Santos e S. Paulo
Como seu irmão José Bonifácio, fez António Carlos na sua terra natal os escassos
estudos primários daquele tempo, sob as vistas de seu dedicado progenitor (N.E.: correto é genitor).
Concluídos que foram, passou-se para S. Paulo, a iniciar-se na aprendizagem das matérias que constituíam o curso secundário que o bispo, rei Manuel
da Ressurreição, mantinha à sua custa, na generosa intenção de auxiliar os bons engenhos literários que surgissem no meio paulista e, sobretudo, de
encaminhá-los para o serviço da Igreja Católica, se entremostrassem, através dos verdores da idade, verdadeira vocação sacerdotal.
Havia em S. Paulo, como de certo nas outras capitanias brasilienses, exceto Pernambuco
e Bahia, sensível escassez de padres capazes; daí o empenho e o zelo do virtuoso prelado em favorecer os jovens de famílias ilustres, dotados das
qualidades necessárias ao cumprimento dos deveres apostólicos.
Seu brilhantíssimo curso jurídico em Coimbra
Terminados os preparatórios, e como não sentisse
talvez pendor para o estado eclesiástico, que tão complexas virtudes exige e requer, seguiu para Portugal, onde após um tirocínio escolar tão
proveitoso quão brilhante, bacharelou-se em Direito e em Filosofia, pelas respectivas faculdades da Universidade de Coimbra, "abismando
na sua formatura os mais ilustres preceptores daquela universidade" - afirma o padre Joaquim Dias Martins
[108], o qual, a despeito de ser natural do reino, era apologista da independência do Brasil
[109] e devotado admirador dos Andradas.
Nas biografias e outros documentos que compulsamos, respeitantes a António Carlos, nos
não foi possível encontrar nenhuma referência à data em que se embarcou para Portugal, nem quando conquistou os seus diplomas; mas é fato que em
1799, isto é, aos 26 anos, já era bacharel formado.
Trabalhos que produziu durante sua residência em Portugal
Durante os anos de sua residência na metrópole, as produções de sua laboriosidade
mental cingiram-se exclusivamente a meros trabalhos de tradução de obras alheias, como facilmente se verifica das notas bibliográficas que andam
impressas em várias publicações desse gênero.
Em 1799, de colaboração com seu colega e nosso ilustre conterrâneo, José
Joaquim Fernandes Pinheiro, mais tarde visconde de S. Leopoldo, trasladou da língua inglesa ao português uma importante monografia que causara
sucesso na época, intitulada Cultura Americana, contendo informações pormenorizadas e úteis sobre os terrenos, o clima e a produção das
colônias britânicas da América do Norte, e das Índias Ocidentais. A obra é dividida em dois volumes, tendo Fernandes Pinheiro traduzido o primeiro e
António Carlos o segundo [110]; e é atualmente muito rara.
Na extinta Biblioteca Eduardo Prado existia um exemplar
[111], que, depois de vendidas retalhadamente as obras de que essa Biblioteca se compunha, não sabemos
a que mãos foi ter.
No mesmo ano de 1799, e por ordem do príncipe regente d. João, traduziu também do inglês
um opúsculo de 46 páginas, tratando das Propostas para formar por subscrição na Metrópole do Império Britânico uma instituição pública, destinada a
derramar e facilitar a geral introdução das úteis invenções mecânicas. Dessa obrinha, igualmente raríssima, a Biblioteca Eduardo Prado possuía um
exemplar [112].
Em 1800, ainda por ordem e sob os auspícios do mesmo príncipe, fez outra
versão do inglês para o vernáculo: - Considerações cândidas e imparciaes sobre a natureza do commércio de açucar e importância comparativa das
Ilhas Britânnicas e Francesas das Índias Occidentaes, nas quaes se estabelece o valor e conseqüência das Ilhas de Santa Luzia e Granada. É uma
edição de 210 páginas, com 3 mapas, hoje raríssima, e da qual a Biblioteca da Faculdade de Direito de S. Paulo possui um exemplar
[113].
No mesmo ano passou ainda do idioma inglês para o
nosso o Tratado de melhoramento da navegação por canaes, em que o sábio inventor norte-americano Roberto Fulton [114]
propõe o uso de planos inclinados em substituição das comportas nos canais navegáveis. É um pequeno folheto, acompanhado de dezoito estampas
ilustrativas, e raríssimo [115].
Suas faculdades poéticas
Honrou António Carlos as Musas, mas episodicamente, em excepcionais
manifestações de caráter esporádico, de modo que não logrou conquistar como José Bonifácio a fama de poeta. Por uma ou outra composição avulsa que
de sua reduzida produção em versos chegou até nós, pode-se perfeitamente ajuizar o que teria sido ele nesse delicado ramo das belas-letras, se
tivesse querido cultivá-lo com o entusiasmo, o devotamento e o esmero de um artista de vocação, desenvolvendo gradativamente os predicados
essenciais que lhe não faltavam [116].
Os seus inúmeros discursos proferidos nas Cortes Gerais de Lisboa e nas Assembléias
Parlamentares do Brasil provam que farte nossa afirmativa. Neles superabundam qualidades poéticas de alto quilate - inspiração fértil,
sentimentalidade espontânea, elocução fácil, imaginação viva que admiravelmente se casam com os surtos da eloqüência e os grandiosos arroubos
tribunícios.
Mas as circunstâncias que dominaram a evolução de sua careira pública, desde o seu
início, levaram-no a preocupar-se, mais diretamente e mais cedo que José Bonifácio, com o problema que primordialmente interessava à terra
brasileira no período que ora examinamos - a constituição da pátria independente; e tais preocupações de caráter antes prático do que idealístico
eram pouco propícias a desviar seus graves pensamentos para os campos matizados onde viçam e desabrolham as flores, de perfumados néctares sucosos,
que a Fantasia planta à margem de cada vida para embelecer-lhe e amimar-lhe os rudes e desgraciosos aspectos.
Sua capacidade oratória
A feição característica do talento de António Carlos é sem contestação a oratória, e
sobremodo difícil é apreciarem-se devidamente os méritos de um determinado orador, ainda mesmo que genial, somente pela exclusiva leitura dos
discursos que legou à Posteridade.
A oratória é uma arte em que a ação entra como elemento indispensável de êxito. Há
nela o que quer que seja de teatral, que exige para um julgamento definitivo a exibição pessoal do orador, porque a tribuna, afinal de contas, nada
mais é que um prolongamento do palco. Quanto melhor diz e representa a sua oração, mais o orador aguarda e conquista os plenos e vitoriosos aplausos
do auditório que o seu talento deslumbra.
Na tribuna, como no palco, interpretam-se todos os papéis e percorre-se toda a escala
das emoções humanas, desde a hilariante cena burlesca até os lances angustiosos do alto drama e às extremas violências da tragédia; é preciso,
portanto, que a cada situação, a cada peripécia nova, a cada novo argumento se amolde a máscara fisionômica nas suas variadas mutações e que os
gestos e as diferentes inflexões da voz se adjetivem com a matéria sobre a qual discorre a loquacidade do tribuno.
Os grandes mestres da eloqüência antiga, como os vários modernos oradores,
deixaram-nos sem dúvida alguma discursos que lemos com inegável prazer e justa admiração pelas idéias que encerram, pelos conceitos que nas suas
páginas vibram, pelos costumes e sentimentos que de certas quadras da história e e certos varões ou povos nos reproduzem e pintam com as cores da
exatidão e da verdade.
Ficaríamos, porém, embaraçados para decidir quem foi maior entre eles, Quintiliano ou
Cícero, em Roma; Eschines ou Demóstenes, na Grécia; António Cândido ou Alves Mendes, em Portugal; António Carlos ou Martim Francisco no Brasil,
porque nas peças oratórias de cada qual apenas lemos o que eles sentiam, ou pensavam, a propósito de um dado acontecimento ou indivíduo, mas não
temos diante de nós a sua própria personalidade agindo, lutando, desdobrando-se, vivendo nas multíplices transfigurações da tribuna, onde um gesto
oportuno e feliz ou uma certa modulação especial da voz dão a frases banais um relevo excepcional, um poder enérgico de persuasão que
intrinsecamente elas não têm. Em casos assim havemos de nos cingir estritamente aos juízos formulados e mantidos pela tradição.
Lendo-se atentamente e comparando-se os raros discursos de António Carlos
e Martim Francisco, que a insuficiente estenografia da época nos transmitiu, entende-se que os deste sobrepujam os daquele porque são mais corretos,
mais obedientes às necessidades do método e às regras clássicas da lógica; mais abundosos de idéias e literariamente mais formosos
[117].
Entretanto, quem adquiriu extraordinário renome como orador foi António Carlos, porque
lhe sobravam as qualidades tribunícias pessoais que só em grau deficiente possuía seu ilustre irmão: a presença dominadora, o ímpeto, a sonoridade
da emissão vocal, os arroubos do temperamento, a arte particular de bem dizer, o dom supremo da improvisação, esse precioso conjunto de atributos
que constituem a base, o equilíbrio, a estática da eloqüência. Quando, na segunda parte nos ocuparmos da agitada vida política desses dois Andradas,
teremos ocasião de referirmo-nos com maior amplitude às diferenciações qualitativas da mentalidade de cada um.
Estréia na vida pública. Escrivão da Ouvidoria. Auditor de Guerra
Ao voltar de Portugal, foi António Carlos provido pelo Governo na
serventia vitalícia do ofício de escrivão da Ouvidoria de S. Paulo, por decreto real de 30 de setembro de 1800 [118];
e a nomeação para esse cargo, ao qual ora se alude pela primeira vez, porque dele, até esta data, não fez menção alguma, que se saiba, nenhum
historiador ou biógrafo andradino - explica uma frase da carta que de Pernambuco, por ocasião do levante de 1817, escreveu a Martim Francisco, frase
que parecia inexplicável, que foi por vários cronistas interpretada erroneamente e à qual nos reportaremos daqui a pouco.
Anos depois, desdobrou o Governo a Ouvidoria da Comarca paulistana em Juizados de
Sesmarias e de Fora; e transformou a Relação do Rio em Casa da Suplicação, para a qual subiam os diferentes processos em grau de apelação, recurso
que dantes pertencia privativamente aos ouvidores.
Passou, pois, o cartório respectivo a dar pequeno lucro ou mesmo
insuportável prejuízo. Por esse motivo, António Carlos representou ao príncipe regente para que o dispensasse do pagamento, a que era obrigado, do
donativo anual de 400$000 réis aos cofres do Estado, à guisa de emolumentos, no que foi plenamente atendido por alvará de 6 de junho de 1815
[119].
Depois, requereu a Escrivania de Itu, naturalmente por ser mais rendosa.
Dela, porém, desistiu, antes mesmo de ser nomeado, indo para esse ofício José da Silva Carvalho [120].
Na mesma data do seu provimento como escrivão da
Ouvidoria de S. Paulo, isto é, por decreto régio de 30 de setembro de 1800, confirmado pela carta patente de 13 de novembro do dito ano, foi nomeado
auditor geral das Tropas da Capitania, com o posto e soldo de sargento-mor de infantaria, ao princípio [121],
passando pouco depois, e a requerimento seu, para a Cavalaria de Linha, cujo soldo era mais remunerativo [122].
A sua nomeação para semelhante cargo, fato de que até
hoje, ao que nos conste, não deu notícia nenhum de seus biógrafos ou historiadores, foi bem um alto e significativo testemunho de especial
consideração que lhe tributou a Coroa, como acertadamente o frisou o governador Franca e Horta na informação dada num requerimento dirigido por
António Carlos ao príncipe e ao qual depois nos referiremos [123]; porquanto
desde tempos imemoriais as funções de auditor geral eram inerentes ao cargo de juiz de fora de Santos, conforme claramente se depreende da longa e
obstinada disputa que a esse respeito tiveram por quase um ano o capitão-general Rodrigo César de Menezes e o ouvidor geral da Capitania,
desembargador Manuel de Mello Godinho Manso, de 1724 a 1725 [124].
E é natural que assim fosse, visto como naquela época e pelos motivos expostos
longamente no primeiro capítulo desta obra, era em Santos, praça forte, que estacionavam em defesa da Capitania tropas numerosas ou de onde partiam
elas para as expedições ou para a guerra. Mais tarde, foram tais funções acumuladas pelo ouvidor da Comarca de S. Paulo, com o posto de capitão de
Infantaria, em virtude do alvará régio de 26 de fevereiro de 1789, e assim se conservaram enquanto toda a tropa se achava aquartelada na capital.
Mas, depois que o Regimento de Infantaria passou para Santos, as funções
de auditor geral desdobraram-se, ficando o ouvidor de S. Paulo como auditor simplesmente da Legião de Voluntários Reais e o juiz de fora de Santos
como auditor das tropas da marinha, cada qual com o soldo de capitão de Infantaria [125].
Assim, pois, nomeado António Carlos auditor geral das Tropas da Capitania, cessaram
completamente as atribuições que nesse particular até então tinham o ouvidor de S. Paulo e o juiz de fora de Santos. Com sua dupla nomeação
simultânea para escrivão vitalício da Ouvidoria e auditor militar, estreou-se ele, portanto, na vida pública, na mesma capitania que lhe fora berço.
No desempenho dos árduos encargos de auditor iniciou a sua carreira na magistratura,
na qual, todavia, não tardou a fracassar estrondosamente, como de seguida se verá. Não lhe faltavam nesse posto nem talento, nem probidade, nem
saber; mas estes predicados não são privativos da função de magistrado e sim indispensáveis ao exercício regular de qualquer ocupação pública de
alta categoria e responsabilidade. Para juiz faltava-lhe a calma, a reflexão, a serenidade, o espírito isento de paixões perturbadoras.
Seu temperamento exaltado, que não respeitava conveniências e não temia os graves
resultados de suas atitudes exageradas e provocadoras, a incontinência indômita de suas expressões, nos desabafos pessoais ou nos documentos
oficiais - tornavam-no incapaz de exercer com o devido critério uma função qualquer na judicatura.
Daí, a longa série de conflitos que acidentaram a sua carreira, desde a Auditoria
Militar de S. Paulo até a Ouvidoria Civil e Criminal de Olinda, com escala pelo Juizado de Fora de sua terra natal - empregos nos quais deixou
patentes a sua índole belicosa, o seu ânimo combativo, a tresloucada veemência de seus impulsos, faculdades essas que o transformariam depressa num
dos grandes heróis da liberdade pátria, mas que o não recomendavam de forma alguma ao juízo da Posteridade inflexível como um tipo modelar de
magistrado.
Honesto como ele, e enérgico cumpridor de seus deveres
[126], era o governador Franca e Horta, com quem, no desempenho de suas funções na magistratura,
tantas e tão longas lutas sustentou, sem proveito para a causa pública, nem glória perdurável para seu próprio nome.
Da escassa documentação que conseguimos examinar diretamente em suas fontes originais,
não pudemos saber ao certo quando e porque começou a sua incompatibilidade com aquele capitão-general e da qual resultou estender-se a toda a
família Andrada o ódio votado inicialmente por António Carlos ao governador.
Este era um verdadeiro, um genuíno representante dos ideais políticos do passado, a
personificação típica do absolutismo governamental, o defensor inabalável da ordem antiga, não permitindo nem relevando desrespeitosos ataques de
quem quer que fosse contra as tradições estabelecidas.
O jovem Andrada, ao contrário, sentia dentro d'alma o tumultuoso referver das novas
aspirações derramadas pelo mundo; e no expô-las e defendê-las, com o ardor proselítico próprio de sua organização moral, não usava publicamente das
cautelas recomendáveis em quem exercia não pequena parcela de autoridade oficial na engrenagem da Administração da Capitania.
Um, era o passado, com todas as suas tendências autoritaristas; outro, era o futuro,
que se aprestava para as próximas campanhas em nome da Liberdade. Dessa incompatibilidade radical de princípios e de doutrinas nasceu provavelmente
a incompatibilidade das atitudes pessoais em que tanto se extremaram - o governador, para manter as prerrogativas de sua autoridade suprema; o
magistrado, para defender a independência do Poder Judiciário, como se este, no regime monárquico absolutista, não fosse apenas uma simples
dimanação do poder real, em cujas mãos onipotentes se enfeixavam todos os poderes e funções do Estado.
Dada a violência de caráter de cada qual, é fácil de compreender-se o desusado vigor
com que ambos agiriam na sustentação de seus pontos de vista divergentes.
Juiz de fora de Santos
Pouco mais ou menos cinco anos depois, por volta de 1805, era António Carlos nomeado
para o lugar de juiz de fora de Santos, acumulando-o com os outros dois que vinha exercendo desde 1800. Isto parece demonstrar, a um só tempo, a
escassez de homens capazes para desempenharem condignamente certos empregos na colônia e o crédito de que gozavam junto ao governo os Andradas,
graças, principalmente, ao prestígio de que José Bonifácio vivia cercado na metrópole, como um luminar das letras e das ciências.
Tendo de fixar sua residência na sede do termo, teria o novo juiz de fora posto algum
substituto idôneo na Escrivania da Ouvidoria de S. Paulo, da qual era serventuário vitalício, pois não poderia desempenhar os dois empregos
simultaneamente. Quanto à Auditoria de Guerra, não sendo freqüentes os Conselhos em que teria de funcionar, nada obstava que a acumulasse com a de
juiz de Santos. Entretanto, dessa acumulação resultavam conseqüências que agravaram as suas lutas com o governador Franca e Horta, como no momento
azado se verá.
Nada se pôde averiguar de certo quanto à data de sua nomeação para esse
cargo e os diversos historiadores limitam-se a dizer que serviu nele, sendo removido depois, em 1815, para a Ouvidoria de Olinda; mas fomos muito
mais felizes quanto à época e ao tempo em que exerceu suas funções: desde 10 de março de 1806, dia em que tomou posse perante a Câmara Municipal,
até 18 de março de 1809, um triênio completo [127].
É certo, porém, que se a sua posse de fato se verificou em março de 1806, a sua
nomeação data de princípios do ano anterior, porquanto no Arquivo Público do Estado se encontra, registrada no livro competente, uma provisão régia
de 24 de outubro do dito ano, mandando que o governador informe sobre o requerimento em que o novo juiz de fora pedia que os seus ordenados fossem
regulados conforme as disposições do Regimento da Comarca de S. Paulo, o que aumentaria consideravelmente as vantagens pecuniárias do cargo.
Para que a provisão chegasse a S. Paulo em outubro, era preciso que tivesse sido
enviada da metrópole em agosto; e para que em Lisboa se recebesse em agosto o requerimento, era indispensável que o tivessem expedido de S. Paulo em
maio, quando menos. Logo, a nomeação foi lavrada no começo de 1805, ou quem sabe até se nos últimos meses de 1804.
Franca e Horta informou desfavoravelmente à pretensão de António Carlos,
alegando que este, além do ordenado de 400$000 anuais e das braçagens [128],
no valor aproximado de 300$000 réis também anuais, ligadas às funções de juiz, ganhava já 55$000 réis anualmente como auditor geral da Gente de
Guerra, quantia equivalente ao soldo de sargento-mor de Cavalaria, que era o seu posto militar nas tropas.
Plausíveis se nos afiguram as razões apresentadas pelo governador, despótico,
autoritário, violento e vingativo, mas íntegro, sobretudo na aplicação dos públicos dinheiros. António Carlos, nos cargos de auditor e de juiz de
Santos, percebia a tentadora soma de 30 contos anuais, pouco mais ou menos, em moeda brasileira atual. Isto sem contar o ofício de escrivão da
Ouvidoria, o qual, com o correr e o natural progresso dos tempos, haveria finalmente de render alguma coisa, sem o que o serventuário efetivo não
teria achado quem o substituísse em tão prolongada interinidade.
Preenchido o triênio legal, foi António Carlos substituído pelo dr. João
Carlos Leal, solteiro, de 25 anos, que encontramos no desempenho do cargo ainda em 1810, não reaparecendo mais o seu nome no recenseamento de 1812 e
nos imediatamente posteriores [129].
Juiz de fora, segundo pensam alguns comentadores, era o magistrado
não nascido na terra onde exercia a judicatura e que não tinha parentes nela [130].
Pretendia-se dest'arte garantir a boa e integral distribuição da justiça por meio de seus órgãos especiais, o que demonstra que o próprio
absolutismo, apesar de seu caráter despótico e arbitrário, compreendia já que as decisões dos pleitos judiciais entre partes precisam ser
eficazmente amparadas por um certo número de regras e disposições estáveis.
Por esse motivo, ignorando em que época António Carlos servira como juiz
de Santos, é que alguns cronistas pensam que desse posto fora ele removido para a Auditoria de Olinda, na florescente Capitania de Pernambuco, e de
cujo cargo tomou posse em 1815 [131].
Ora, dos documentos que citamos, vê-se que o seu exercício em Santos é muito anterior
à sua nomeação para o Norte e nele se manteve durante três anos, não obstante o impedimento alegado, e resumido na dupla incompatibilidade em que se
encontrava para exercer a magistratura em sua terra, com a dignidade e a independência exigidas pelas leis reinícolas em vigor.
Aliás, não nos parece que existisse tal incompatibilidade, porque António
Carlos sustentou áspera e prolongada luta com o governador da Capitania, Franca e Horta, o qual mandou, por portaria, censurá-lo e repreendê-lo,
juntamente com seu irmão Martim Francisco, por considerá-los perniciosos à ordem pública [132].
É óbvio que se António Carlos estivesse desempenhando
ilegalmente as funções de juiz de fora em Santos - o seu poderoso adversário não deixaria de se aproveitar da circunstância para alijá-lo delas.
Além disso, antes de partir-se para Pernambuco a criar a comarca de Olinda, de que foi o primeiro ouvidor-corregedor [133],
e depois de ter sido juiz de fora em Santos, continuou exercendo as funções de auditor geral das Tropas de Linha e Milícias da Capitania, posto em
que vamos encontrá-lo servindo ainda em dezembro de 1814 [134].
Se, portanto, não foi a incompatibilidade para o exercício do referido cargo em sua
terra, que determinou a sua transferência para outra capitania, que graves causas é que a motivaram? É o que saberemos um pouco mais para diante.
Provado, com a sua nomeação, que o cargo de juiz
de fora não era reservado, como parece indicar a sua denominação típica, unicamente para os magistrados nascidos fora do termo que iam
jurisdicionar, resta-nos explicar a razão por que assim se intitulava a tais juízes. A hipótese de ROCHA POMBO [135]
afigura-se-nos perfeitamente aceitável: eram juízes de fora do Senado, pois que os juízes ordinários, eleitos anualmente com os vereadores,
faziam parte da Câmara.
***
Assinatura de António Carlos
Imagem publicada com o texto
NOTAS:
[107] Livro de
Baptizados da Paróchia de Santos do ano de 1773, folha 44 (No Arquivo da Cúria Metropolitana). Este coadjutor João Lim de Córdova era santista,
nascido em 1726. Morava em 1765 com sua mãe dona Páschoa Ribeira de Córdova, numa casa da travessa do Parto, hoje Rua Dom Pedro 2º.
A seu respeito assim se exprimia em 14 de setembro de 1777 o bispo diocesano Dom Frei Manuel
da Ressurreição na sua Relação Geral da Diocese de S. Paulo: "Natural da Vila de Santos, de idade sessenta anos.
É exemplar mas muito falto de ciência e só serve para presidente da Colegiada desta Igreja, que é nela o único sacerdote".
(Rev. do Inst. Hist. de S. Paulo, v. IV, pág. 399). Cópia de um manuscrito original oferecido ao mesmo Instituto por Eduardo Prado.
Na data em que foi escrita a Relação mencionada, o padre Córdova não exercia
mais o cargo de coadjutor, que estava confiado ao padre Luís José dos Reis, também santista, e terceiro filho do sargento-mor Torquato Teixeira de
Carvalho, cujos dados biográficos demos na nota nº 1 da página 300.
O sargento-mor Manuel Angelo Figueira, marido de dona Rosa, era negociante e
possuía uma fortuna orçada em 2.000$000 de réis - pouco mais ou menos 80:000$000 em dinheiro atual. Consta mais da aludida Relação que dos
137 sacerdotes existentes na Diocese, 50 eram "inválidos, decrépitos e ineptos". A Vila de
Santos fornecia ao Bispado um contingente de 13 clérigos nela nascidos.
[108] Os Mártyres
Pernambucanos, obra póstuma, editada em 1830 pelo dr. F. Lopes Neto, amigo do autor. Impressa em Pernambuco, na tip. de F.C. de Lemos e Silva.
[109] SACRAMENTO BLAKE -
Obra citada, 4º v., pág. 123.
[110] SACRAMENTO BLAKE -
Obr. cit., V. I, página 128.
[111] REMÍGIO DE BELLIDO
- Obr. cit. página 35, nº 1.
[112] Idem, ibidem, nº
2.
[113] REMÍGIO DE BELLIDO
- Ibidem nº 4.
[114] No Diccionário
de Educação e Ensino (V. II, página 495, 1ª coluna) dá-se erradamente Fulton como irlandês.
[115] O sr. REMÍGIO DE
BELLIDO (obr. cit. pág. 35, nº 3) registra por inadvertência esta obrinha como original de quem só foi seu tradutor.
[116] Um dos seus
sonetos mais gabados é o que damos em seguida, composto em honra de sua terra natal. Está incompleto, pois lhe faltam os dois primeiros versos do
último terceto. Ei-lo:
Do Itororó a náiade formosa,
Eleva - ó pasmo! - da urna mal lavrada
A cabeça gentil, engrinaldada
de madressilva, de mosqueta e rosa.
Na lapa branca pondo a mão mimosa,
De santo entusiasmo arrebatada,
Com a face de júbilo orvalhada,
Exclama, a voz erguendo sonorosa:
"Exulta, Santos, Vila nobre, exulta!
De filhos teus a não vulgar ciência,
Ganhou renome pela Europa culta.
...............................................
...............................................
Fundaram filhos teus a Independência!
[117] O atual dr. MARTIM
FRANCISCO FILHO, em livro recentíssimo (Contribuindo, pág. 140) esclarece que o velho Martim Francisco escrevia e decorava os seus discursos,
e achava censurável que António Carlos confiasse nos recursos da improvisação. Explicada está, portanto, a razão por que as orações parlamentares
daquele parecem melhores que as deste.
[118] Livro de
Patentes da Capitania de S. Paulo, anos de 1814 a 1817, folha 67 (no Arquivo Público do Estado de S. Paulo).
[119] Livro de
Patentes, cit.
[120] Ibidem.
[121] Livro de
Patentes da Legião de Voluntários Reais, da qual era comandante o tenente-coronel António Luís da Rocha Pereira Guimarães. Anos de 1775 a 1809.
Folhas 113 a 115 (no Arquivo Público do Estado). Nele se inscreviam as ordens dos capitães-generais.
[122] Idem, página 223.
[123] Registro de
correspondência dos capitães-generais (no Arquivo).
[124] Docs. ints.,
vol. 20, páginas 123 a 177.
[125] Documento
manuscrito existente no Arquivo Público de S. Paulo.
[126] MARTIM FRANCISCO
FILHO - Contribuindo, págs. 189 e seguintes.
[127] Livro de
Vereanças da Câmara de Santos (1800 a 1812, folha 23, verso). No termo de juramento e posse, António Carlos assinou-se Sylva.
[128] Não encontramos
nos melhores dicionários da língua a significação deste vocábulo em relação à matéria de que se trata.
[129] No maço nº 119,
onde estão guardadas as listas nominais dos censos de 1801 a 1822, não encontramos a de 1811, só existindo os mapas numerais desse ano.
[130] O juiz de fora,
que durante o tempo de seu mandato não podia ausentar-se do território de seu termo, tinha competência, no crime, para conhecer dos processos por
injúrias verbais, homicídios, violência carnal, incêndio, moeda falsa, furtos etc.; e no cível tinha alçada até 4$000 réis nos imóveis e até 5$000
réis nos móveis; e nas penas até a quantia de 1$000 réis, julgava sem apelação nem agravo. Competia-lhe ainda obrigar o alcaide e os vereadores a
darem guarda às localidades, de dia e de noite, e os almotacéis a bem cumprirem suas obrigações e proverem às subsistências da população,
estabelecendo preços por que as estalagens e hospedarias deveriam reger-se. Traziam vara branca, como símbolo de sua jurisdição (ROCHA POMBO -
História do Brasil, vol. 5º, parte 5ª, cap. 6º, pág. 419).
[131] J. J. RIBEIRO -
Obr. cit. V. II, parte 2ª, pág. 295, col. 1ª, nota nº 2.
[132] A. D'ESCRAGNOLLE
TAUNAY - A Independência e os Andradas (Memorial para o Monumento de Santos), pág. 24; MARTIM FRANCISCO - Contribuindo, pág. 191.
[133] PADRE JOAQUIM DIAS
MARTINS - Obra citada, pág. 31.
[134] MANUEL DA CUNHA DE
AZEVEDO COUTINHO SOUSA CHICHORRO - Memória em que se mostra o estado económico, militar e político da Capitania Geral de S. Paulo, quando do seu
Govêrno tomou posse, a 8 de Dezembro de 1814, o Illmo. e Exmo. Sr. D. Francisco de Assis Mascarenhas, Conde de Palma (Revista do Inst. Hist.
do Brasil, 2º trimestre de 1873, pág. 204).
[135] História do
Brasil - V. 5º, parte 5ª, capit. VI, pág. 419, nota 2. |