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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - Raul Soares - BIBLIOTECA NM
O navio-prisão (4-D)

Clique na imagem para voltar ao índice do livroUma das páginas negras da história santista

 

Este é o texto integral do livro de Nelson Gatto, que a censura do regime militar mandou apreender e destruir. Um raro exemplar remanescente foi cedido a Novo Milênio para esta edição digital, pelo jornalista Carlos Mauri Alexandrino, em 2012.

Impresso pela paulistana Edimax, com 154 páginas e capa de Wilson Cocchi, sem data (foi escrito e apreendido em 1965), tem agora sua primeira edição digital (com ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 29 a 47):

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RAUL SOARES

Navio presídio

A outra face da "Revolução"

Nelson Gatto

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Começo do fim

Os acontecimentos começaram a se precipitar depois do grandioso comício do dia 13 de março, na Guanabara. Com a praça do Ministério da Guerra inteiramente tomada pelo povo, o presidente João Goulart anunciou as reformas de base, o tabelamento dos aluguéis e dos materiais de construção, a criação do Fundo Nacional de Habitação. Defendeu o direito de voto ao analfabeto - o que levaria a tranquilidade aos homens do campo - bem como a elegibilidade dos sargentos das forças armadas.

A grande concentração popular provocou imediata reação: a "marcha do rosário" e a marcha "Com Deus pela liberdade" tiveram lugar nos maiores centros do País. O padre Payton esteve no Brasil organizando, com grande sucesso, diga-se de passagem, o movimento de rua.

Nuvens negras começavam a pairar sobre todo o Brasil.

Alheio à política, prossegui normalmente em meu serviço.

Recebendo informações de que, pelo Campo de Marte, aviões de alguns políticos descarregavam milhões em contrabando, solicitei ao comandante do Parque da Aeronáutica, brigadeiro Dirceu Guimarães, que montasse policiamento especial em torno do campo de pouso e impedisse a saída das mercadorias.

O comandante do Parque da Aeronáutica, satisfeito com minha solicitação, organizou policiamento de sargentos em redor do Campo de Marte. Dias depois, os sargentos do Parque, que serviam na torre de Congonhas, resolveram oferecer-se para, sem prejuízo de suas funções militares, trabalhar na repressão. Aproveitando uma folga de domingo, conduzidos pelo suboficial Alfeu Henares, meu vizinho e amigo, uns trinta sargentos estiveram em minha casas, oferecendo-se para trabalhar. Agradeci sensibilizado o oferecimento espontâneo, sem o qual seria impossível acabar com o cancro maligno.

Pedi, contudo, que aguardassem alguns dias, pois iria solicitar ao ministro da Justiça que entrasse em entendimento com o titular da pasta da Aeronáutica para dar caráter oficial à colaboração. Enquanto aguardavam, no entanto, se pressentissem a chegada de qualquer avião transportando contrabando, estavam autorizados a fazer a apreensão em nome de nosso serviço.

Na Semana Santa, ao mesmo tempo em que eu apreendia numerosos carros de luxo entrados ilegalmente no País, a situação nacional se agravava. Na Quinta-feira Santa, os marinheiros da Marinha de Guerra haviam marcado uma assembleia no Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara. O que deveria ser uma simples reunião de reivindicações justas, acabou por se transformar num perigoso barril de pólvora.

Fuzileiros navais foram mandados para cercar e prender os marinheiros. Chegando à sede do Sindicato, jogaram suas armas na rua e entraram no prédio, solidários com os companheiros. O Exército foi chamado às pressas e tanques cercaram o Sindicato.

O presidente da República encontrava-se em São Borja; o ministro da Guerra estava hospitalizado; o ministro da Marinha era demissionário e o general Assis Brasil, chefe da Casa Militar da Presidência, a despeito da confusão geral, tomou um avião calmamente para passar o fim de semana em Porto Alegre.

O presidente João Goulart retornou às pressas ao Rio de Janeiro. Os marinheiros saíram do Sindicato presos, para quartéis do Exército. O ministro da Marinha foi substituído e logo depois os marinheiros eram postos em liberdade, ninguém sabe com ordem de quem, o que causou mal-estar geral nas Forças Armadas, que sentiam em perigo a disciplina.

Na noite do dia 30, cinco mil sargentos estiveram no Automóvel Clube da Guanabara, onde ouviram violento discurso do presidente do Brasil. Naquela mesma noite, em Minas Gerais, começava a efetuar-se a prisão em massa de líderes operários. Os transportes coletivos e toda a gasolina eram requisitados pelo governador Magalhães Pinto, a Polícia Militar fora mobilizada e em Belo Horizonte e Juiz de Fora abriram-se postos de voluntariado.

Os boatos fervilhavam.

No dia 31, minha repartição funcionou normalmente. Estávamos, já, bem instalados, em condições de produzir muito. Havia, contudo, um senão: no prédio novo não dispúnhamos de telefone. Quando estávamos no oitavo andar da Caixa Econômica Federal, usávamos um telefone ligado ao PBX da autarquia. A falta de telefone dificultava bastante nosso serviço, pois não só nos impossibilitava ligeira comunicação com autoridades públicas como, também, nos impedia de recebermos denúncias feitas por populares, que geralmente procuravam não aparecer.

O dia estava bastante confuso.

De Minas Gerais continuavam soprando os ventos da revolta. Notícias desencontradas eram transmitidas por estações de rádio. No fim da tarde, bati um ofício para o general interventor do Governo Federal na Companhia Telefônica brasileira, solicitando a instalação de um aparelho em nossa repartição. Decidi ir tratar pessoalmente do assunto. Na viatura da Polícia Federal, rumei para a Rua Sete de Abril. O motorista ficou aguardando em baixo, enquanto me dirigi ao escritório do general Albuquerque Puertas.

Eu fora apresentado ao general dias antes, na residência do brigadeiro Rosário, comandante da 4ª Zona Aérea, e falara ligeiramente sobre o assunto, ficando de enviar o ofício. Assim que me anunciei, o general mandou que eu entrasse e, depois de nos cumprimentarmos cordialmente, entreguei-lhe o ofício. O militar colocou o papel sobre a mesa e, a seguir, encarando-me co ar grave, disse:

"A situação nacional está bastante confusa. Você é jornalista e funcionário do Ministério da Justiça, responsável pela Polícia Federal em São Paulo. Poderá, pois, prestar-me grande auxílio. Como você sabe, sou também delegado do Contel em São Paulo. O Conselho de Telecomunicações é o órgão do Governo que controla rádio e televisão. Recebi instruções para impedir qualquer pronunciamento político do sr. Adhemar de Barros ou do sr. Auro Soares de Moura Andrade na noite de hoje pelo rádio ou pela televisão. Já expedi ordens, através da Agência Nacional, às estações de rádio e televisão, fazendo a proibição da transmissão de tais pronunciamentos, julgados de caráter subversivo. Gostaria que você, como jornalista, entrasse em contato com diretores dos órgãos de divulgação e ratificasse, em meu nome, a proibição. Antes gostaria que você passasse pela Agência Nacional para saber se o Teófilo já enviou a proibição a todas as estações. Caso ele tenha qualquer dúvida, você está autorizado a esclarecê-lo no sentido de que nenhum pronunciamento político poderá ser feito na noite de hoje".

Da Companhia Telefônica, onde funcionava também o escritório do Contel - órgão representado, em São Paulo, apenas por seu delegado, sem nenhum outro funcionário - rumei para a Agência Nacional, na Rua Martins Fontes. Antes, no entanto, ao sair da Telefônica, atravessei a rua e entrei no prédio dos "Diários Associados", procurando saber, de meus companheiros de redação, qual a situação no País.

Ninguém sabia nada ao certo. As notícias continuavam desencontradas, principalmente aquelas referentes a Minas Gerais. Procurei o sr. Edmundo Monteiro, diretor dos "Associados", para fazer um apelo e ratificar a ordem emanada do Contel. Não o encontrando, entendi-me com o sr. Armando de Oliveira, diretor da organização. Disse desconhecer qual seria a estação que iria transmitir o pronunciamento do sr. Adhemar de Barros, podendo assegurar, contudo, que não era o canal 4. Ao sair do prédio dos "Associados", alguns colegas me informaram que a rede seria comandada pelo canal 9, na Rua Nestor Pestana. o sr. Adhemar de Barros não compareceria pessoalmente. Gravara um "video-tape" em Palácio, o qual seria posto no ar.

Na Agência Nacional já haviam tomado todas as providências para que as estações de rádio e televisão não transmitissem pronunciamentos políticos. Deixei a repartição, rumando para a sede da Companhia Telefônica Brasileira, a fim de falar com o general Puertas. Seriam 19 horas quando ali entrei novamente.

O general se mostrava apreensivo. De todo o País chegavam notícias intranquilizadoras. Pediu que eu permanecesse ao seu lado para auxiliá-lo no que fosse preciso. Mandei que minha viatura fosse buscar os agentes que ainda se encontrassem na repartição. Apenas Lúcio Inácio da Cruz e Arconcio José Gomes ainda ali estavam e prontamente rumaram para a sede da Telefônica. Expliquei aos dois o que se estava passando e pedi que ficassem comigo até as coisas se aclararem. A esta altura dos acontecimentos, fotógrafos e cinegrafistas já começavam a afluir à sede da CTB, pois correra a notícia de que eu iria apreender o "video-tape" gravado pelo governador de São Paulo.

Pouco antes das 19,30 horas, após conferenciar longamente com o general Puertas, deixei a Telefônica acompanhado pelos dois agentes e pelo motorista da "perua", funcionário da Polícia de São Paulo. O delegado do Contel fora taxativo em suas ordens: "NENHUM PRONUNCIAMENTO POLÍTICO PODERIA SER FEITO PELO GOVERNADOR DE SÃO PAULO NAQUELA NOITE".

Um rádio do Ministério da Justiça, chegado através do comando do II Exército, reiterava as instruções chegadas anteriormente nesse sentido.

Antes de sair da CTB, ponderei que, com os poucos homens de que dispunha, quase nada poderia fazer. Poderia até mesmo invadir a estação de televisão que estivesse comandnado0 a rede e retirar o "video-tape" do ar, mas, assim que o fizesse, seria preso por tropas da Força Pública ou por choques do Dops. O general Puertas ouviu em silêncio e, a seguir, assentindo com a cabeça, respondeu:

"Está bem. É possível que isso ocorra. Mas, em tal caso, você terá inteira cobertura de tropas do II Exército. Já falei com o general Aluísio Mendes, comandante da II D. I., e ele acertou medidas com o general Amaury Kruel. Tropas já se encontram de sobreaviso. Caso a Força Pública tente obstar sua ação, forças do Exército correrão em seu auxílio".

Ao chegar à sede do canal 9, depois de falar longamente com Kalil Filho, consegui avistar-me com o sr. Edson Leite, que acabava de chegar e mostrava-se disposto a cumprir a determinação governamental. Não queria, contudo, ficar em má situação perante os demais diretores de televisão de São Paulo, que confiavam em que ele chefiasse a rede. Para que não ficasse em posição falsa, perante seus colegas, mandei que um dos homens fosse até a torre do canal  9, na Avenida Paulista, e retirasse o cristal, pelo que a estação sairia do ar.

Antes mesmo que isso fosse executado, um defeito técnico fez com que a estação saísse do ar no momento mesmo em que as demais entravam em rede. Minutos depois, o governador Adhemar de Barros, por telefone, interpelava o diretor do canal 9 sobre o que estava acontecendo. Ante as explicações recebidas, gritou tão alto, que todos os que estavam próximos ao sr. Edson Leite ouviram claramente suas palavras:

"Eu vou mandar prender esse general Puertas e esse Nelson Gatto..." - e vociferou um palavrão, batendo o fone.

Liguei imediatamente para o escritório do Contel e comuniquei o fato ao general Puertas. A seguir, o sr. Edson Leite, muito apreensivo, pediu que lhe déssemos, em papel timbrado do Ministério da Justiça, o comunicado da proibição. Saí de seu gabinete dizendo que retornaria com a ordem, pois tinha papel timbrado na "perua".

Meus três companheiros estavam na porta de entrada e não permitiam o ingresso de policiais do Dops. Fui ao encontro do delegado que chefiava o aparatoso contingente policial e disse-lhe que a estação de televisão estava tomada em nome do Governo Federal. O delegado, sem saber o que fazer, disse-me que aguardava a chegada de um pelotão de choque da Força Pública para invadir a estação transmissora. Mal acabara de falar e ali chegava forte contingente da Força. Disse ao delegado e ao oficial da milícia que, se eles tentassem invadir a estação de televisão, teriam pela frente tropas do Exército. Telefonei novamente para o general Puertas expondo os fatos. Voltei a telefonar, cinco minutos depois, e o interventor da Telefônica me acalmou, dizendo que já acertara medidas com o general Aluísio Mendes e que tropas do II Exército já iam sair em meu auxílio.

Respirei aliviado. Aguardei mais meia hora e, como não chegasse ao local um único soldado do Exército, comecei a me intranquilizar. Quando dois novos caminhões transportando tropas da Força Pública chegaram á Rua Nestor Pestana, decidi retirar-me. Embarquei com meus auxiliares na "perua" da Polícia Federal, blefando com o delegado do Dops ao informar que o prédio permaneceria ocupado por agentes do Ministério da Justiça.

Os policiais do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo permaneceram na rua por muito tempo, sem saber como agir, acreditando que, no interior da estação de televisão, eu havia deixado muitos homens armados, quando em verdade ali não ficou um único dos meus poucos elementos.

Ao chegar à sede da CTB, notei que uma viatura do Dops, cheia de agentes, estava parada na porta do prédio. Perguntei a um policial o que ocorria e este, vendo a "perua" preta e branca que ocupávamos, tomando-nos por homens da Polícia estadual, informou que iam ocupar a Telefônica. Imediatamente mandei que meus agentes permanecessem na porta de entrada e impedissem a invasão a qualquer custo. Subi apressadamente para o quarto andar à procura do general Puertas, o qual não consegui encontrar.

O major do Exército Rivaldo Dias de Souza e Silva, que ali estava, explicou-me que o delegado do Contel estava em conferência com comandantes militares do Quartel General do II Exército. Narrei o que ocorria e desci apressadamente para saber como iam as coisas embaixo. Ao chegar à rua, deparei com vários companheiros do jornal que me procuravam para se porem ao meu lado, dizendo que estavam armados e dispostos a lutar em defesa do governo legalmente constituído.

Mais uma vez enviei o motorista da "perua" ao nosso setor e logo ele retornou conduzindo um grupo de jovens que, por minha indicação, deveriam ser nomeados agentes nas próximas horas e já prestavam serviços à Polícia Federal. Expliquei a situação, não escondendo a gravidade das coisas, ao informar que violento tiroteio poderia irromper de um momento para outro. Quem quisesse poderia retirar-se mas os que permanecessem teriam que ficar ao meu lado até o fim. Todos concordaram.

Quando eu ia começar a distribuir os homens pelo prédio, chegou o general Puertas, que retornava do comando do II Exército. Aprovou de pronto as medidas que eu tomara, em defesa do prédio de uma empresa sob intervenção federal, contra uma invasão por parte de forças do Governo Estadual. Subiu para seu escritório e eu permaneci no térreo, dando instruções aos meus homens. Determinei que o porteiro fechasse a única porta de entrada que ainda permanecia aberta e não a abrisse para mais ninguém, sem antes me consultar.

Através dos grossos vidros que emolduram os ferros da porta principal, eu ia acompanhando a chegada de novos contingentes policiais. O delegado do Dops, Paulo Boneristiano, desembarcou de uma viatura e tentou convencer-me a abrir a porta para parlamentar, com o que não concordei. Percebi quando ele mandou um choque da Guarda Civil para a Rua Basílio da Gama, para a qual dão os fundos do prédio da CTB. Alertado por dois homens que queriam sair do eidfício e que se identificaram como sendo sargentos da Aeronáutica que faziam um curso de comunicações na Telefônica, mandei que meus homens fossem com o porteiro até a porta dos fundos, por onde iam sair os militares, e fechassem a porta a chave, ali permanecendo entrincheirados.

A rua já estava transformada em autêntica praça de guerra. Elementos da Força Pública armavam metralhadoras pesadas na calçada fronteiriça.

Deixei Lúcio Inácio e Arconcio Gomes junto á porta da frente. O fotógrafo Braulio Yório e o repórter Daltro da Silva Lima subiram em minha companhia até o escritório do general Puertas, onde o oficial superior do Exército se mostrava bastante preocupado com o rumo dos acontecimentos. O que vira no interior do Q.G. do II Exército, onde oficiais hesitavam em tomar qualquer decisão, o deixara apreensivo.

Trocamos rápidas palavras. Em síntese, disse a ele que poderia ficar em comunicação telefônica com o ministro da Justiça, com o coronel Scafa, do Contel, com o chefe do DFSP ou mesmo com o presidente da República, que se encontrava no Rio de Janeiro. Eu cuidaria da defesa do prédio.

Tomei o elevador seguido pelo Daltro e me dirigi novamente ao térreo. Um simples olhar para o meio da rua mostrou que novas forças ali se concentravam. O trânsito havia sido desviado da Rua Sete de Abril. Não permitiam nem mesmo a passagem de pedestres. Lúcio e Gomes permaneciam em seus postos. Rapidamente atravessei o corredor, rumando para os fundos do prédio. Não encontrei ninguém. A porta, que dá para um pátio de estacionamento dos automóveis da CTB, estava aberta. Apenas o porteiro ali se encontrava, o qual me informou:

"Os rapazes que estavam com revólveres nas mãos? Eles vieram até aqui em minha companhia, saíram pelo pátio e, quando viram chegar à Rua Basílio da Gama um carro cheio de soldados, perguntaram para onde dava o muro dos fundos. Eu mal acabei de dizer que dava para a rua e eles já estavam saltando o muro e correndo em direção da Praça da República".

Um tanto chocado, compreendi o que se passara.

Os futuros agentes da Polícia Federal, numa atitude não muito heroica, haviam fugido, abandonando o campo de batalha antes mesmo de ser disparado o primeiro tiro.

Fechei a porta de ferro e fiquei com a chave do porteiro. Um olhar para as posições que teríamos de defender convenceu-me de que seria impossível qualquer resistência no térreo, com o reduzido número de homens. Não aguentaríamos a primeira investida dos que nos cercavam. Ordenei que o ascensorista - o único que se encontrava em serviço - conduzisse os três grandes elevadores para o quarto andar, onde deveriam ficar parados, de portas abertas. Quando o terceiro elevador ia subir, subimos todos para o quarto andar. Expliquei ao general Puertas a situação e mostrei-lhe que somente junto às escadas poderíamos montar a defesa. Duas escadas partem do térreo até o terceiro andar. Dali até o 10º, existe uma única escada, Uma barricada entre o 3º e o 4º andar defenderia a passagem.

As coisas se agravavam de minuto para minuto. No rosto de todos, viam-se tensão e expectativa.

Perguntei ao general Puertas o que ele pretendia fazer, dizendo-lhe, desde logo, que eu não gostaria de ser preso pela polícia estadual. O militar me encarou sério e respondeu:

"Eu também não estou disposto a deixar que esses moleques me ponham as mãos em cima. Nós vamos resistir".

Disse-lhe que poderia continuar tentando ligações telefônicas com altas autoridades no Rio de Janeiro, pois o inimigo só entraria em seu escritório depois de nos matar no patamar do 4º andar. O prédio estava na iminência de sofrer um assalto por parte das tropas de choque. Era preciso, pois, agir com rapidez para enfrentar os atacantes.

Ante o olhar espantado do major Rivaldo, peguei-o pelo braço e fiz com que se levantasse do pesado sofá onde estava acomodado. O militar pôs-se de pé um tanto constrangido, enquanto os homens obedeciam minhas ordens de apanhar o móvel e começar a formar, com ele, uma barricada no alto da escada. Na curva dos degraus, entre o 3º e o 4º andar, os homens encaixaram uma pesada mesa, o que impediria que os invasores subissem correndo e disparando suas metralhadoras portáteis.

Em silêncio, cada um tomou posição de combate de arma em punho. Apagamos as luzes do patamar para que não nos transformássemos em alvo fácil para os atacantes. O major Rivaldo, o capitão Plínio Deus Fernandes e o sargento Roque Martins - um jovem quase imberbe e o único que estava fardado na ocasião - iam e vinham, sem parar, entre o gabinete do general e a barricada na escada. Todos juntos, tínhamos pouco mais de 100 balas. Devíamos, pois, usá-las de maneira racional. Do contrário, ficaríamos sem munição na primeira carga.

Pedi aos rapazes que só abrissem fogo depois que eu disparasse o primeiro tiro. E atirasse um de cada vez, poupando a munição, para que pudéssemos permanecer vivos o maior tempo possível.

Aguardávamos em silêncio quando ouvimos o tropel dos homens da Polícia estadual, que acabavam de arrombar a porta de entrada. Com grande alarido, e fortemente armados, preparavam-se para a invasão de todos os andares.

Quando a porta de entrada cedeu, o general Puertas acabava de falar ao telefone com o tenente-coronel José Lemos de Avellar. O chefe do DFSP mostrava-se confiante, estranhando apenas que o general Amaury Kruel ainda não tivesse enviado tropas em nosso auxílio. Dizia que acabara de falar com o presidente da República sobre o comandante do II Exército e sua atitude dúbia, ao que o chefe da Nação respondera:

"Eu ponho minha mão no fogo pelo Kruel. Ele não é traidor. É meu amigo pessoal e com ele não preciso preocupar-me. É um dos meus generais leais..."

A despeito de tal informação, continuávamos apreensivos. O general Puertas falava ao telefone, a cada momento, com o general Aluísio Mendes, e este respondia sempre que as tropas que deviam nos socorrer já estavam de saída.

Do Rio de Janeiro, estações de rádio transmitiam notícias alarmantes. A Polícia da Guanabara fora mobilizada. Caminhões de lixo bloqueavam quase todas as ruas centrais e o movimento sedicioso, iniciado pelo governador de Minas Gerais e pelo general Mourão Filho, chefe das forças do Exército em território mineiro, encontrava adesão em vários Estados.

O ministro da Guerra continuava hospitalizado. Ninguém dava ordens aos quatro Exércitos, que estavam sob o comando dos generais Morais Âncora, Amaury Kruel, Benjamim Galhardo e Justino Alves Bastos. O Forte de Copacabana se sublevara. O general Castelo Branco, chefe do Estado maior do Exército, não era encontrado em parte alguma. Para não desgostar o general Jair Dantas Ribeiro, o presidente da República não nomeara um ministro da Guerra interino. O general Assis Brasil não tomava nenhuma decisão com firmeza.

Entre uma ligação e outra, que fazia para o Rio de Janeiro, o general Puertas nos dizia que de há muito estava apreensivo com a situação nacional. Dissera mesmo que uma semana antes, no dia 23 de março, estivera com o ministro Abelardo Jurema, com o brigadeiro Anísio Teixeira e com o coronel Scafa, logo após o encontro com o presidente da República. Mostrava a todos que as coisas estavam se agravando de Norte a Sul e nada era feito para impedir que os inimigos do regime continuassem agindo abertamente. Era difícil falar com o general Assis Brasil, pois ele se mostrava cético a tudo o que lhe informavam os oficiais nacionalistas, realmente interessados em ver o Brasil assumir o seu verdadeiro lugar no cenário mundial.

Aguardávamos, para qualquer momento, o início do tiroteio. As tropas do Exército que nos deveriam socorrer não chegavam e, embora ninguém o dissesse claramente, todos começavam a sentir que tudo estava mal. Nervoso, o capitão Plínio Deus Fernandes apanhou o telefone e fez uma ligação para o Palácio das Laranjeiras. chamou ao aparelho o capitão Chuay, ajudante de ordens do general Assis Brasil. Foi incisivo em suas palavras:

"Chuay, preste atenção ao que vou dizer. Estamos cercados, aqui em São Paulo, por foças de Adhemar. Tudo indica que o general Amaury Kruel está contra o presidente da República. É preciso que o presidente saiba o que está ocorrendo. Não fale com o general Assis Brasil, pois ele irá dizer que estamos exagerando e nada dirá ao Jango. Leve a informação pessoalmente para que o presidente saiba da verdade".

Embora sabendo que poderia ser punido por se dirigir ao chefe da Nação sem passar pelos canais competentes, o capitão Chuay assim procedeu e falou ao sr. João Goulart, expondo a situação em São Paulo. Talvez só nesse momento o presidente haja começado a preocupar-se realmente, muito embora tenha respondido, como que maquinalmente, ao capitão, as palavras que acabava de dirigir ao ministro da Justiça:

"Eu já falei com o Kruel por telefone. É meu amigo, está comigo, embora falando sempre nesse negócio de comunismo, na infiltração do CGT, no PUA, nessas bobagens que eu liquido em dois tempos... Ele está conosco..."

O chefe da Nação confiava plenamente no comandante do II Exército. Dias antes do movimento de 31 de março, sentindo a situação nacional cada vez mais grave, o sr. João Goulart dissera ao seu compadre e amigo:

"Se alguma coisa de ruim me acontecer, Kruel, entrego meus filhos para você educar. Você é a única pessoa em quem confio para isso".

Sentindo que o general Kruel estava com uma posição falsa, o general Puertas começou a telefonar para todos os quartéis onde tinha oficiais amigos, para se inteirar do que realmente ocorria. Eu andava de um lado para outro dando ordens. De repente, alguém entrou na sala gritando:

"Eles vêm aí! Estão subindo as escadas!"

Corri para a barricada, acompanhado pelo major Rivaldo e pelo capitão Plínio. O sargento Martins, que como o major Rivaldo eu conhecera naquela noite, permanecia ao meu lado disposto a tudo. O barulho dos homens, que avançavam correndo, aumentava sempre. De um momento para outro, surgiriam na curva da escada. Meus companheiros, nervosos, permaneciam na expectativa. Em pé, deitados ou ajoelhados, aguardavam em silêncio. Permaneci de pé, no centro da barricada. Enquanto sacava a arma do coldre, disse aos companheiros:

"Parece que chegou o momento decisivo. Tenho sabido viver com decência e saberei morrer com dignidade. Talvez nenhum de nós consiga sair com vida. Espero que cada qual saiba portar-se como homem".

De repente, com grande alarido, soldados, empunhando metralhadoras, surgiram na curva da escada, entre o 3º e o 4º andar. Pararam de chofre, ao darem com a pesada mesa ali colocada de maneira estratégica. Um oficial da Força Pública e um delegado de Polícia tentavam pular a mesa quando deram comigo, em pé, de arma em punho, no topo da escada. Reconheci, prontamente, o delegado Raul Ferreira, um tipo viscoso, alcunhado de Pudim. Encarou-me por um instante, sem saber o que fazer, e a seguir gritou:

"Eu vou subir, Nelson Gato! Chegou a sua hora!"

Permaneci em pé. Apenas ergui a mão com a arma automática e, colocando uma bala na agulha, dei ao gatilho, ao mesmo tempo em que dizia firme:

"Ah!" Pudim, você vai ser o primeiro a cair!"

Ouvindo o barulho característico da arma automática que recebe bala no injetor, o delegado saltou para trás, caindo juntamente com o oficial da Força Pública que estava ao seu lado, desaparecendo todos de meu raio de visibilidade. Pudim saltou exatamente no momento em que destravei a arma e a bala se alojou no cano. Saltou e correu escada abaixo, seguido pelo oficial da milícia. Os soldados e os investigadores do Dops, vendo a atitude de seus chefes, saíram, também, em desabalada carreira escada abaixo, sem terem disparado um único tiro.

Percebendo que o perigo do início de um tiroteio passara momentaneamente, entrei novamente no gabinete do general Puertas. Falava, na ocasião, por telefone, com o major Francisco Frederico Pamplona, do Q. G. da D. I. 2, no Ibirapuera, onde estavam 16 tanques de guerra. Leal ao Governo Constituído, o major pretendia tirar as tropas do quartel para lutar pela legalidade. Os sargentos estavam de seu lado, mas os oficiais ficaram com o comandante, que obedecia ordens do general Amaury Kruel, que se rebelara contra os Poderes Constituídos. Estava encontrando dificuldades em tirar as tropas do quartel e, por fim, acabou fugindo sozinho para não sear preso.

Os telefonemas sucediam-se. Daltro da Silva Lima, por duas vezes, entrou no gabinete para dizer que os policiais recomeçavam a subir a escada em grupo numeroso. Tudo indicava que iam atirar bombas de gás lacrimogêneo sobre nossas posições. Para evitar os efeitos dos gases, arrancamos as pesadas cortinas das janelas e as ensopamos com água. O pano molhado serviria para apanharmos as bombas de gás lançadas sobre nós e para arremessá-las de volta. Recomendei que cada um conservasse, ao seu lado, um pedaço de pano molhado, para colocar contra a boca e o nariz no momento preciso para evitar os efeitos do gás.

O general não largava os telefones. Conversou com o brigadeiro Dirceu Guimarães, comandante do Parque da Aeronáutica. O brigadeiro insistia em dizer que continuava na expectativa, aguardando o desenrolar dos acontecimentos. No Parque serviam cerca de 4 mil homens, dos quais 900 sargentos! O comandante, no entanto, dizia que pouco poderia fazer, por não dispor de armamento e munição para uma operação militar de envergadura.

Depois de muitas tentativas, o general Puertas conseguiu comunicar-se com o tenente-coronel Gustavo Álvares Cruz, no CPOR. Explicou a situação, falou da revolta de algumas unidades militares contra o Governo legalmente constituído e pediu ao tenente-coronel que tomasse posição. Este disse que teria de aguardar ordens do general Bandeira de Morais, comandante da II Região Militar, para qualquer movimentação. O CPOR tinha muito armamento e munição, mas seus homens eram recrutas e não saberiam utilizar armamento de guerra. O tenente-coronel Gustavo concordou, contudo, em entregar armamento e munição ao Parque da Aeronáutica, onde existiam soldados mas faltavam armas. Novamente o general Puertas telefonou para o Parque. Quem atendeu foi o tenente-coronel Egidio Clibas da Silva:

"Quê? Mandar um caminhão apanhar armamento e munição no CPOR? Mas quem irá assinar a requisição? Como? Mas não haverá confusão em a Aeronáutica lutar com armamento do Exército? Olhe, aqui no Parque quase todos são artífices e não sabem brigar..."

O tenente-coronel Clibas, oficial legalita, fora apanhado de surpresa como todos os demais oficiais das Forças Armadas. Não tomou nenhuma providência em defesa da legalidade. Mesmo assim, logo a seguir foi preso, permanecendo 80 dias sem ver a luz do sol, encerrado num quarto da Base Aérea de Cumbica, em cujas janelas o coronel Veloso, o mesmo da revolta de Aragarças, que foi perdoado pelo presidente Juscelino - mandou pregar tábuas para que não entrasse sequer uma réstia de luz.

Seriam quase 24 horas quando ouvimos pelo rádio manifesto lançado pelo general Amaury Kruel. Embora um tanto ambíguo, ele mostrava que o II Exército marcharia contra o presidente João Goulart.

O general Puertas ligou mais uma vez para o Rio de Janeiro e leu, na íntegra, para o chefe do DFSP, o manifesto que Pinto Nazário, diretor dos "Diários Associados", nos passara por telefone. Após ouvir em silêncio, o tenente-coronel Avellar gritou do outro lado da linha:

"Mas então?!... O general Amaury Kruel continua ao lado da legalidade, ao lado do presidente Jango..."

Foi difícil para o general convencer o chefe do DFSP de que a verdade era bem outra. Quando o telefone foi desligado, Bráulio comunicava que os homens haviam atingido o terceiro andar e se preparavam para abrir fogo. Voltei para a barricada. As luzes, por medida de segurança, continuavam apagadas. Atravessei o corredor e parei na sombra, junto aos elevadores. Num lugar mais claro, abaixados, vi os agentes Lúcio Inácio e Arconcio Gomes. Permaneci em silêncio, nas sombras, ouvindo a conversa dos dois:

"Mas Lúcio, nós nada temos com isso. Vamos fugir. Por que vamos tomar parte num tiroteio?"

- Não, Gomes, nós não podemos fugir. Isso seria uma traição.

"Mas nada temos com essa embrulhada, Lúcio! Nós somos da Polícia Federal. Vamos dar o fora enquanto podemos."

- Não. Eu não irei. De forma alguma! O chefe nos deixou à vontade antes de sermos cercados. Decidi ficar e vou até o fim. Depois, como fugir agora que estamos cercados?

"Vamos correr pela escada de mãos levantadas. Vamo-nos entregar..."

- Você está louco, Gomes! Nós seríamos abatidos a tiros se fizéssemos isso. Não. Ficarei até o fim. Minha decisão já foi tomada.

Felizmente consegui conter o ímpeto que tive de avançar par ao Gomes, segurá-lo pelo pescoço e lançá-lo escada abaixo. Como se nada tivesse ouvido, saí das sombras e avancei falando em voz alta. Mandei que Gomes - que por sinal estava desarmado - retirasse de uma caixa na parede uma mangueira ali posta para ser usada em caso de incêndio. Logo que a mesma foi esticada, mandei que abrissem o registro de água, para que o tubo de lona ficasse cheio, pronto para expelir um jato assim que fosse necessário. Muita água saiu pelo bico da mangueira e escorreu escada abaixo. No patamar do 4º andar, de onde pretendia dar um banho frio nos atacantes, gritei para o Gomes, que estava junto ao registro de água:

"Desliga. Rápido, desliga. Fique pronto para ligar quando eu mandar".

Nesse mesmo momento ouvi a correria escada abaixo. Os homens, que já se encontravam no terceiro andar, prontos para abrir fogo, deixaram o prédio em desabalada carreira. Ficamos atônitos, sem atinar com os motivos da fuga desordenada. Cheguei a pensar que haviam chegado tropas do Exército em nosso socorro.

Somente muito mais tarde, quando me apresentei na Auditoria de Guerra, fui informado do que ocorrera: um capitão da Força Pública lertara seus soldados de que eu jogara água nas escadas a fim de ligar um fio de alta tensão e matar todos eletrocutados. Quando gritei ao Gomes para ligar (a água) eles se aterrorizaram e saíram em desabalada carreira, só parando quando atingiram a rua.

Mais uma vez ficamos em silêncio. Nosso fim parecia estar próximo. O começo do fim do governo popular do sr. João Goulart, que tivera início no grande comício da sexta-feira, 13, atingia o seu clímax e tudo indicava seria selado com nossas vidas.

Ladeado pelo presidente João Goulart e pelo autor do presente depoimento, aparece o general Amaury Kruel, por quem o chefe da Nação tinha carinho excepcional

Imagem e legenda publicadas com o texto, na página 40-A