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Muitos mundos num país
Número de idiomas é amplo, mas a Índia tem um ponto de convergência: o hinduísmo, que embasa
a divisão social
Ronaldo Abreu Vaio
Da Redação
"É brincadeira do avião". A frase, uma sonora exclamação, foi o
primeiro pensamento formado na mente de José Myalil Paul em terras brasileiras, ao olhar pela janela da aeronave, preparando-se para pousar no Rio
de Janeiro, em 29 de outubro de 1992. Como padre da Igreja Católica Apostólica Romana designado para uma missão em um país bem diferente do seu,
Myalil estava preparado para "o diferente", como diz. Mesmo assim, não conseguiu deixar de se surpreender com a parcimônia dos cariocas em relação
ao tamanho de sungas e biquínis – o oposto do que observava na Índia, onde as mulheres vão à praia de sari, a indumentária feminina típica,
que cobre o corpo inteiro, até abaixo dos tornozelos.
Depois de 20 anos, para os santistas, Myalil é apenas o padre Paul, da Paróquia Catedral. Ou seja, um brasileiro como qualquer outro, apesar do
sotaque hindi (a principal língua indiana) ainda bastante carregado. O próprio padre Paul contribui para a boa acolhida que teve, como reconhece.
"Cultura é algo de nascimento, você não perde. Mas eu hoje vivo como qualquer santista vive".
Isso inclui caminhadas na praia e arroz e feijão nas refeições, embora tenha acesso à maioria dos
ingredientes necessários para fazer um appam, por exemplo – pão redondo, de farinha de arroz, coco ralado e fermento, assado na frigideira,
degustado com molho de curry. E o que dizer da surpresa de encontrar uma fruta tão prosaica como a jaca, a milhares de quilômetros de
distância de casa? "Não imaginei, pois só tem em alguns pontos da Índia".
Hinduísmo e sociedade - Costuma-se dizer que o Brasil é vários países em um só. Se for assim, então a Índia é muitos planetas orbitando a
mesma porção de terra. São 22 línguas regionais distintas, distribuídas por 28 estados. Dessas, a predominância é do hindi, falado por 70% da
população. O ponto de convergência da nação é o hinduísmo, com 82% de adeptos no país – ou 750 milhões de pessoas. Muito mais do que uma questão de
fé, na Índia, a religião forneceu as bases que formam uma estrutura social histórica: o sistema de castas.
"Oficialmente, não existe desde a colonização inglesa (século 19). Mas, na prática, está lá até
hoje", comenta padre Paul. O sistema foi construído com base na crença da reencarnação. Há quatro níveis sociais: os brâmanes (sacerdotes
religiosos), os xetreia (os reis e dirigentes do país), os yashie (comerciantes) e os xutra (operários e trabalhadores, cuja
função é servir).
Por esse sistema, considerando a Lei do Carma, da reencarnação, quem nasce em uma casta é porque merece estar ali, por conta do que fez em vidas
passadas – não há mobilidade social. "A um brâmane, ser um sapateiro é uma vergonha. Por outro lado, quem nasce xutra, apesar de todas
as dificuldades e humilhações, ele não se revolta, pois se considera culpado da sua condição".
Dessa forma, o hinduísmo, ponto de encontro da nação, se torna também um agente de
separação. Contudo, padre Paul afirma que o sistema já não se sustenta nos grandes centros e que os governos têm se esforçado para mudar esse
quadro. Um exemplo disso são as cotas de 12% reservadas a pessoas oriundas da casta xutra em concursos públicos. Qualquer semelhança com as
cotas raciais em universidades no Brasil não é mera coincidência: se lá o apartheid floresce pela religião, aqui é pela economia.
O padre José Myalil Paul, a freira Franciscana Omana e a bandeira de seu país: o verde é a
esperança; o branco, a paz; e o abóbora, a prosperidade. A roda é em azul-marinho e reproduz o Ashoka Chakra. Possui 24 raios, cada um representando
uma virtude. A primeira, o amor; a última, a fé na bondade de Deus
Foto: Alberto Marques, publicada com a matéria
Pequenas diferenças, grandes aprendizados - Deus está em todas as coisas. Este é outro ponto
crucial do hinduísmo e também moldou muitas das relações sociais indianas. Um mero bom dia se transforma uma reverência no cumprimento tradicional.
Com as mãos unidas na frente do peito, diz-se namastê (seja bem-vindo), à guisa de bom dia, boa tarde, boa noite – dependendo da hora – ao se
encontrar alguém na rua. A ideia por trás disso é que se está cumprimentando a Deus. Da mesma forma, quando alguém chega em uma casa, todos que lá
já estão se dirigem para saudá-la – no Brasil, é exatamente o contrário, como observa padre Paul. "É que lá as pessoas consideram uma visita de
Deus".
Por causa de pequenas diferenças nos costumes, ele já passou por grandes mal-entendidos. Tome-se o seu primeiro Ano-Novo no Brasil. Padre Paul foi
convidado para a casa do amigo de um outro padre. Como haveria um jantar, e na Índia o Ano-Novo é um dia normal, sem uma ceia em horário especial,
ele não comeu nada depois do almoço. O relógio bateu nove, dez da noite, a fome apertando e ninguém falava em comida. "Cheguei para o meu amigo:
'Cadê o jantar?', e ele me disse para esperar a meia-noite...", sorri.
De outra feita, ao final de uma festa de aniversário, o anfitrião estendeu-lhe um prato de bolo
para levar consigo. Padre Paul polidamente recusou e o anfitrião melindrou-se. "Eu não sabia. Na Índia, é uma ofensa oferecer comida assim, é como
se você inferiorizasse o outro. Se há muita amizade e sobra comida, depois da festa, no outro dia, o anfitrião leva um pouco na casa do amigo. Mas
nunca dá assim, na festa, na frente de todos", explica.
Enclave católico - O leitor já deve ter estranhado Myalil ser um padre católico, apesar de oriundo de um país cuja religião ocupa o cerne da
estrutura cultural e tem preceitos tão distintos da sua. A culpa disso é de São Tomé, o apóstolo de Cristo. Segundo conta padre Paul, desde há muito
tempo havia uma rota comercial entre a Índia e Jerusalém.
Em 56 d.C., Tomé, seguindo comerciantes judeus, foi à Índia em pregação e converteu sete famílias influentes. Hoje em dia, 3% dos indianos são
católicos, especialmente no sul do país, no Estado de Kerala. Padre Paul é da cidade de Cochin, nesse Estado; a história católica de sua família
pode ser traçada no século 12. O próprio nome dele reflete essa tradição: ele é José e também Paulo (Paul), duas referência bíblicas claras, em
homenagem à Igreja de José e Paulo, em sua cidade. Mas, além de católicos, há ainda minorias muçulmanas e budistas na Índia.
No aspecto da tolerância religiosa, os dois países se parecem muito, diz Paul. Lá, a convivência entre todos os grupos é harmoniosa e cordial, tanto
como aqui. Mas, ao contrário do Brasil, em que o sincretismo é regra comum, na Índia as práticas ficam mesmo como óleo e água: não se misturam. E
pelas palavras de padre Paul, nem precisam mesmo se misturar. "Toda religião tem presença da verdade, que é Deus".
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Budismo - Outra das principais religiões do mundo, também nasceu na Índia. Sidharta Gautama
era um príncipe nascido em Lumbini, por volta de 536 a.C. Durante toda a infância e no início da juventude, foi mantido preso no palácio, para que
não visse as agruras do mundo exterior. Certo dia, burlou a vigilância de seu pai, o rei Suddhodana, e foi conhecer o mundo real – de doenças,
miséria, velhice e morte. Chocado, resolveu abandonar a vida material e se dedicou à busca espiritual. Aos 35 anos, teria se acomodado em torno de
uma figueira e se predisposto a ali ficar em meditação até a iluminação – ou o nirvana. Aos 40 anos, teria atingido seu objetivo metafísico e se
transforma em Buda, o Iluminado.
Mahatma Ghandi - Nascido Mohandas Karanchand Ghandi em Porbabandar, em 1869, ficou conhecido como Mahatma ("A grande alma", do
sânscrito). Foi o principal articulador da independência da Índia do jugo inglês e fundador do Estado moderno indiano, em 1947. Defensor do
satyagraha ("caminho da verdade"), liderou uma revolução branca, sem armas, baseada em tradicionais princípios hinduístas de verdade e
não violência.
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Bollywood - O termo, inspirado em Hollywood, a meca do cinema norte-americano, foi cunhado
para designar os filmes produzidos na cidade de Bombay (atual Mumbai) – daí o B –, mas se tornou sinônimo da indústria cinematográfica em língua
hindi.
O cinema chegou à Índia por acaso, apenas sete meses depois dos Irmãos Lumière o inventarem, em
1895, quando o empresário dos irmãos, Maurice Sestier, passou por lá. Apenas 35 anos depois, na década de 30, já eram produzidos cerca de 200 filmes
por ano. Em 2011, esse número foi de 1.255.
O filme mais caro já feito por lá custou US$ 30 milhões (R$ 61,3 milhões) – mais de três vezes o
valor do mais caro feito no Brasil até agora, Nosso Lar, de 2011: US$ 9 milhões (R$ 18,4 milhões). Em venda de bilhetes, nem os Estados Unidos
superam os indianos: mais de 3 bilhões por ano na terra de Ghandi. Nos domínios de Tio Sam, o número raramente ultrapassa os 2,5 bilhões.
Hinduísmo - Atrás apenas do Cristianismo e do Islamismo, a terceira religião com maior número de praticantes no mundo (são mais de 900
milhões, incluindo as suas quatro correntes) também pode ser a mais antiga tradição religiosa viva, hoje em dia. As origens do Hinduísmo se perdem
na noite dos tempos. Acredita-se que possa ter algo em torno de 7 mil anos de idade e sua teologia se baseia no culto aos avatares – manifestações
do deus supremo, Brâman.
Essas manifestações se dão no homem e na natureza. A partir daí, há uma tríade de deuses
superiores, Brahma, o criador, Shiva, o salvador, e Vishnu, o destruidor. As escrituras são vastas e envolvem Mitologia e Filosofia, além da
Teologia. Dentre essas escrituras, os Vedas e os Upanishads têm a primazia da antiguidade. Outros textos importantes são os Ágamas, os Puranas, os
Tantras e os épicos Ramaiana e Mahabarata.
O rio e os índios - Hindu é a palavra persa para o Rio Indo. É de onde deriva o nome do país, Índia. E de onde vem, indiretamente, a
nomenclatura índios aos habitantes do Novo Mundo, as Américas. A denominação teria sido cunhada por Cristóvão Colombo (1451-1506). Reza a História
oficial que os colonizadores buscavam novo caminho para a Índia e estavam convencidos, a princípio, de que haviam alcançado aquele país, ao invés de
descoberto um continente.
Taj Mahal - É um mausoléu na cidade de Agra, no Norte da Índia, concebido pelo imperador Shah Jahan, em memória de sua esposa preferida – que
ele chamava de joia do palácio – morta ao dar à luz o seu 14º filho. Todo em mármore, incrustado de pedras preciosas e a cúpula costurada com fios
de ouro, o Taj Mahal foi construído sobre o túmulo da joia do palácio e consumiu 22 anos de trabalho, entre 1630 e 1652, para cerca de 20 mil
homens, vindos de várias partes do Oriente.
Por tudo isso, é considerado a maior prova de amor de todos os tempos. Tal devoção foi reconhecida
pela Unesco como um Patrimônio Histórico Mundial. O Taj Mahal (abaixo) também foi incluído na lista das sete maravilhas do mundo moderno – ao lado
do Cristo Redentor.
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República da Índia (Bharat
Ganarajya) Capital - Nova Déli
População - 1.210.193.422 (censo, 2011)
Línguas oficiais - Nenhuma. O hindi e o inglês são falados em quase todo o país, mas cada uma das 28
províncias tem uma língua própria. Há, ainda, centenas de dialetos.
PIB - US$ 1,848 trilhão (2011)
Renda per capita - US$ 1.388 (2011)
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) - 0,547 (médio, 2011)
Datas nacionais - 15 de agosto (Independência do Reino Unido, 1947) e 26 de janeiro (instituição da
República, 1950)
Colônia na região - Não há informações, nem do Consulado Geral da Índia em São Paulo, nem do Centro
Cultural da Índia, também na Capital.
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