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A mistura quente e frio
Não é só na temperatura: na vida, os estonianos são mais introspectivos, mas não dispensam o
calor brasileiro
Ronaldo Abreu Vaio
Da Redação
Roberta Laas, 25 anos, é um nome para ser guardado: ao que
consta, ela é a única representante da Estônia radicada em Santos. E isso não é pouco, considerando o imenso contraste entre a ardência do
verão brasileiro e o tiritante inverno de Tallinn – a capital, onde morava. Da mesma forma como aqui a marcação dos termômetros fica
pululando pelos 35 graus em janeiro, lá, pode facilmente despencar para enregelantes dez graus negativos – na média. Mas o deleite de uns pode ser o
desespero de outros. Uma das coisas que mantém Roberta em Santos – além do marido brasileiro, é claro – é o clima quente. "Sou uma rata de praia",
admite, em um português perfeito, embora só esteja aqui há um ano e meio.
Praias, porém, não faltam em sua terra natal. Como um dos três países Bálticos (os outros são a Letônia e a
Lituânia), e uma grande quantidade de ilhas formando o território (cerca de mil), a Estônia tem uma estreita,
e histórica, relação com o mar.
Do binômio frio e mar, que favorece a melancolia, talvez brote uma certa introspecção, que
Roberta dá a entender, compõe um tanto do jeito estoniano de ver e sentir o mundo. Está em coisas como não se dizer eu te amo com a
frequência com que ela observa no Brasil – inclusive de pais para filhos e vice-versa. Ou na pessoa que toma um tombo na rua e pode ser ignorada
pelos demais passantes – o que também não aconteceria no Brasil, como ela reconhece e admira. Com tudo isso, é fácil deduzir que fazer amigos na
Estônia não é tarefa das mais fáceis. Mas, uma vez selada a amizade, ela será à toda prova. "Nunca vai te trair".
Domínio russo e desejo de independência - A Estônia só foi se estabelecer como um estado autônomo em 1989. Até então, sofreu quase 300 anos
de dominação russa, com um breve hiato, de 1920 a 1940, que serviu apenas para uma mudança de regime da parte dos dominadores históricos. O czar deu
lugar aos bolcheviques e o sistema monárquico, ao comunista.
Com uma pontada de ironia, Roberta descreve o período sob a batuta da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) como de grande criatividade
em seu país. "As pessoas não tinham nada, precisavam reinventar tudo. Todo mundo costurava, as roupas velhas eram remodeladas (para serem
reaproveitadas)".
A criatividade era especialmente intensificada no início de cada mês, já que parte dos salários era
paga em cupons valendo, por exemplo, um sofá, uma dúzia de ovos, sete litros de leite, 15 pães – tudo dependendo da conjunção entre a atividade, a
necessidade e, principalmente, a disponibilidade em geral precária.
A criatividade à máquina de costura se estendia ao jardim de casa: todo mundo tinha a sua horta, segundo Roberta. Mas esse já era um trabalho a que
os estonianos se entregavam com um prazer que extrapolava a necessidade. A prática já vinha de muito antes e continuou muito depois: até hoje,
segundo ela, é comum na Estônia essa simbiose com a terra.
Ainda se usa correntemente os chás de camomila e de menta para se dormir melhor, o própolis para
combater irritação nas vias respiratórias e o alho como antibiótico, por exemplo. Muitos desses velhos remédios naturais são colhidos nas florestas,
no verão, e guardados para o inverno.
De tão arraigadas, e sobretudo sem implicâncias político-ideológicas, tais práticas
simples sobreviveram ao jugo russo. Já outras práticas não tiveram a mesma sorte. O cristianismo, cujos registros da presença na Estônia remontam ao
ano 1030, sobrevive hoje em um país que ostenta um dos menores índices de religiosidade do mundo. "Isso ficou (dos russos). A história de Jesus,
(era contada) como uma história da carochinha.
Roberta Laas e os cintos de lã, tradicionais das ilhas estonianas. Cada um tem uma cor e um
desenho, que indicam a procedência e o status da mulher que usa, se casada ou solteira, por exemplo. Já a caneca traz um desenho típico que
indica a ilha de Muhu
Foto: "xxxx", publicada com a matéria
Vontade de autoafirmação e orgulho - Quando o império soviético ruiu, a cultura
norte-americana invadiu o país com o apelo de modismos deslumbrantes, fosse do cinema ou de melodias pegajosas como o chiclete de James Dean.
Seguiu-se algo como o efeito da mola: durante alguns anos, viveu-se um natural período de adoração de tudo o que vinha de Tio Sam.
Passado o frenesi, hoje Roberta vê uma nova geração com orgulho das coisas e valores estonianos. "Estamos começando a perceber que também somos
importantes". Essa percepção, sem dúvida, tem raízes em tudo o que se construiu.
A Estônia, hoje, é um dos países mais informatizados do mundo. Os RGs locais vêm com chip e
têm um uso prático que vai além de apresentá-lo à polícia durante uma batida. Pegar um ônibus, por exemplo. Para comprar uma passagem, o
usuário envia um torpedo para uma central. Só depois, ele recebe a conta. Já no coletivo, o fiscal, com uma máquina, confere se o torpedo foi
enviado. Caso contrário, é pelo registro do chip do RG que aplica uma multa no esperto. "Pra mim, é super estranho ter que ir na
lotérica pagar contas. Mas aqui (o Brasil) é tão grande, que talvez não desse para implantar coisas assim".
Mas ir a lotéricas pagar contas não é a única coisa diferente para Roberta no Brasil. A dependência dos filhos em relação aos pais, também. Em seu
país, na adolescência, os jovens se viram em empregos de verão, como vender jornais ou colher morangos. Ganham responsabilidade mais cedo e
saem de casa bem jovens.
A própria Roberta deixou o lar aos 17 anos; formou-se em Ciências Culturais e se transformou em
fotógrafa e ilustradora. "Nossa aspiração é não depender dos pais, nem de ninguém". Essa seria outra faceta do caráter durão do estoniano, que
dificilmente é pego pelo estômago. Segundo Roberta, o regime lá seria similar ao dos faquires indianos, se comparado ao daqui, onde, para ela, "as
porções são enormes".
Como em outras instâncias socioculturais, na cozinha, a Estônia também recebeu muitas influências de outros povos, principalmente russos, alemães e
escandinavos. Um café da manhã terá mingau ou sanduíche; no almoço, algo leve, como uma sopa de frango, por exemplo; no jantar, salada, batatas e
carne, geralmente de porco.
No Brasil, admira as frutas. "São maravilhosas", resume. Também, pudera: o mamão, em sua terra, tem
gosto de shampoo, como diz; o coco não existe inteiro, fresco.
Embora sofra com o natural choque de culturas, o fantasma do frio e da escuridão em sua terra a
impelem a esse sonho brasileiro, cujo frescor é uma brisa cálida, em um domingo de ruas vazias, no Centro de Santos. Reconhece uma solidão taciturna
no povo ao qual pertence – "odeiam andar em shoppings, com muita gente" – sem que isso seja bom ou ruim. "Gosto dos brasileiros: são mais
solidários do que os estonianos".
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Conectados, Skype e eleições - Se a Estônia não for o país mais conectado do mundo,
certamente está entre os primeiros em difusão da internet. Um movimento de voluntários chamado WiFi.ee pressionou
bares, restaurantes e governos para instalação gratuita de internet sem fio em todos os espaços públicos e privados, mas com circulação púbica. O
resultado é que hoje se conecta um computador à rede em qualquer esquina do país.
Além disso, o governo é todo digital: as leis são publicadas apenas online, com
possibilidade dos cidadãos as comentarem. Desde as eleições parlamentares de 2007, os estonianos, se quiserem, têm a opção de votar pela internet. E
a cereja do bolo virtual: o Skype, um dos mais conhecidos softwares de comunicação foi desenvolvido por três programadores estonianos.
Liberdade de imprensa - A Estônia ocupa o terceiro lugar de 2012 no ranking de Liberdade de Imprensa, realizado pela organização
Repórteres sem Fronteiras. Em primeiro e segundo estão Finlândia e Noruega.
O Brasil ocupa um modesto 99º posto, em 179 possíveis.
Menos religioso - Pesquisa de 2009 do Instituto Gallup revela que apenas 16% dos estonianos acreditam que a religião tem um papel importante
em suas vidas.
A bandeira - Três listras, azul, preta e branca, de cima para baixo. A possível inspiração é um típico começo de uma noite de inverno na
Estônia: o branco, no chão, é a neve. O negro são as árvores das florestas e o azul escurecendo, o céu se despedindo da luz.
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Estônia no Brasil - A Osklen, famosa grife esportiva, foi criada por Oskar Metsavaht,
brasileiro de origem estoniana. Ele é o reflexo de uma imigração que começou em 1908, na colônia mineira de Padre José Bento, quando os pioneiros
chegaram.
Em 1925, porém, é que aportou em Santos um contingente de 500 estonianos, que seguiram o mesmo
curso da maioria dos imigrantes de todas as outras nações no período: de Santos, foram embarcados à Casa do Imigrante, em São Paulo. Alguns
permaneceram na Capital, outros foram para as fazendas cafeeiras no interior, no Paraná e em Minas Gerais.
República da Estônia (Eesti
Vabariik) Capital - Tallinn
População - 1.274.709 (2012, estimativa)
Línguas oficiais - Estoniano
PIB - US$ 22,2 bilhões (2011, estimativa)
Renda per capita - US$ 20.600 (2011, estimativa)
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) - 0,812 (2010, muito elevado)
Datas nacionais - 24 de fevereiro (1918, independência da Rússia), 16 de junho (1940, reocupação russa)
e 20 de agosto (1991, redeclaração de independência, da Rússia)
Colônia na região - duas pessoas, uma na Cidade, outra em São Vicente, segundo informa o Consulado
Honorário da Estônia em Santos
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