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Pragmáticos, mas com liberdade
Assim é este povo, que preza pela pontualidade, boas refeições, divisão das tarefas
domésticas e venera as tulipas
Ronaldo Abreu Vaio
Da Redação
"O Brasil é uma marca", crava com o olho clínico de economista
o holandês Steven Deloor, de 40 anos, que está em Santos há dois. Mas a frase serve para definir a percepção do Brasil em seu país natal: um
exportador de cultura exótica.
Assim, a um holandês que pela primeira vez ponha os pés aqui, será difícil entender porque um par de sandálias Havaianas dos mais simples pode
custar 30 euros (quase R$ 80,00) nos Países Baixos. Talvez a resposta esteja no fato de o exotismo
representar um antídoto ao pragmatismo típico dos holandeses.
Senão, vejamos: chegamos no apartamento de Steven, na Ponta da Praia, bem na hora do jantar. À
mesa, panquecas de espinafre, um prato suculento, saudável e rápido. "A gente gosta de comida boa, mas não valoriza o comer como aqui. Lá, a comida
é mais funcional. No Brasil, é um acontecimento".
Mas isso não explica as panquecas – uma especialidade nada holandesa. A elas, a justificativa é a
geografia – a localização e o tamanho do país – e o pendor secular às viagens e ao comércio exterior. De modo que o holandês se sente à vontade para
frequentar em sua própria casa as cozinhas italiana e francesa, por exemplo. Mas sem esquecer de pratos típicos, como o Boerenkool (Couve
Caipira), comum nos dias frios e escuros do inverno. Acompanhado de uma carne, consiste simplesmente em batata amassada com couve frisada, ambas
cozidas. E tempero a gosto.
Mãos masculinas, mãos femininas – Steven trabalha na Vopak – empresa holandesa de
armazenagem de petróleo e gás, cujas raízes remontam a 400 anos. É casado com uma brasileira, Renata Terralavoro, de 36 anos. O resultado da união
são Luca, de 3 anos, e Elena, 1 ano – em holandês, o 'h' tem som de 'r' e o casal procurou nomes cuja pronúncia fosse igual nas duas línguas. Uma
imparcialidade que se espelha no modus operandi de todo um país.
Na Holanda, os casais vivem em pé de igualdade. Lavar, passar e cozinhar são tarefas afeitas tanto
a mãos masculinas, quanto femininas. É assim não porque os homens são bonzinhos, mas porque as mulheres já conquistaram um nível alto de
independência há pelo menos duas gerações. "Se você oferece carregar a mala para uma mulher, por exemplo, é capaz de ouvir: Por que? Você acha que
eu não sei fazer?", sorri.
Mas essa independência, estampada no ser e estar das mulheres holandesas, talvez reflita uma parte
de um sentido de liberdade mais amplo. Vide por exemplo os cerca de mil coffee shops do país, que existem desde os anos 70 vendendo maconha e
haxixe (legalmente, desde 1995). "Não aumentou o consumo (por causa da legalização)", diz Steven. E apela a uma frase simples, de senso tão comum,
para justificar as coisas, como elas são. "O que é proibido é sempre melhor, atrai mais".
O mesmo se aplica às famosas vitrines dos bairros 'vermelhos' das grandes cidades holandesas, em
que as mulheres expõem livremente a natureza do seu negócio. "A prostituição não é legal. Mas é hipocrisia achar que vai se acabar com isso. Então é
tolerada de forma organizada e com fiscalização". Essa organização e pragmatismo arrancaram de Renata o seguinte comentário: "A Holanda parece um
grande condomínio fechado".
Capacidade de improvisação – No Brasil, a primeira grande diferença que observou em relação
ao seu país foi no que delicadamente chamou de 'percepção do tempo'. Em outras palavras, o costume do brasileiro de se atrasar aos compromissos. "Já
cheguei a ligar 19h50 para dizer que me atrasaria cinco minutos a um compromisso às 20 horas. Brincaram comigo", relembra.
Por outro lado, Steven reconhece que essa falta de pontualidade do brasileiro é o efeito colateral
de uma característica muito positiva: a capacidade de improvisação. De combinar e realizar na hora, seja um churrasco ou uma viagem. "Paris
está a 5 horas de carro da Holanda. Mas fala para um holandês, que ainda não tem nenhum programa para o final de semana: 'vamos a Paris?'. É viável,
mas ele vai dizer que não. Precisa organizar com cinco semanas de antecedência".
A princípio, tais características podem induzir alguém a pensar: 'o holandês é sisudo'. Ledo
engano. Na verdade, é também um povo alegre, festeiro e colorido – veja as tulipas. De festas, as de casamento talvez encerrem um microcosmo do
jeito holandês de ser. "Há uma cerimônia, uma recepção e um jantar, só para alguns. Depois, voltam todos os outros convidados que ficaram de fora do
jantar e é bebida e dança a noite inteira".
Steven, Renata e os pequenos Luca e Elena: ele veste uma camisa da seleção holandesa de 1988 – a
equipe campeã europeia de futebol, tinha Van Basten e Gullit.
Foto: Fernanda Luz, publicada com a matéria
Uma casa holandesa – Enquanto a vida do lado de fora transcorre no abrasante calor
tropical, a sala de Johanna Horn Laan, de 72 anos, e Thomas Van Der Laan, 79, é ornada por uma lareira ao estilo holandês, com as bordas decoradas
por azulejos brancos pintados à mão, em azul.
Aliás, os dois recriaram dentro de casa, em Santos, um pedaço de sua terra natal. "Na rua, estamos
no Brasil. Aqui dentro, é um pedaço da Holanda", diz Johanna, que chegou aos 3 anos, com os pais, a uma colônia holandesa em Ponta Grossa. Thomas
veio a primeira vez aos 27 anos, a trabalho. Engenheiro agrônomo com especialidade em culturas tropicais, por razões óbvias, teria um futuro
profissional mais promissor em um lugar como o Brasil. Mesmo assim, há saudade. E os dois se sentem divididos entre a natureza exuberante daqui e as
casas sem grades ou muros de lá.
A solução – na verdade, um paliativo – para esse impasse tão incômodo foi a adaptação da casa e
dos hábitos. Além da lareira, em uma das paredes da sala de estar Johanna ostenta um típico prato de porcelana de Makkum, na Frísia (costa holandesa
no Mar do Norte), original, cuja produção começou no século 17 e segue até hoje com a mesma família, os Tichelaar.
Mas as lembranças começam logo à porta da casa, onde estão dois pares dos típicos tamancos de
madeira, chamados klompen. Surgiram no século 15, esculpidos em toras da própria madeira de árvores da família das Populus – leves,
resistentes e isolantes. Eram usados no campo, para proteger os pés da lama e da umidade. Além disso, mantêm a temperatura constante – algo
imprescindível em um país cuja média anual não passa dos 11 graus Celsius.
E a vida holandesa de um tempo impreciso, em plena Santos do século 21, continua na rotina do
casal à mesa. Aliás, os holandeses comem com frequência impressionante: há nada menos do que seis refeições diárias, duas pela manhã, duas à tarde e
duas à noite.
A mais importante delas é o jantar, às 18 horas. Na mesa dos Laan, presença assídua do Hucspot:
batata, cenoura e cebola, como o klapstuk, pedaço de carne de boi bastante gordurosa, por cima – no Brasil, pode ser o acém. Tudo isso é
assado na panela. Depois de pronto, a batata, cenoura e cebola são amassadas e a carne é levemente grelhada na manteiga, para preparar a base de um
molho escuro chamado jus.
Mas quem for à casa dos Laan jamais há de encontrar uma torta holandesa: tal coisa não existe nem
lá, nem tampouco nos Países Baixos. Com sorte, há de provar uma appel taart (torta de maçã), feita em massa aerada e com passas no recheio. E
certamente há de achar um pote com drop – balas pretas de alcaçuz, algumas salgadas.
Afora isso, será recebido com muita hospitalidade e algum despojamento. Aos holandeses, a
simplicidade no vestir é uma marca. "Percebo que as minhas colegas brasileiras são mais conscientes da moda", sorri Johanna.
Thomas e Johanna mantêm em casa, em Santos, elementos típicos da Holanda, como a lareira com
bordas de azulejos
Foto: Adalberto Marques, publicada com a matéria
Moinhos – Há 21 tipos diferentes de moinhos históricos nos Países Baixos. No passado, eram
utilizados principalmente na drenagem das terras do país – 60% delas estão abaixo do nível do mar. O ponto mais baixo fica próximo à cidade de
Roterdã: 6,76 metros. O maior conjunto,com 19 moinhos do século 18, fica na região Kinderdijk. O local foi tombado como Patrimônio Histórico da
Humanidade, pela Unesco.
Eutanásia – Os Países Baixos são os únicos no mundo a permitir a eutanásia, assistida por
um médico, em casos de sofrimento insuportável ou males psiquiátricos sem cura. O paciente precisa pedir expressamente a uma comissão específica,
que analisará cada caso.
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Tulipas
– Essas flores são típicas dos Países Baixos, certo? Errado. Na verdade, as tulipas são oriundas da Turquia.
O termo tulipa, inclusive, deriva do turco turbend, que quer dizer 'turbante'. Foram introduzidas em 1560 pelo botânico Conrad Von Gesner.
Ao longo dos séculos, tornaram-se uma paixão holandesa, ao ponto dos bulbos da flor constituírem
uma espécie de 'moeda paralela', no século 17.
Nessa época, aceitava-se um bulbo da flor como dote da noiva ao casamento: já uma casa à beira de
um canal podia custar até três bulbos.
A febre acabou mal quando muita gente começou a penhorar o que tinha e o que não tinha para
iniciar a produção de negócio tão promissor. Com isso, em pouco tempo, o número de vendedores superou o de compradores e levou muita gente à
ruína.Hoje, é um dos mais rentáveis produtos dos Países Baixos, sendo exportada para cerca de 80 países.
Koninkrijk der Nederlanden
(Reino dos Países Baixos)
Capital – Amsterdã
População - 16.645.313 (2010)
Língua - Neerlandês
PIB - US$ 783.293 bilhões (2011)
Renda per Capita - US$ 47.172 (2011)
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) - 0,910 (muito elevado, 2011).
Datas nacionais - Dia da Rainha (30 de abril, aniversário da princesa Juliana, mãe da rainha Beatrix. A data fixa foi instituída pela
filha, em louvor à mãe. Antes disso, a data do feriado variava de acordo com o aniversário do monarca em questão. É comemorada desde 1885. Dia
Memorial dos Mortos (4 de maio, em que se recorda os que pereceram durante as guerras, especialmente a Segunda Mundial). Dia da Libertação (5 de
maio, comemora-se a libertação do país do jugo nazista, em 1945).
A colônia – cerca de 50 famílias em Santos. A estimativa é do Consulado Honorário dos Países Baixos.
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