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A fina arte do equilíbrio
Os japoneses conseguiram harmonizar a preservação de sua cultura milenar e a integração na
nova pátria
Ronaldo Abreu Vaio
Da Redação
Sushi, sashimi, ikebana, tempurá. As palavras não negam a origem: todas são japonesas. E todas estão nos dicionários… de português.
Em Santos, o dicionário ganha vida: está estampado em restaurantes, faixas, monumentos, placas de rua. Dentre as cidades brasileiras de porte similar, aqui talvez seja o lugar em que as sementes da imigração japonesa mais floresceram. Além do porto, que lhes abriu as portas do País, a razão disso seria um equilíbrio entre a integração e a preservação culturais, especialmente entre as novas gerações.
É o caso da família Norifumi e a religião. Na sala de estar do apartamento, destaca-se um altar dedicado ao xintoísmo, a mais antiga religião japonesa, com raízes que remontam a 2 mil anos. Não está ali por acaso: o altar deve ser colocado no cômodo mais nobre da casa, com a fronte voltada ao Leste. No Brasil, bem como no Japão, o cômodo mais nobre geralmente é a sala de estar.
"Nas famílias mais tradicionais, o pai presenteia os filhos homens, quando saem de casa para constituir a sua própria família, co um altar do tipo. Este está comigo há uns 34 anos", conta o patriarca Sérgio Norifumi Doi, atual presidente da Associação Japonesa de Santos.
A religião xintoísta deriva de relatos históricos e mitológicos japoneses, compilados nos livros Kojiki, do ano 712, e Nihon Shoki, de 720. No primeiro, conta-se dos kami, deuses primordiais. Cada um deles refere-se a um aspecto da vida e da natureza. "Você tem até o deus para o telhado de uma casa. Se você for mexer no telhado, pede ajuda ao deus correspondente", ensina Norifumi.
Veneração aos antepassados – Muda o ambiente, surge uma nova religião. Da sala de estar à cozinha dos Norifumi, uma porta separa o xintoísmo do budismo. Em um canto da mesa, está o altar, preto e dourado – na verdade, uma casinhola, onde ficam as fotos dos antepassados e descendentes falecidos.
O budismo nasceu na Índia e chegou à Terra do Sol Nascente pela China. No Japão moderno, há quatro grandes correntes: Zen, Terra Pura, Xingom e Nichiren – a praticada por Sérgio, a esposa e o filho. E, em sua prática, incluem a oferenda diária, ao pé do altar, antes das refeições: pode ser chá, na hora do café da manhã; ou arroz, no almoço. Ou, ainda, algo de que os familiares lembrados ali apreciavam em vida.
Na cultura japonesa, a veneração aos antepassados transpõe a religião e o círculo familiar. Estende-se também aos anciãos, verdadeiramente respeitados e cultuados por sua jornada de vida. "Não é porque fiz pós-graduação que sei mais. Sei apenas em um campo estreito. Mas, na experiência de vida, quem nasceu antes sabe mais", explica Norifumi.
Por isso, a Associação Japonesa de Santos promove anualmente, entre setembro e outubro, o Keiro-Kai (Encontro dos Idosos), um almoço com apresentações artísticas, oferecido aos anciãos da colônia com mais de 80 anos. A época não foi escolhida por acaso: no Japão, o Keiro No Hi (Dia do Respeito aos Idosos) é comemorado sempre na terceira segunda-feira de setembro.
Ao Keiro-Kai, justapõe-se o Undo-Kai (Encontro Esportivo), um dia aberto à comunidade toda, cuja tônica são as gincanas esportivas. Não fossem alguns toques típicos – como servir o mandyu, doce à base de feijão – o Undo-kai em nada lembraria uma cultura tão distante. Realizado sempre em 1º de maio, já está na 34ª edição em Santos. A inspiração eram as gincanas realizadas no Japão para comemorar o nascimento do imperador Showa (29 de abril ), mais conhecido como Hirohito. Ele foi o imperador japonês de mais longo reinado: de 1926 até o ano de sua morte, em 1989. "As gincanas pretendem mostrar o conceito de equipe, de que uma sociedade se constrói na colaboração".
Natal e Ano-Novo – Aos 78 anos de idade, dos quais 47 em Santos, o português de Hiroshi Endo ainda é claudicante. "Não tinha tempo de ir na escola, né?", diz, com um sorriso. Ele é um exemplo da última leva de imigrantes japoneses que chegou ao Brasil logo depois do trauma e da crise econômica que se seguiram à Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Endo é da região de Fukushima, aquela que sofreu um desastre nuclear em 2011, na esteira do tsunami que atingiu o Sul do país. Aportou aqui em meados dos anos 60, após viver algum tempo na Bolívia. Em Santos, trabalhou no extinto Banco América do Sul – pertencente a japoneses.
Formou-se então um caldo cultural mais grosso do que o da feijoada que aprendeu a apreciar. Embora budista, nunca ignorou os natais cristãos dos trópicos. Comemorava em família – ele, a mulher e os três filhos – à moda ibérica: com um assado, geralmente porco ou frango, como prato principal.
Mas os anos-novos nunca deixaram de ser à moda japonesa. A celebração dura de três a quatro dias. Na mesa, não podem faltar o moti, um bolinho de arroz amassado, e o ozouni, a sopa desse bolinho de arroz. O altar budista não é negligenciado: são ofertados dois bolinhos de arroz, um em cima do outro, acompanhados de uma laranja e uma dose de saquê – a aguardente japonesa, destilada do arroz. Tudo isso para que o novo ano traga saúde e felicidade, caso a presença de um já não implique a do outro.
Hiroshi nunca pensou em retornar de vez à terra natal – "japonês olha para a frente; quando sai, não volta", diz. A rigidez sinalizada na frase é eco de profundos traços japoneses; indiretamente, é a voz da ordem, do cada coisa em seu lugar tão nipônicos. Talvez Hiroshi nem perceba, mas carrega consigo um paradoxo, já que, no Brasil, sua admiração recai justamente sobre o desprendimento.
"Lá (no Japão), as festas têm hora para acabar. O convite já vem com a hora do início e do fim. No melhor da festa, chega o anfitrião e termina tudo", conta. "Aqui, não. Os brasileiros são mais simples".
Norifumi e o altar xintoísta na sala de estar: veneração cruza as gerações e é uma das marcas da cultura japonesa em Santos Foto: Carlos Nogueira, publicada com a matéria
Dicionário cultural
Artes Marciais – embora também presentes no Ocidente, são uma tradição asiática. No Japão, existem dezenas. As mais difundidas são o sumô, o kendô, o caratê e o judô.
Gueixas – são japonesas que estudam as artes milenares da sedução, dança e canto. Ao contrário da crença, o ser gueixa é uma tradição cultural sem vínculo com a prostituição.
O ABC do sushi – A habilidade com a faca nas mãos parece a de um praticante do kendô. Mas Márcio Okumura, de 40 anos, é apenas um sushiman – como se isso fosse pouco. À frente da Okumura Temakeria e do restaurante do Estrela E.C. – outro reduto nipônico em Santos -, ele ensina como se faz bons sushis e sashimis, as duas estrelas da gastronomia japonesa.
O segredo, claro, está no peixe. "Há toda uma técnica de limpeza, de retirar as vísceras sem macular a carne, nem ficar dando marteladas no peixe ou jogando água, como a gente vê por aí. Aliás, jogar água estraga a carne. Se você notar, o peixe nas casas de sushi não tem cheiro, como em supermercados", explica.
Oriundo de uma família de pescadores – muitos dos primeiros japoneses radicados em Santos eram pescadores e se fixaram na Ponta da Praia -, Okumura começa esse processo ainda na compra do pescado. No barco, usa uma espécie de furador de inox para fazer uma incisão no peixe e verificar a carne por dentro. Assim, escolhe os mais frescos. "O atum é um mistério. Ele chega lindo, mas o estado da carne vai depender do jeito que ele morreu".
Com o peixe fresco e limpo, o corte da carne para sushi e sashimi tem de ser cirúrgico. Para o sushi, por exemplo, um atum de quase 30 quilos exige incisões de quatro dedos, ao longo do comprimento, de cima a baixo. Esses blocos, depois, são cortados no sentido contrário ao das fibras aparentes. "É para ele ficar macio e desmanchar na boca, como na carne de boi".
Embora os peixes mais conhecidos sejam salmão, atum e tilápia, Okumura garante que não há limite de espécie para se fazer sushi ou sashimi. Eles podem ser preparados até com a espinhosa sardinha. "Puxo a espinha do rabo para a cabeça, ela sai quase inteira. O pouco que sobra é pinçado".
A origem do sushi e do sashimi se perde na noite dos tempos. Mas sabe-se que o processo e o gosto mudaram muito. A palavra sushi, por exemplo, significa é azedo, uma referência à forma tradicional, em que o peixe, na verdade, era fermentado a partir do arroz – sendo ambos conservados em sal. Naquela época remota, o arroz era descartado após a fermentação.
O sushi atual nasceu no século 19, por obra do cozinheiro Hanaya Yohei. Era uma forma primitiva de fast food, já que o consumo se dava em qualquer parte e logo após o preparo – sem aguardar a até então tradicional fermentação do peixe.
Foto: Carlos Nogueira, publicada com a matéria
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Tsunodaro – é uma espécie de tonel, utilizado
para servir o saquê em dias solenes. São usados em dias de festa. Se pretos ou cinzas, nos casos de funerais. |
Foto: Carlos Nogueira, publicada com a matéria |
Japão (Nippon-koku)
Capital - Tóquio
População - 127.076 milhões (2009)
Língua oficial - japonês
PIB - US$ 5,85 trilhões (2011)
Renda per Capita - US$ 45.774 (2011)
IDH - 0,91 (2008) (muito elevado)
Datas nacionais -11 de fevereiro (Dia da
Fundação Nacional), 3 de maio (Dia da Constituição). Colônia na região
– no primeiro navio com imigrantes japoneses que aportou na Cidade, o Kasato Maru, em 1908, havia 781 japoneses, contratados pela
Companhia Imperial de Imigração. Outros vapores aportavam periodicamente, com mais imigrantes. Até a Segunda Guerra, a Associação
Japonesa de Santos guardava os registros do número de japoneses na Cidade. Durante o conflito, com as restrições à língua e aos costumes
japoneses em Santos, muitos deles migraram para o Interior do Estado e esse registro se perdeu. Depois da guerra, nenhum levantamento foi
feito. Portanto, não há registro anual do número de japoneses e descendentes, na região. As principais entidades surgidas da colônia são
Associação Japonesa de Santos, Associação Atlética Atlanta e Estrela de Ouro Futebol Clube. |
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