Caro Waldir Rueda,
Pergunta-me sobre as redes de trólebus em funcionamento em Santos. O que me vem à mente,
de imediato, é a existência de um grande contra-senso, pois vejo se acumularem ações no sentido de não renová-las, de levar essas linhas ao
descrédito popular, em favor dos ônibus movidos a combustíveis fósseis, quando as próprias autoridades reconhecem a necessidade de incentivar o uso
de veículos não poluentes e implantam sistemas de trens elétricos, como os metrôs paulistano e carioca. A rede santista de trólebus precisa ser
preservada da ação de interesses imediatistas, tanto por motivos econômicos e ambientais, como pelos históricos e turísticos, todos de pleno
conhecimento público e evidentes de per si. Mesmo sendo supérfluo enumerá-los, vale como registro citá-los a seguir.
Santos já provou à exaustão que tem vocação para o chamado turismo histórico. Faz um
investimento muito grande, seja por renúncia fiscal para incentivar a recuperação de imóveis tombados pelo Patrimônio, seja com recursos diretos
para a recuperação e manutenção do acervo histórico, cultural, arquitetônico e artístico, para oferecer a seus filhos, ao Brasil e ao mundo,
referências relevantes sobre cinco séculos de sua história, que representam também os marcos iniciais da colonização do Novo Mundo.
Entretanto, periodicamente, autoridades municipais, contrariando a vontade da população
que as elegeu, cedem estranhamente aos fortíssimos apelos de grupos empresariais, interessados em que não reste qualquer vestígio ou possibilidade
de existência de outro transporte, que não seja o feito por veículos com pneus e movidos a combustíveis fósseis – os ônibus atuais.
Vemos uma contradição que, para o contribuinte, significa um duplo prejuízo, e isto
apenas no plano econômico, sem considerar o cultural e ambiental. Em Santos, como em outras cidades brasileiras, acabou-se com os bondes, com tal
ferocidade que ainda está na memória dos santistas a madrugada em que os veículos, retirados da circulação, foram destruídos a machadadas, de forma
a que fosse impossível qualquer reversão do processo.
A população sabedora desse fato ainda se refere a ele com revolta, pois a sanha
destrutiva nessa madrugada de 1º de março de 1971 deixou bem claro que o fim dos bondes não se tratava de uma decisão administrativa serena, mas de
algo que precisava ser consumado antes que se articulasse qualquer reação. Pela manhã, só restavam pedaços de madeira, e a própria memória do
fabrico e manutenção dos bondes só foi preservada, dentro dos limites das capacidades de cada funcionário, à revelia das ordens expressas para que
tudo fosse destruído.
Agora, gasta-se para a recuperação de veículos e linhas, para o reaprendizado das
técnicas de construção e manutenção da via-permanente, da rede elétrica aérea e dos veículos antigos, e as cidades pensam em transporte não
poluente, elétrico e sobre trilhos, como os trens do metrô paulistano e as linhas de pré-metrô e metrô de superfície das outras capitais. Apenas
para exemplificar, os encarregados da instalação das linhas de bondes, com sequer os primeiros anos do ensino fundamental, tinham de corrigir as
plantas dos engenheiros, alargando as curvas, pois estes teimavam em desenhar linhas com curvas em 90 graus, como se isso fosse possível na prática.
O que Santos conseguiu preservar, hoje é tecnologia usada na construção de veículos para outras cidades, como Belém do Pará.
Na própria Baixada Santista, o governo estadual tenta impor uma criticada solução Veículo
Leve sobre Pneus (VLP), quando a população já deixou claro que quer uma solução mais avançada no transporte metropolitano, que é o Veículo Leve
sobre Trilhos (VLT). A desculpa das autoridades é que o custo inicial de implantação é menor no VLP do que no VLT. Porém, a longo prazo, há
vantagens econômicas no veículo sobre trilhos, pois a manutenção é muito menor, sem falar nas vantagens técnicas bem conhecidas. Agora, se onde já
existe uma rede de bondes ou trólebus implantada – e portanto não existe o referido custo de implantação – as autoridades tentam acabar com ela,
fica evidente a contradição e, por tabela, evidenciam-se os interesses que pressionam para que seja adotada a solução mais danosa ao bem público, do
transporte coletivo em veículos movidos a combustível fóssil.
Os veículos sobre trilhos têm durabilidade muito maior, em média quarenta anos no caso
dos trólebus (pois os bondes, mesmo centenários, continuam rodando), em comparação com os ônibus, que duram – trafegando nas mesmas rotas – apenas
uns cinco anos. Então, fica evidente o motivo de tanta pressão, por parte de fabricantes de veículos: querem lucrar com a constante reposição dos
equipamentos rodantes. Fica também visível – em meios tão marcados pelas denúncias diárias de corrupção e malversação do dinheiro público – o
interesse de diversos grupos em se aliarem aos fabricantes dos veículos, contra o interesse público: a substituição constante dos equipamentos abre
margem a diversos entendimentos particulares, constantes e bem distantes do interesse maior do público.
Assim, é fácil entender por quê, quando temos abundância de energia elétrica com custo
relativamente baixo, e redes instaladas, bem como os veículos e a cultura de uso, para o tráfego regular de linhas de transporte coletivo com
trólebus, e vemos declinar acentuadamente a disponibilidade de combustíveis fósseis (ademais, altamente poluentes), existam grupos tramando contra a
manutenção dos trólebus em Santos, com a progressiva extinção das linhas, em vez da renovação normal dos veículos.
Nas grandes cidades de todo o mundo – podemos apontar exemplos nos Estados Unidos, na
Alemanha, na Suíça e em muitos outros países – os trólebus e bondes são mantidos e até recuperados, para uso normal pelos cidadãos (não falo de
linhas turísticas, que também existem, mas dos tráfegos normais). É o caso de Jersey City, subúrbio de New York, que em 2000 colocou em tráfego 22
novos bondes articulados japoneses, para o transporte público regular.
Os bondes e trólebus podem conviver harmonicamente no trânsito urbano, sendo mais
adequados ao uso a que se destinam (pequenos percursos, com paradas constantes, normais para veículos elétricos, mas que demandam esforços incomuns
nos veículos dotados de motor a combustão, daí o desgaste rápido), sem o barulho característico dos motores dos ônibus e sem a fumaça. Podem ser
híbridos, com bateria ou motor auxiliar que permitam continuar o percurso mesmo sem a energia elétrica, evitando congestionar o trânsito. E a rede
aérea bem construída e em bom estado torna raros os casos de desconexão que obrigam o funcionário a reengatar a alavanca na fiação. Com isso, caem
por terra os derradeiros argumentos contrários aos bondes e trólebus.
Santos sempre deu exemplos ao Brasil e ao mundo, seja na busca pela Independência, na
abolição da escravatura, na vanguarda cultural, na defesa de interesses coletivos. Vem dando um exemplo de quanto é valorizada pela comunidade
local, nacional e internacional, a recuperação e manutenção de seu passado histórico, inclusive como fator de geração de renda pelo turismo, de
atração de eventos culturais e artísticos, que não teriam sentido numa cidade cuja identidade estivesse totalmente descaracterizada. A região
metropolitana vem se caracterizando ainda como defensora de tudo quando contribua para a melhora ambiental, eis o exemplo de Cubatão, símbolo
mundial da recuperação ecológica. E eis o distintivo Costão da Mata Atlântica, que é a identidade coletiva da região para efeitos turísticos. Claros
esses interesses, cabe defendê-los, acolhendo a manutenção dos veículos elétricos e a ampliação das redes e rotas existentes, não sendo defensável
por nenhum argumento a extinção dos mesmos em favor de veículos reconhecidamente causadores de poluição sonora e ambiental.
Santos tem uma identidade, e quer preservá-la. Há mais de quatro décadas, os trólebus
fazem parte da paisagem, pelo menos duas gerações já cresceram convivendo com esses veículos. Não faz sentido que os mesmos que investem na
preservação dos bondes permitam a continuidade da degradação dos trólebus, levando à extinção das linhas, do conhecimento técnico e da
infra-estrutura existente, para que a próxima geração tenha de investir na recriação desse transporte, da mesma forma como a geração atual vem
despendendo grandes esforços para recuperar o transporte por bondes, até importando veículos de outros continentes.
E, se quisermos descartar todo o interesse cultural e turístico que
justificaria a manutenção das linhas regulares de trólebus, ainda teríamos, como citado acima, toda a argumentação baseada em questões econômicas e
ambientais – e que é a mesma usada pelas autoridades quando resolvem implantar um sistema de transporte metropolitano baseado em trens elétricos –
como em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Carlos Pimentel Mendes
Jornalista
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