Getúlio, numa de suas visitas a Santos
Foto: José Dias Herrera/divulgação
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Durante todo o dia as pessoas só falavam de Getúlio e todos queriam ver Getúlio: parecia uma romaria. Lembro-me de que a multidão se esticava ao longo da Avenida Epitácio Pessoa - sei que era
esta avenida porque eu via ao fundo as torres da Igreja do Embaré. Meu pai me suspendeu para que eu visse Getúlio, e naquele mar movediço de cabeças eu vi o ditador. Todos se descobriram de seus chapéus à sua passagem, mas
um dos espectadores, ou porque estivesse emocionado, ou porque quisesse demonstrar protesto, manteve o chapéu sobre a cabeça: foi o bastante para que ele levasse um violento soco desferido por um policial.
E então eu vi Getúlio vir vindo num corre-corre aberto na multidão por soldados que iam à frente. Lembro-me bem de que ele estava de terno de linho branco e acenava o chapéu para o povo. Eu
acho que foi a imagem do homem brandindo no ar aquele chapéu que fez com que eu nunca esquecesse daquela cena. Àquela altura ele ainda era um homem relativamente gordo, o seu rosto também era gordo e luzidio. Depois ele entrou numa daquelas casas
assobradadas com escada exterior que levava ao primeiro pavimento, casas típicas da década de 20. Seria hoje uma daquelas residências que vão entre o Chão de Estrelas e a Rua Padre Visconti.
O povaréu batia palmas educadamente como se estivesse num teatro assistindo a uma ópera. Nada daquela euforia ululante e gritos alucinados. A presença de Getúlio, além de respeito, inspirava
certo temor. As pessoas esperaram por muito tempo, julgando, talvez, que ante tantos apelos, ele se dignasse a aparecer no terraço da casa. Mas Getúlio não apareceu e todos nós fomos embora. O que se passou depois, os comentários de meu pai em
casa, minha memória não reteve: foi um filme não revelado.
Este foi o meu primeiro encontro com Getúlio Vargas, mas a sua presença iria marcar as nossas vidas. Mas foi na escola que eu senti a sua força, uma força de presença ubíqua, blandiciosa e
sorrateira: era o Estado Novo em ação nas escolas brasileiras, e, evidentemente, as escolas de Santos não escaparam a esse processo modelador de consciências, uma espécie de lavagem cerebral cabocla.
Na época tudo era tão natural, mas, analisando hoje, na perspectiva do tempo, é que se pode avaliar a força avassaladora daquele mecanismo em ação. Restrinjo-me apenas à realidade do Grupo
Escolar Cidade de Santos, ali pelos idos de 1940 e 41. Nós chegávamos de manhã cedo, ali pelas sete horas, vergados ao peso de malas enormes e íamos para o pátio. Não havia correrias nem gritos.
Então tocava uma sirene e a garotada entrava em fila; eram filas sinalizadas de acordo com os frisos no chão. Alguém batia os dedos em tábua contra a palma da outra mão e todos nós abaixávamos
rente ao solo para depositar as malas. Ficávamos nessa posição por um longo tempo, olhos grudados no cimento avermelhado do piso, esperando pelo sinal de levantar. Então com as mãos livres, todos nós entoávamos hinos patrióticos com grande ardor.
Depois outro estalar de mãos e a garotada se abaixava e prontamente, segurando a alça de couro da mala, esperava pelo sinal de reerguer. O sinal vinha e todos se aprumavam, corpos eretos,
vontades disciplinadas. Cada fila das extremidades punha-se em movimento, em passo cadenciado, um passo militar e entrava pela porta de sua ala: a entrada para as aulas do Cidade de Santos ali por 1940 se assemelhava muito a um movimento militar de
tropas-mirins. A saída tinha um sinal mais ameno, mas o passo militar e cadenciado era o mesmo até os alunos alcançarem as saídas das ruas Torres Homem e Nabuco de Araújo.
Na sala de aula, a todo o momento, referências aos esforços do Estado Novo, e tudo era pretexto para a professora exaltar a nova ordem do país. Gravuras das Edições Melhoramentos expostas em
classe para uma descrição traziam sempre figuras da vida urbana, visões das cidades modernas, e, então, toda aquela parafernália associada às conquistas trazidas por Getúlio ao país. O próprio material didático parecia elaborado em função da
exaltação ao Estado Novo. Eu devo ter escrito muita besteira sobre aquilo tudo (eu já então adorava escrever), e é pena que nada tenha ficado daquele tempo perenizado no papel.
Mas era na Semana do Estado Novo que o Cidade de Santos se acendia e agitava: havia concursos de descrição e sobre o regime "que havia salvado o país". Lembro-me de um desses desenhos e do
nome de seu autor: Ayrton. Ayrton queria ser aviador e num pedaço de cartolina jogou seus sonhos dentro de um avião cruzando os céus com os dizeres: "Eu quero ser aviador para destruir os inimigos de meu país". A professora soltou um grito,
emocionada e foi chamar o diretor. Ambos leram os dizeres em voz alta para toda a classe. Vai senão quando um japonês de nome Aracati levanta a voz num impulso natural e pergunta: "Que inimigos?" O pobre japonês ficou de castigo até o fim da aula.
Pelos corredores era normal ver-se aluno chorando de dor por castigos recebidos, e eu próprio, por um triz, escapei de um deles. Reclamação, nenhuma: pai de aluno tinha medo de transpor os umbrais daquela escola.
Coisa interessante e pouco dita: ali por fins de 1941 quase todo o Brasil era nazista e a favor de Hitler, e eu cheguei a testemunhar, em São Paulo, no Sanatório Esperança, no Morro dos
Ingleses, uma equipe inteira de médicos celebrar com euforia e gritos o afundamento do porta-avião inglês Ark Royal pelos submarinos alemães. E Getúlio nunca escondeu a sua simpatia pela causa dos alemães. A partir de 1942 e 43, com o
enfraquecimento do ímpeto alemão e a adesão do Brasil à causa dos Aliados, o Estado Novo arrefeceu e a sua influência nas escolas praticamente desapareceu. Ó Brasil dos extremos, Brasil da escola militarizada da década de 40 e da escola baderneira
da década de 80! Ó Brasil, por que não aprendes a conviver com o meio termo saudável e estabilizador, com a escola racional, disciplinada e responsável? Ainda há gente que acha que modernidade é bagunça, idéia muito aceita por países do Terceiro
Mundo.
(...)
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