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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - VISITANTES
Sílvio Caldas encantou as noites santistas

Os noctívagos santistas da chamada Velha Guarda, principalmente, lamentaram muito a morte do cantor Sílvio Caldas, tão prestigiado na Cidade que havia até mesmo uma casa de espetáculos chamada Chão de Estrelas, título de uma das mais famosas canções por ele interpretadas. E ali se apresentou inúmeras vezes o próprio criador da palavra mumunha. Uma de suas visitas à cidade foi registrada pelo jornal santista A Tribuna, em 26 de março de 1939, na página 9 (ortografia atualizada nesta transcrição):

Sylvio Caldas posa para a nossa objetiva, cercado de fãs, no estúdio da P. R. G. 5, ontem, quando ali esteve cumprindo magnífico programa

Foto publicada com a matéria

Sylvio Caldas cantou ontem ao microfone da PRG5

O popular cantor carioca foi alvo de significativa manifestação nos estúdios da Rádio Atlântica

O público santista ouviu ontem, através do microfone da P. R. G. 5, em dois magníficos programas, o popular cantor do broadcasting carioca Sylvio Caldas.

A atração de Sylvio Caldas ao microfone da Rádio Atlântica fez afluir aos estúdios daquela emissora uma grande legião de fãs do "caboclinho". Quando Sylvio Caldas terminou seu primeiro programa, foi alvo de ruidosa e significativa manifestação. Inúmeras senhorinhas abordaram o aplaudido cantor, umas solicitando fotografias daquele astro do rádio nacional, outras pedindo um autógrafo para os seus álbuns. E Sylvio Caldas, com a sua simplicidade de maneiras, a todos atendia, recebendo, ao deixar o estúdio, uma verdadeira aclamação por parte dos seus admiradores.

O auditório da G-5 ficou repleto, desde as 21 horas, quando Sylvio Caldas cumpriu o seu primeiro programa, até as 22,15 horas, quando finalizou o seu segundo programa.

Dois dedos de prosa com Sylvio Caldas – Ontem, pela manhã, a nossa reportagem teve oportunidade de avistar-se com Sylvio Caldas, logo após haver o "caboclinho" descido do Araraquara, procedente da capital do país.

O aplaudido cantor carioca destina-se a Porto Alegre, onde vai cumprir um excelente contrato de trinta dias na Rádio Difusora.

Em sua passagem por Santos, Sylvio Caldas esteve na rádio Atlântica, entabulando negociações para a audição de ontem, cumprindo, assim, um seu compromisso com a G-5.

Depois de visitar a "dinâmica", Sylvio Caldas realizou curto passeio pela cidade, seguindo depois, acompanhado do repórter da A Tribuna e do gerente da Rádio Atlântica, sr. José Luís Baccarat, para uma visita à praia.

Depois o "caboclinho", que é exímio nadador, não resistiu a um banho de mar e, acompanhado de um amigo que com ele viaja para a capital gaúcha, recordou-se das praias cariocas, lançando-se às ondas tranquilas que vinham lentamente espraiar-se no Gonzaga…

À noite, cercado de inúmeros fãs, Sylvio Caldas cantou ao microfone da G-5.

* * *

Dentre as novidades que leva para a capital gaúcha, Sylvio Caldas se referiu às seguintes: "Número Um", canção, de Benedicto Lacerda e Mario Lago; "Ela é", samba, de Ataulpho Alves e Claudionor Cruz; e "Não te conheço mais", de Peter Pan e Mario Lago.

O Araraquara prosseguirá viagem para o Sul, hoje, devendo zarpar deste porto às 14 horas. Um numeroso grupo de admiradores de Sylvio Caldas lhe promoverá, por ocasião de sua partida, significativa manifestação.

N. E.: o navio Araraquara , do Lloyd Nacional, seria afundado três anos depois dessa viagem, em 16/8/1942, atingido por um torpedo, em meio à Segunda Guerra Mundial.

Quando da morte de Sílvio Caldas, o escritor Narciso de Andrade dedicou-lhe uma de suas crônicas, publicada no jornal santista A Tribuna em 3 de maio de 1998:

Foto publicada com a matéria

Sílvio Caldas na voz de Sílvio Caldas

"Senhoras e senhores: Chão de Estrelas tem a honra de apresentar Sílvio Narciso de Figueiredo Caldas"

Narciso de Andrade
Colaborador

Ao morrer outro dia, na fronteira dos oitenta, Sílvio Caldas ainda não tinha completado 18 anos de idade. Conservou-se o menino do subúrbio carioca cheio de truques e malícia. Muita mumunha, palavra que ele próprio inventou e passou a enriquecer o vocabulário popular. Mumunha, papo ondulado de malandro no lance da embromação. Será? Ou será conversa enrolada de candidato pedindo voto, engrandecendo as intenções sem pretender cumpri-las? Talvez um papo de esquina na madrugada suburbana ou um certo jeito malandro de enrolar o próximo?

Somente ele, o senhor Sílvio Narciso de Figueiredo Caldas, filho de Antônio Narciso Caldas e de D. Alcina Figueiredo Caldas, nascido em 1908 em São Cristóvão, Rio de Janeiro, poderia explicar o sentido exato do termo a escorrer a seiva da malícia, sob o disfarce das consoantes em fila indiana para proteger as veladas vogais. Mumunha, uma das mais irônicas palavras que conheço.

Essas coisas a gente só aprende na escola da malandragem, dando-se ao termo seu sentido original de esperteza, vivacidade. Aquele negócio de fulano é escolado, não entra em fria, não põe a mão em cumbuca. E por aí vai. Sílvio Caldas, sem perder a dignidade de criatura eleita, tinha curso superior, com mestrado, doutorado e tudo, nessa arte dificílima. Que nele se sublimava porque sabia contar casos e histórias como pouca gente.

Mumunha,
palavra que Sílvio inventou,
é uma das mais irônicas que conheço.

Apoiado por uma memória cristalina, dicção perfeita, uso exato e acentuação correta das palavras, fascinava qualquer auditório. Nasceu com o dom e a manha, mas se dedicava à sua arte incansavelmente, procurando sempre a forma mais adequada à colocação do texto na canção e a pronúncia correta das palavras.

Várias vezes o encontrei no escritório do saudoso advogado Derosse de Oliveira, seu grande amigo e estudioso de nossa música popular, discutindo a forma melhor de pronunciar esta ou aquela palavra. Mário de Andrade considerava-o o intérprete de melhor pronúncia de nossa música popular.

Histórias de Sílvio - Num espetáculo em São Paulo, ele contou esta: "Visitando parentes num subúrbio, que eu também sou suburbano, notei que na esquina, no botequim - mesmo, autêntico, hoje é que é bar, lanchonete -, na porta do boteco, jovens de 16, 18, 20 anos falavam uma gíria interessante.

"Um dizia pro outro assim: arranjei uma cabrocha que dança maxixe. E o outro: que joga no bicho. Meu amigo me disse: porque você não faz um samba aproveitando esse negócio, essa gíria aqui do subúrbio? Fui pra cidade, encontrei o Noel e propus fazermos um samba juntos naquele estilo. Tá, você faz a primeira e eu faço a segunda. Ficou assim:

Eu tenho uma cabrocha
que mora no Rocha
e não relacha
Sei que joga no bicho
que dança maxixe

E Noel:

Tem um filho macho
com cara de tacho
e além disso é coxo
Qualquer dia eu racho
esse cara de mocho

E mais esta, envolvendo o Cego Aderaldo, notável repentista, e Rogaciano Leite, poeta que viveu durante algum tempo aqui em Santos, como jornalista. Cego Aderaldo precisava de um jovem para lhe servir de escada em suas cantorias pelas feiras do Nordeste, e levava o Rogaciano que, meio chateado da função, resolveu improvisar na base do "eu estou carregando esse velho como um sinapismo, com seu reumatismo". Qualquer coisa assim. Cego Aderaldo não deixou por menos:

Andei procurando um besta
um besta que fosse capaz
De tanto procurar um besta
encontrei esse rapaz
que não serve nem pra besta
porque é besta demais.

Histórias curiosíssimas também poderiam ser rememoradas em razão do seu conhecido desprezo pelos compromissos. Bastava ser convidado para uma pescaria, uma boa peixada, e sua agenda de compromissos ficava zerada. Mas como ele era o Sílvio Caldas, o seresteiro querido, que ia hoje mas amanhã já estava de volta, tudo era perdoado. A gente sabia: o canário está cumprindo seu destino. Cantando em algum lugar para o povo e as estrelas.

Sílvio Caldas nunca foi cantor - Não se assustem. Quem disse isso foi Fernando Lobo. Mas somente para acentuar assim: Sílvio Caldas nunca foi cantor, sempre foi um passarinho. Tem asas, voa, e tem o céu, a terra e o mar também como seus caminhos de jornadas.

Foi cantor, sim, e um dos melhores que o Brasil teve em todos os tempos. Além de intérprete perfeito de nosso cancioneiro popular, era igualmente compositor, tendo criado melodias de rara beleza, que ficaram gravadas na memória brasileira. Por questão de espaço, vou lembrar apenas algumas, começando pela pureza tranqüila de Chão de Estrelas, com o verso famoso tu pisavas os astros distraída, consagrado pela admiração de Manuel Bandeira.

Sílvio, autor da melodia colocada sobre a letra de Orestes Barbosa, com quem criou várias belas canções: Suburbana, Arranha-Céu, Torturante Ironia, Quase Que Eu Disse, Vestido de Lágrimas, Serenata, A Única Rima. E Sílvio foi criando música desde os tempos heróicos, quando o violão era a marca do capadócio, como no samba Na Aldeia, passando por todas as fases da história de nossa MPB - Arrependimento, Violões em Funeral.

Em 1927, já cantava na Rádio Mayrink Veiga, e daí por diante podemos marcar, ano após ano, pelos sucessos das gravações deste extraordinário intérprete. De voz nublada e deliciosa, na definição perfeita do poeta Orestes Barbosa, em seu livro imprescindível Samba, lançado em 1933 e reeditado pelo MEC-Funarte em 1978.

Com essa voz deliciosa, Sílvio encantou muitas noites santistas. Era um perfeito sonhador, e durante certo tempo pensou em fundear um navio na entrada da barra para nele montar um restaurante, um lugar de encontro onde seus inúmeros amigos santistas pudessem se encontrar e bater um papo legal. Na realidade, Sílvio estava sempre sonhando e muitas vezes não conseguiu ver seu sonho realizado, como na luta pela criação de uma cadeira de MPB no curso superior de nossas faculdades, cujo currículo costuma ser linear, cansativo e alienado.

Sílvio viveu, Sílvio criou, Sílvio cantou. Saudade.


Chão de Estrelas funcionou desde 1972 no bairro do Embaré, próximo à praia
Anúncio na publicação Santos-77 Índice Turístico - Touristic Index,
editada e distribuída em 1977 por União Santista de Economia/Nivaldo Conrado

Chão de Estrelas
(Letra: Orestes Barbosa)


Chão de Estrelas
em versão instrumental

Minha vida era um palco iluminado,
Eu vivia vestido de dourado,
Palhaço das perdidas ilusões.

Cheio dos guizos falsos da alegria,
Andei cantando a minha fantasia
Entre as palmas febris dos corações.

Meu barracão no morro do Salgueiro
Tinha o cantar alegre de um viveiro,
Foste a sonoridade que acabou.

E hoje, quando do sol a claridade
Forra meu barracão, sinto saudades
Da mulher, pomba rola que voou.

Nossas roupas comuns dependuradas
Na corda, qual bandeiras agitadas,
Pareciam um estranho festival.

Festa dos nossos trapos coloridos
A mostrar que nos morros mal vestidos
É sempre feriado nacional.

A porta do barraco era sem trinco,
Mas a lua furando nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão.

Tu pisavas nos astros distraída,
Sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, o luar e o violão.

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Sílvio Caldas e "Chão de Estrelas", na TV Cultura, em 1978

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