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Sílvio Caldas na voz de Sílvio Caldas
"Senhoras e senhores: Chão de Estrelas tem a honra de apresentar Sílvio Narciso de Figueiredo Caldas"
Narciso de Andrade Colaborador
Ao morrer outro dia, na fronteira dos oitenta, Sílvio Caldas ainda não tinha completado 18 anos de idade. Conservou-se o menino do subúrbio carioca cheio de truques e malícia. Muita mumunha, palavra que ele próprio inventou e passou a enriquecer o vocabulário popular. Mumunha, papo ondulado de malandro no lance da embromação. Será? Ou será conversa enrolada de candidato pedindo voto, engrandecendo as intenções sem pretender cumpri-las? Talvez um papo de esquina na madrugada suburbana ou um certo jeito malandro de enrolar o próximo?
Somente ele, o senhor Sílvio Narciso de Figueiredo Caldas, filho de Antônio Narciso Caldas e de D. Alcina Figueiredo Caldas, nascido em 1908 em São Cristóvão, Rio de Janeiro, poderia explicar o sentido exato do termo a escorrer a seiva da malícia, sob o disfarce das consoantes em fila indiana para proteger as veladas vogais. Mumunha, uma das mais irônicas palavras que conheço.
Essas coisas a gente só aprende na escola da malandragem, dando-se ao termo seu sentido original de esperteza, vivacidade. Aquele negócio de fulano é escolado, não entra em fria, não põe a mão em cumbuca. E por aí vai. Sílvio Caldas, sem perder a dignidade de criatura eleita, tinha curso superior, com mestrado, doutorado e tudo, nessa arte dificílima. Que nele se sublimava porque sabia contar casos e histórias como pouca gente.
Mumunha, palavra que Sílvio inventou, é uma das mais irônicas que conheço.
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Apoiado por uma memória cristalina, dicção perfeita, uso exato e acentuação correta das palavras, fascinava qualquer auditório. Nasceu com o dom e a manha, mas se dedicava à sua arte incansavelmente, procurando sempre a forma mais adequada à colocação do texto na canção e a pronúncia correta das palavras.
Várias vezes o encontrei no escritório do saudoso advogado Derosse de Oliveira, seu grande amigo e estudioso de nossa música popular, discutindo a forma melhor de pronunciar esta ou aquela palavra. Mário de Andrade considerava-o o intérprete de melhor pronúncia de nossa música popular.
Histórias de Sílvio - Num espetáculo em São Paulo, ele contou esta: "Visitando parentes num subúrbio, que eu também sou suburbano, notei que na esquina, no botequim - mesmo, autêntico, hoje é que é bar, lanchonete -, na porta do boteco, jovens de 16, 18, 20 anos falavam uma gíria interessante.
"Um dizia pro outro assim: arranjei uma cabrocha que dança maxixe. E o outro: que joga no bicho. Meu amigo me disse: porque você não faz um samba aproveitando esse negócio, essa gíria aqui do subúrbio? Fui pra cidade, encontrei o Noel e propus fazermos um samba juntos naquele estilo. Tá, você faz a primeira e eu faço a segunda. Ficou assim:
Eu tenho uma cabrocha que mora no Rocha e não relacha Sei que joga no bicho que dança maxixe
E Noel:
Tem um filho macho com cara de tacho e além disso é coxo Qualquer dia eu racho esse cara de mocho
E mais esta, envolvendo o Cego Aderaldo, notável repentista, e Rogaciano Leite, poeta que viveu durante algum tempo aqui em Santos, como jornalista. Cego Aderaldo precisava de um jovem para lhe servir de escada em suas cantorias pelas feiras do Nordeste, e levava o Rogaciano que, meio chateado da função, resolveu improvisar na base do "eu estou carregando esse velho como um sinapismo, com seu reumatismo". Qualquer coisa assim. Cego Aderaldo não deixou por menos:
Andei procurando um besta um besta que fosse capaz De tanto procurar um besta encontrei esse rapaz que não serve nem pra besta porque é besta demais.
Histórias curiosíssimas também poderiam ser rememoradas em razão do seu conhecido desprezo pelos compromissos. Bastava ser convidado para uma pescaria, uma boa peixada, e sua agenda de compromissos ficava zerada. Mas como ele era o Sílvio Caldas, o seresteiro querido, que ia hoje mas amanhã já estava de volta, tudo era perdoado. A gente sabia: o canário está cumprindo seu destino. Cantando em algum lugar para o povo e as estrelas.
Sílvio Caldas nunca foi cantor - Não se assustem. Quem disse isso foi Fernando Lobo. Mas somente para acentuar assim: Sílvio Caldas nunca foi cantor, sempre foi um passarinho. Tem asas, voa, e tem o céu, a terra e o mar também como seus caminhos de jornadas.
Foi cantor, sim, e um dos melhores que o Brasil teve em todos os tempos. Além de intérprete perfeito de nosso cancioneiro popular, era igualmente compositor, tendo criado melodias de rara beleza, que ficaram gravadas na memória brasileira. Por questão de espaço, vou lembrar apenas algumas, começando pela pureza tranqüila de Chão de Estrelas, com o verso famoso tu pisavas os astros distraída, consagrado pela admiração de Manuel Bandeira.
Sílvio, autor da melodia colocada sobre a letra de Orestes Barbosa, com quem criou várias belas canções: Suburbana, Arranha-Céu, Torturante Ironia, Quase Que Eu Disse, Vestido de Lágrimas, Serenata, A Única Rima. E Sílvio foi criando música desde os tempos heróicos, quando o violão era a marca do capadócio, como no samba Na Aldeia, passando por todas as fases da história de nossa MPB - Arrependimento, Violões em Funeral.
Em 1927, já cantava na Rádio Mayrink Veiga, e daí por diante podemos marcar, ano após ano, pelos sucessos das gravações deste extraordinário intérprete. De voz nublada e deliciosa, na definição perfeita do poeta Orestes Barbosa, em seu livro imprescindível Samba, lançado em 1933 e reeditado pelo MEC-Funarte em 1978.
Com essa voz deliciosa, Sílvio encantou muitas noites santistas. Era um perfeito sonhador, e durante certo tempo pensou em fundear um navio na entrada da barra para nele montar um restaurante, um lugar de encontro onde seus inúmeros amigos santistas pudessem se encontrar e bater um papo legal. Na realidade, Sílvio estava sempre sonhando e muitas vezes não conseguiu ver seu sonho realizado, como na luta pela criação de uma cadeira de MPB no curso superior de nossas faculdades, cujo currículo costuma ser linear, cansativo e alienado.
Sílvio viveu, Sílvio criou, Sílvio cantou. Saudade.
Chão de Estrelas funcionou desde 1972 no bairro do Embaré, próximo à praia Anúncio na publicação Santos-77 Índice Turístico - Touristic Index, editada e distribuída em 1977 por União Santista de Economia/Nivaldo Conrado
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