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Encontrando o igual na diferença
Oriundos do país de menor desigualdade social do mundo, eles ensinam e aprendem na realidade
brasileira
Ronaldo Abreu Vaio
Da Redação
Em um país onde os deputados vão de casa ao parlamento de
bicicleta, é fácil imaginar que o adjetivo social tenha muitos e profundos usos, nos costumes. Talvez por isso, Mai-Britt Wolthers tenha se
impressionado tanto com a cena que presenciou em 1986, no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro, quando era recém-chegada ao Brasil. No final de uma
manhã, o caminhão do lixo,já em fim de expediente, passou em sua rua. Os trabalhadores pararam para o almoço. No final da refeição, sentados no meio
fio, empunharam suas marmitas vazias, garfos e facas e puxaram um samba. "O trabalho é duro. Eles moram em bairros pobres. E estavam ali, alegres.
Me senti deste tamanhinho", recorda.
Mai, como é chamada, é casada com John Wolthers – também filho de dinamarqueses, chegou a Santos
aos cinco meses de vida. Ele é, como se diz na Dinamarca, anden generation indvandre (segunda geração de imigrantes), uma definição que se
aplica também a nascidos no país, mas de pais estrangeiros. O termo é produto direto da cultura de um povo milenar, com raízes em tempos e espaços
bem delimitados. Assim, Mai e John tentam unir em sua vida o melhor do Brasil da miscigenação e da Dinamarca de uma única raça antiga.
Para ela, a multiculturalidade trouxe paciência, flexibilidade e tolerância – traços que aprendeu
ao lidar com as vicissitudes do Brasil. Afinal, como sobreviver ao absurdo da escassez de víveres no Plano Cruzado? Ou ao desespero do confisco,no
Plano Collor? "Os dinamarqueses não têm a abertura de mente dos brasileiros, que vem da mistura de culturas e da necessidade", avalia Mai. John
pondera, apontando o equilíbrio entre o melhor dos dois mundos. "Você tem que ter o foco, a disciplina (do dinamarquês) e ser criativo (como o
brasileiro)".
Parte da família Wolthers: Mai-Britt, John (sofá) e dois, dos quatro filhos, Daniel e Jonas. À sua
frente, a Dannebrog, como é chamada a bandeira dinamarquesa. Reza a lenda que, durante uma batalha na Idade Média, ela teria caído do céu nas mãos
do rei e os dinamarqueses, com isso, teriam vencido a luta. Em seu senso de humor peculiar, alguns dinamarqueses questionam a quantidade e a
qualidade da bebida ingerida pela tropa antes da contenda
Foto: Bruno Miani, publicada com a matéria
Harmonia na vida – Foco, disciplina. Os dinamarqueses são tão ordeiros, que até as festas
têm um roteiro definido. Se de aniversário ou casamento, à entrada, cada convidado recebe um panfleto, onde estão as músicas que serão cantadas, na
ordem em que serão cantadas. Nas ruas de qualquer cidade – grande ou pequena – cada ruído vem acompanhado do seu silêncio. E os ciclistas, nas
ciclofaixas ou ciclovias, são os maestros do trânsito: a partir deles, constrói-se toda a dinâmica do tráfego.
Nas fazendas, à beira das estradinhas, no final do verão, é possível encontrar pequenas caixas com
sacos de nye kartofler (batatas novas) dentro e o preço afixado do lado de fora. O passante que se interessar pega um saco e deixa o
dinheiro. Simples assim. Um adendo: as batatas estão para o dinamarquês como o feijão está para o brasileiro.
Na mesma época de verão, mais um exemplo de desprendimento está na colheita do morango.Em várias
fazendas, convida-se a comunidade para o trabalho. O pagamento? Comer quantos morangos a barriga aguentar. Comparecem os ricos e os menos ricos – a
igualdade social na Dinamarca é irritante de tão igual. E as crianças, loirinhas, é que mais aproveitam: empanturram-se e acabam 'ensanguentadas' de
morangos doces.
Tudo isso acontece no interior. Mas é bom que se diga, à exceção das maiores cidades – Copenhague
(capital), Aarhus e Aalborg – o urbano e o rural vivem juntos e em harmonia. Em grande parte, essa simbiose se deve ao território acanhado – são
apenas 43.094 km², contra os mais de 280 mil apenas do Estado de São Paulo.
Jantelov e 'vira-lata' – Ao mesmo em que todos têm tudo e a vida civil funciona com a
precisão dos relógios atômicos, é raro ver uma placa de proibido na Dinamarca. Será uma prova de que ordem e planejamento podem conviver com
liberdade? Ou, talvez, a indicação de que cada dinamarquês sabe o que pode e o que não pode fazer. A isso, culpam em parte a Jantelov (Lei de
Jante), um conjunto de dez preceitos hipotéticos da cidade fictícia de Jante, criada pelo escritor Aksel Sandemose, nos anos 30. Dentre esses
preceitos, estão 'você não pode achar que é algo especial' e 'você não pode pensar que é melhor ou mais esperto do que nós'. Enfim, uma verdadeira
máquina destruidora de autoestimas.
E, aqui, talvez esteja o pulo do gato entre Brasil e Dinamarca, como aponta Mai-Britt.
Enquanto lá estimula-se a inferioridade do indivíduo, o que ajuda a uniformizar e ordenar a nação, no Brasil, ao contrário, o ônus desse decantado
caos criativo gera um sentimento de inferioridade em relação ao país. É o famoso complexo de vira-lata, tão bem descrito por Nelson
Rodrigues.
Por outro lado, "na Dinamarca, até o encanador tem curso técnico; ele tem orgulho da sua
profissão", como diz Mai-Britt, indiretamente mostrando uma receita infalível de como reverter a desigualdade brasileira: uma educação sólida. Mai
viveu tanto tempo longe de sua terra, que já pode se dar ao luxo de sentir saudade das coisas mais corriqueiras. As estações, por exemplo. Bem
marcadas, apesar dos verões sofríveis, em que a temperatura média pode não passar de algo entre 15 e 20 graus. "Este ano, o verão caiu numa
quinta-feira", e sorri da brincadeira tão comum por lá.
E Natal sem árvore natural não é Natal. Como os pinheiros resistem pouco ao calor santista, para
receber Papai Noel, Mai improvisa uma palmeira enfeitada à moda dinamarquesa – com bandeirinhas do país e velas de verdade, acesas. Na noite do dia
24 de dezembro, a família dá-se as mãos e dança em volta da árvore, entoando cânticos natalinos – Noite Feliz é um deles, mas em dinamarquês,
claro. Artista plástica, em seus quadros Mai rendeu-se à exuberância das florestas brasileiras. "É tão fácil fazer uma árvore no Brasil, que talvez
por isso não se respeite tanto (a natureza)".
Foto publicada com a matéria
Hans Christian Andersen – O Patinho Feio talvez tenha sido ele mesmo. O belo cisne
dos contos de fada em que se tornaria o fez sonhar com A Pequena Sereia. E, quem sabe, não foi uma desilusão que o inspirou a tecer as
páginas de O Soldadinho de Chumbo… Sim, Hans Christian Andersen, um dinamarquês nascido muito pobre na cidade de Odense, em 1805, é o autor
desses contos infanto-juvenis que já fazem parte do imaginário mundial. Ele também escreveu para adultos, especialmente livros de viagem. Morreu em
Copenhague, em 1875. Outras obras infanto-juvenis igualmente memoráveis são A Polegarzinha e A Roupa Nova do Rei, aquela, da famosa
frase de uma criança inocente ao revelar o que todos viam, mas ninguém tinha coragem de dizer: "O rei está nu".´
"Ser ou não ser"… - … e "há algo de podre no Reino da Dinamarca" são duas famosas frases da peça Hamlet, de William Shakespeare. Talvez não
seja uma coincidência que o autor inglês tenha ambientado a sua tragédia no país escandinavo: na baixa Idade Média, no tempo dos famosos vikings, a
Dinamarca controlou boa parte da Inglaterra, a Suécia, a
Noruega, a Islândia, as Ilhas
Virgens e parte dos Balcãs. (N. E.: Balcãs ou Península Balcânica são a denominação
histórica e geográfica da região Sudeste da Europa, compreendendo Albânia,
Bósnia/Herzegovina, Bulgária, Grécia,
Macedônia, Montenegro, Sérvia,
Kosovo, a parte europeia da Turquia - denominada Trácia -, e em
alguns casos também Croácia, Romênia,
Eslovênia e Áustria).
Assim, a monarquia mais antiga do mundo é a dinamarquesa, cuja linhagem pode ser ininterruptamente
traçada até o ano de 980, com Harald Blaatand (Haroldo, o Dente Azul), o primeiro rei e unificador das terras nórdicas. Resquícios desse
tempo de invasões e conquistas são a possessão até hoje da Groenlândia (a maior ilha do mundo) e das
Ilhas Faroe.
Maersk – Sabe aqueles contêineres azuis, com uma estrela branca no meio? São da Maersk, uma das maiores armadoras do mundo, que é
dinamarquesa. A fundação da companhia foi em 1912, em Copenhague. Hoje, o grupo tem ramificações também no ramo do petróleo e da aviação.
Satisfação – Os dinamarqueses ocupam o topo de um ranking que mede a felicidade dos povos, elaborado pela Organização para Cooperação
e Desenvolvimento Econômico (OCDE), ligada às Nações Unidas. Também é o país com menor desigualdade entre ricos e pobres do mundo, segundo o índice
Gini, também medido pelas Nações Unidas.
Foto: Alexsander Ferraz, publicada com a matéria
Rugbroed – É a base do almoço dinamarquês: um pacto pão de centeio, com
sementes. Como paalaeg (recheio), muita coisa diferente, mas todos eles começam com manteiga – smoerbroed. Há desde salames variados a
arenque marinado. Na foto, rubroed com leverpostej (patê de fígado, geralmente de porco) e rugbroed com remoulade
(espécie de maionese de pepino). Por cima, o que se vê é a ristede loeg (cebola frita).
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"Gosto dos brasileiros. Eles fazem de tudo para ajudar" |
Betina Olesen, 35 anos |
Betina Olesen
Foto: Alexsander Ferraz, publicada com a matéria
Reino da Dinamarca (Kongeriet
Danmark)
Capital – Copenhague
População – 5.543.453 (estimativa 2012)
Língua oficial - dinamarquês
PIB – US$ 209,2 bilhões (2011)
Renda per Capita – US$ 10.200 (2011)
IDH – 0,866 (muito alto, 2010)
Data Nacional – 5 de junho (Dia da Constituição), 15 de maio (Dia da Libertação, 1945, após a Segunda Guerra).
A colônia – Uma estimativa informal dos próprios membros dá conta de algo entre 20 e 30 indivíduos, em Santos. Após contato por telefone
e e-mail, o Consulado Geral em São Paulo não transmitiu nenhuma informação sobre os números da comunidade, na região ou no Estado.
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