Rancho do Engenho - Museu João Ramalho -
Bertioga
Foto publicada com o texto
Do engenho d'água à usina
Conferência realizada em 4/9/1963
Professor Vinício Stein de Campos
[...]
O engenho d'água, para moer a cana de açúcar, é o primeiro
documento de pedra que encontramos no litoral brasileiro, alicerçando a colonização. É o Engenho de S. Jorge dos Erasmos, de S. Vicente, fundado por
Martim Afonso de Souza e por isso anteriormente chamado Engenho do Senhor Governador.
Antonio Augusto de Menezes Drummond, que primeiro o estudou entre
nós, sugerindo a sua restauração como peça histórica fundamental do Museu do Açúcar, assim o caracteriza no seu belo trabalho O Primeiro Engenho
Brasileiro: "Quem visita as ruínas verifica o acerto do local escolhido. Na falda da serra do Itararé, domina
toda a planície, ainda hoje coberta de canaviais e bananais. Da serra recebia, por uma levada, a água necessária para movimentar a roda de moagem. A
disposição é, em tudo, semelhante aos primitivos engenheiros da ilha da Madeira, e é certo que os primitivos exploradores da indústria sacarina eram
madeirenses" [1].
A colônia se fixou, então, em torno do engenho d'água. E este se destinou, por sua
vez, à indústria do açúcar. A documentação a tal respeito é indiscutível, explícita e copiosa. Construído o engenho, plantados os canaviais,
firmadas as condições para a manutenção da fábrica - criado estava o conjunto de condições econômicas, sociais e políticas que iriam garantir não só
a sobrevivência, mas a prosperidade do povoado vicentino. E vale consignar como, numa antevisão - ou melhor - numa antecipação do que viria quatro
séculos depois, aí estiveram desde logo associados, como trabalhadores, políticos e soldados - o indígena Tibiriçá, o lusitano João Ramalho, o
italiano Adorno e o alemão Hans Staden.
Como rastilho de fogo em macega ressequida pela estiagem, os canaviais se alastraram
pela orla marítima da colônia, e, ao cabo de alguns anos, de S. Vicente ao Pará, no próprio século do descobrimento os engenhos d'água gizavam o
enorme roteiro da conquista do território e do sucesso do povoamento.
Cumpre não perder de vista a importância que o mercado açucareiro já adquirira na
Europa. O produto da cana, a princípio artigo de limitado consumo, confinado ao comércio farmacêutico, afinal se impusera à dieta popular e se
convertera em objeto de ativíssimo intercâmbio mercantil. O Brasil, reunindo condições excepcionais para a exploração da lavoura canavieira, assomou
logo como formidável competidor das fábricas madeirenses, ampliando de tal sorte a sua produção colonial que ele próprio chegou a ser definido como
"um dom do açúcar".
Aos 60 engenhos da ilha de S. Tomé, que em 1522 produziam 150.000 arrobas, Pernambuco,
só a Capitania de Pernambuco contrapunha, no fim do século, em 50 engenhos, com 1.200 colonos e 5.000 negros, nada menos que 200.000 arrobas de
ótimo açúcar, o que ilustra bem o elevado rendimento da cana nos domínios americanos.
Por esta razão, pelo estímulo da produtividade da terra e dos pingues resultados da
indústria, o engenho d'água foi o autêntico bandeirante do povoamento. Ele criou S. Vicente, Santos, Santo André, São Paulo, Mogi das Cruzes,
Santana do Parnaíba, Itu, Itanhaém, Taubaté, em suma, o escalonamento dos núcleos urbanos e rurais pelos vales do Tietê, do Paraíba, do litoral. É
ele que derrama pelos sertões as nossas bandeiras, ministrando recursos para as entradas dos sertanistas e interessando-os na descida dos barrancos
vermelhos para os sítios e fazendas do planalto e do litoral.
É o seu labor que enxadreza no mapa da Capitania a contínua repartição das sesmarias;
que levanta os fortes redutos das casas grandes; que multiplica as searas e os rebanhos; que planta vilas e cidades; que estende a rede das
estradas; que movimenta as tropas de cargueiros; que abarrota de açúcar os navios da metrópole; que fornece recursos para as importações do reino;
que disciplina o trabalho, alimenta a produção, apura a vida social, cultua a religião, nutre o sentimento de autonomia e liberdade, valores eternos
para sempre vinculados ao destino do povo brasileiro.
O engenho d'água tem ainda o sentido de uma grande força unificadora da colônia,
ajustando de maneira indelével os seus diversos territórios, pois o engenho de açúcar é o mesmo em todo o país, agente da mesma formação espiritual
e do mesmo sistema econômico. Onde quer que ele exista, aí se encontram a casa grande, a capela, as senzalas, a fábrica, as tropas de cargueiros, o
açude, os canaviais, as tradições religiosas, a vivência social peculiar à economia agrária. E esta unicidade, que explica o vigor da aglutinação
nacional, subsiste por si mesma, de dentro para fora, como uma profunda vocação interior de indiscutível brasilidade.
Cem anos após a construção do primeiro engenho d'água vicentino, arrimando estas
conclusões que estamos esboçando, as Capitanias de Pernambuco, Itamaracá, Parnaíba e Rio Grande produziam cerca de um milhão de arrobas de açúcar,
sem contar os engenhos da Bahia, Ilhéus, Santo Amaro e S. Vicente.
O Brasil, qual fabulosa fábrica açucareira, irradiava pelo mundo o
odor adocicado da sacarose fermentada, atraindo para as suas riquezas agrícolas os olhares cobiçosos da Europa. E a exemplo do que fantasia o grande
Eça, a respeito da rosa romana, quando os bárbaros, do outro lado do Reno, dilatavam as narinas aspirando os eflúvios dos roseirais em flor que
coalhavam a península, e aguçavam as suas armas para a invasão do império romano - assim também a riqueza açucareira do Brasil não tardou a aliciar
os mercadores de Holanda e a atirá-los contra Pernambuco e as Capitanias vizinhas. O domínio holandês do Nordeste brasileiro rendeu aos seus
financiadores grandes lucros, oscilando os dividendos entre 50 e 90% sobre os capitais investidos na empresa.
***
À medida que a prosperidade consolidava o povoamento da Capitania,
numa renovação incessante de seus valores humanos, os engenhos d'água e as almanjarras faziam luzir os lustres dos brasões e o prestígio dos
fazendeiros e patriarcas. Os Pires e Camargos, de São Paulo; os Paes de Abreu, de S. Sebastião; os Buenos de Siqueira, de Taubaté; os Bartolomeu
Bueno, de Santana de Parnaíba; os Domingos Fernandes, de Itu; os Martins Bonilha, de Porto Feliz; os Pires de Almeida e Toledo Piza, de Capivari; os
Arruda Botelho, de Piracicaba; os Almeida Leme, de Sorocaba; em suma, de todos os recantos da província surgia uma vigorosa fidalguia de apurada
linhagem, que os genealogistas da colônia, do império e da república não teriam dificuldade em identificar.
As crises periódicas que incidem sobre a economia agrária nacional não pouparam os engenhos
d'água. Quando Napoleão Bonaparte decretou, em 1806, o bloqueio continental, os navios ingleses, que faziam o transporte do açúcar de cana da
América, ficaram impedidos de abastecer o grande mercado. E o governo francês, para dar-lhe sucedâneo, promoveu a industrialização do açúcar de
beterraba, o qual, desde então, entrou a competir com o nosso produto na Europa.
Ultrapassada a dificuldade do bloqueio, novamente os engenhos d'água entram em grande
atividade. De 1815 a 1830, nada menos de 80 engenhos novos são instalados nas terras de Itu, Porto Feliz e Piracicaba.
O engenho dependia de três condições para prosperar: terras próprias para os
canaviais, de preferência a massapé; água abundante, para a moenda e demais atividades da fábrica; lenheiro próximo, suficiente para abastecer as
fornalhas por muitas safras. Esta última condição, em face da imprevidência colonial - meia dúzia de povoadores perdidos num oceano de abundância
que parecia inesgotável, e assim não cuidadosos de refazer as matas consumidas pela fábrica - era a que decretava a decadência do engenho. Sem
lenha, como tocar a indústria açucareira?
Nas imediações de São Paulo, de Itu, de Porto Feliz, as velhas propriedades entraram,
por isso, em colapso. Os fazendeiros adquiriam sesmarias no sertão de Capivari, de Piracicaba, de Araraquara e transferiam-se para as novas terras
com famílias, escravatura, rebanhos e maquinário do engenho. Assim se ia ampliando a faixa do povoamento e incorporando à economia local as glebas
arrebatadas ao sertão.
O capitão Manoel José Vaz Botelho, para citar um entre centenas,
justificando em juízo a venda de suas terras dos arredores de Porto Feliz, declarava que elas não mais o interessavam, pois não tinham mais lenha
para a fábrica de açúcar, pelo que se ia para Capivari, onde havia ribeirões e mata virgem, portanto com "todos os cômodos"
[2].
Relatam os cronistas que o sistema de moendas com três cilindros verticalmente
dispostos fora introduzido na colônia por um clérigo procedente do Peru, permanecendo em uso até o século XIX; seguiu-se o sistema de cilindros
horizontais, concebido pelo engenheiro Leandro Guimarães; por fim, o sistema das moendas a vapor, com as turbinas, os tachos-vácuos, os
condensadores, os misturadores, das usinas denominadas engenhos centrais.
A nota pitoresca é dada pela descoberta da
utilidade do barro no processo de clarificação do açúcar. Conta-se que uma galinha, com os pés enlambuzados de barro, voou sobre uma das formas em
que o açúcar decantava, e o fabricante notou mais tarde, surpreso, que os riscos barrentos que o galináceo deixara no melaço tornaram-no alvo
naqueles lugares. Aplicou-o, então, nas formas e obteve o açúcar alvo que buscava! [3].
***
Antes de nos apartarmos do engenho d'água, que por mais de trezentos
anos foi a espinha dorsal do Brasil, ouçamos a reprodução perfeita que dele nos deixou Júlio Ribeiro, no seu famoso romance naturalista. Trata-se da
descrição da fazenda do Coronel Delfino de Carvalho, no município de Capivari, onde o virulento gramático teve ensejo de assistir ao funcionamento
do engenho:
"Chegara, o dia de principiar a moagem.
Já de véspera tinham os negros andado numa faina a varrer a casa do engenho, a lavar
os cochos e as bicas, a arear, a polir as caldeiras e o alambique, com grandes gastos de limão e cinza.
Mal amanhecera, entrou-se a ver no canavial fronteiro uma fita de emurchecimento que
aumentava, que avançava gradualmente no sentido da largura. Era o corte que começara. As roupas brancas de algodão, saias azuis das pretas, as
camisas de baeta vermelha dos pretos, punham notas vivas, picantes, naquele oceano de verdura clara, agitados por lufadas de vento quente. No
casarão do engenho, varrido, asseado, quatro caldeiras e o alambique de cobre vermelho reverberavam polidos, refletindo à luz que entrava pelas
largas frestas.
As fornalhas afundavam-se, lôbregas, escancarando as grandes bocas gulosas. A água,
ainda presa na calha, espirrava pelas juntas das comportas sobre as línguas da roda, em filetes cristalinos. As moendas brilhavam limpas, e os eixos
e as endentações luziam negros de graxa. Compridos cochos e vasta resfriadeira abriam os bojos amplos, absorvendo a luz no pardo fosco da madeira
muito lavada.
Ao longe, quase indistinto a princípio, mas progressivamente acentuado, fez-se ouvir
um chiar agudo, contínuo, monótono. A crioulada reunida em frente ao engenho levantou uma gritaria infrene, tripudiando de júbilo. Eram os primeiros
carros de cana que chegavam.
Arrastados pesadamente por morosos mas robustos bois, de grandes aspas, avançavam os
ronceiros veículos estalando, gemendo sob a carga enorme de compridas e grossas canas, riscadas de verde e roxo. Carreiros negros, altos,
espadaúdos, cingidos na altura dos rins por um tirador de couro cru, estimulavam, dirigiam os ruminantes com longas aguilhadas, com brados
ostentóricos: eia, Lavarinto! Fasta, Ramalhete! Ruma, Barroso!
Os carros entraram no compartimento das moendas. Negros ágeis saltaram para cima
deles, a descarregar. Em um momento espilharam-se as canas, de pé, atadas em feixes com as próprias folhas. Fez-se fogo na fornalha das caldeiras,
abriu-se a comporta da calha, a água despenhou em queda violenta sobre as línguas da roda, esta começou a mover-se, lenta a princípio, depois
acelerada.
Cortando os atilhos de um feixe a golpes rápidos de facão, o negro moedor entregou as
primeiras canas ao revolver dos cilindros. Ouviu-se um estalejar de fibras esmagadas, o bagaço picou de branco desvão escuro em que giravam as
moedas, a garapa principiou a correr pela bica em jorro farto, verdejante. Após pequeno trajeto foi cair no cocho grande, marulhosa, gorgolante, com
grande espumarada resistente.
Os negros banqueiros, empunhando espumadeiras de compridos cabos,
tomaram lugar junto às caldeiras. Levada por uma bica volante, a garapa encheu-as num átimo. A fornalha esbrazeou-se, escandeceu, irradiando um
calor doce por toda a vasta quadra. As espumadeiras destras atiravam ao ar, em louras espadanas, o melaço fumegante, que tornava a cair nas
caldeiras, aos gorgolões. Dominava o ambiente um aroma suave, sacarino, cortado a espaço por uma lufada tépida de cheiro humano áspero, de catinga
sufocante exalada dos negros em suor.
***
A moagem continuava, o canavial se ia convertendo em palhaça, à
verdura clara sucedia um pardo fosco, sujo, muito triste. O bagaceiro crescia, avultava; na sua brancura esverdinhada punham notas escuras os
suínos, bovinos e muares que aí passavam o dia mastigando, mascando, esmoendo. De repente armava-se uma grande briga; ouviam-se grunhidos agudos,
mugidos roucos, orneios feros. Uma dentada oblíqua, um guampaço, uma parelha de coices tinha dado ganho de causa ao mais forte.
O odor suave do primeiro ferver de garapa no começo da moagem se acentuara em um cheiro
forte, entontecedor, de açúcar cozido, de sacarose fermentada, que se fazia sentir em mais de um quarto de légua em redor."
A fidelidade do quadro, apanhada ao vivo na paisagem rural capivariana, em fins do
século passado (N.E.: século XIX), mau grado a divergência do estilo, reconstitui as
velhas cenas descritas por Frei Vicente do Salvador, Rocha Pitta, Barleus, e o numeroso contingente dos viajantes estrangeiros de outrora.
Sobre o engenho d'água começaram a pesar as dificuldades que a rotina acumulou no
desfilar das centúrias: o encarecimento do braço escravo, quando do rush paulista para as catas de Mato Grosso e as Minas Gerais; a
concorrência da beterraba, da era napoleônica; a interdição do tráfico negreiro através dos mares; a imposição de tributos nos escravos importados
de outras províncias; a desorganização do mercado interno pela entrada, livre de direitos, do açúcar pernambucano, a preço vil.
Mas o lavrador bandeirante não se entregou sem luta. Salvador de
Toledo Piza, poderoso senhor de engenho, falou pela classe na seguinte proposição: "Atendendo para o estado precário em
que se acha a lavoura de açúcar, em vista da grande produção e facilidade com que as províncias do Norte enchem os nossos mercados, fazendo assim
freqüentemente baixar os preços do nosso produto ao ponto de desanimar na continuação dele, - Indico que se convidem as Câmaras de Piracicaba, Porto
Feliz, Tietê e Itu para que se represente à Assembléia Provincial pedindo que nos garanta a conservação desta lavoura por meio de um imposto no
açúcar que a Província importar." [4].
Não precisamos dizer que nada foi feito. E até os engenhos centrais, melhor
aparelhados para enfrentar o desinteresse oficial na ajuda aos lavradores de cana, não lograram melhor sorte. Ainda em Capivari, por iniciativa de
Henrique Raffard, instalou-se em 1884 grande engenho central nas terras cedidas pelo Conselheiro Gavião Peixoto. Uma sociedade inglesa - The S.
Paulo Central Sugar of Brasil Limited - aparelhou a usina com maquinário completo, importado da Inglaterra, contratou fornecedores de cana e iniciou
a produção.
À insuficiência das lavouras, muito aquém da capacidade do engenho, juntou-se aquilo
que Salvador Piza havia previsto nesse mesmo ano: o açúcar de Pernambuco inundou o nosso mercado, a arroba caiu de 32$000 para menos de 10$000 e os
ingleses foram à falência com um déficit de 130 contos de réis. O curioso da história é que a firma de Glasgow, afetada pelo desastre de Capivari, e
de uma outra usina do Estado do Rio, à qual também fornecera a crédito os maquinismos, não resistiu ao impacto e fez bancarrota lá na Inglaterra.
Raffard, adquirida por uma sociedade de capitalistas franceses, bem provida de
recursos, criteriosa orientação e competentes técnicos industriais e agrícolas, conseguiu agüentar-se nos maus tempos e chegar até os dias
presentes.
O café tomou o lugar do açúcar na propulsão da economia bandeirante. Renovou a
fisionomia rural da província. Ligou por via férrea o planalto ao porto de Santos; criou a Sorocabana, a Paulista, a Mogiana, desfilando os
cafeeiros pelas regiões ainda não desbravadas do Estado. Atraiu a grande imigração européia, notadamente da Itália, repovoaram-se os campos e as
cidades, a manufatura se diversificou intensamente, todas as atividades econômicas foram implantadas e assistidas. Os velhos engenhos d'água são
hoje, nessa caminhada renovadora, as usinas de Raffard, de Piracicaba, da Capoava, de Santa Cruz, Tamoio, Junqueira, Santa Cruz, Bom Retiro. Os
Adornos chamam-se hoje Matarazzo, Morganti, Dedini, Romi, num desdobramento sem medida, de nomes luzentes e iniciativas fecundas.
Há mais de quarenta anos (N.E.: cerca de 1920, portanto),
Cincinato Braga, esse paulista genial que se empenhou patrioticamente em campanhas do mais alto interesse nacional, propugnando pela eletrificação
do Estado, escrevia: "Eletrifiquemos o Estado de São Paulo. Deveríamos ser, no meio de estupendas facilidades naturais,
pioneiros desse progresso mundial. Bendito o governo de São Paulo que realizar esse melhoramento".
Delineia-se em São Paulo o atendimento, agora, do que Cincinato qualificava uma
necessidade imperiosa do nosso desenvolvimento. O Plano Estadual de Eletrificação segue vigorosamente a jornada planejada e as obras das Usinas
Elétricas de Paranapanema, integradas pela Jurumirim, Piraju, Itararé, Ourinhos, Salto Grande, Cinzas e Capivara, preparam-se para colocar o
problema como é tão grato ao paulista, em termos nacionais. Articulam um sistema interligado, em perspectiva, de cobertura de todo o Estado, com
possibilidade de estender-se para o Sul, a auxiliar o Paraná, projetando-se ainda para o Norte e Leste, rumo a Minas Gerais e ao Rio de Janeiro, com
ponto de apoio nos sistemas regionais aí existentes e que abarcam vasta área da zona Centro-Sul do Brasil.
Os rios do planalto, cuja força motriz apenas afrolada pelas
engenhocas e monjolos, deram ao país a enorme pujança que acabamos de sumariar alto e malo, estão sendo mobilizados para um trabalho
gigantesco, que dará finalmente à nossa pátria os dias gloriosos com que sonharam todas as suas gerações.
***
O engenho d'água cedeu o lugar à usina, os senhores de engenho
uniram-se aos imigrantes, a fisionomia material de São Paulo alterou-se profundamente - mas a velha alma paulista transfundiu-se com a mesma quente
brasilidade no espírito das novas gerações, o passado continua palpitando na sentimentalidade do presente - somos a mesma gente que há mais de
quatrocentos anos luta, sofre, persevera, sonha e realiza, sem descrer do Brasil nem perder o amor da sua liberdade.
Os museus históricos e os monumentos nacionais, que o Instituto Histórico e Geográfico
Guarujá-Bertioga procura auxiliar e desenvolver em nosso meio, são as usinas dessa cultura da tradição e da história que também desejamos ver
instaladas na terra paulista, para forjar com a sua energia esclarecedora o civismo do nosso povo, educado no conhecimento, na veneração e no
respeito, do nosso grandioso passado, do admirável patrimônio heróico, paulista e brasileiro, das Histórias Antigas do Brasil.
Senhores:
Quem viaja de Capivari a Piracicaba, pela estrada do Engenho Velho, caminho pelo qual
também viandaram um dia Vicente Taques, Antonio Pires, Monte Alegre, o Senador Vergueiro, o Regente Feijó, depara, à margem da rodovia, meio
escondida na vegetação que o envolve, um antigo e esborcinado engenho d'água.
É um dos mais antigos engenhos daquelas terras, anterior mesmo à criação do município,
e que pertenceu a uma das mais ilustres famílias paulistas, ligada por direto parentesco aos primitivos povoadores de São Paulo.
Esse engenho inspirou a um dos netos do antigo fazendeiro comovente e sonora
composição poética, que escolhemos para fecho desta desataviada e desambiciosa arenga, pois só a poesia poderá traduzir, na ternura de sua
linguagem, a emoção com que nos debruçamos afinal sobre o terrunho santo onde repousam, tutelares, os manes de nossos avós:
ENGENHO VELHO
Engenho velho e triste, inválido troféu,
Com paredões de pedra e travas colossais
- Mastodonte de taipa, a dormir sob o céu,
Relembrando o Brasil dos tempos coloniais!...
Essa mole rural de peroba e cabreúva,
Erguida pelas mãos dos pobres africanos,
De cumeeira selada aos embates da chuva
- Resiste bravamente ao peso dos cem anos!...
No seu bojo em silêncio, entram réstias de sol
E onde a velha fornalha irradiava clarões,
O mato rompe hostil, se arrasta o caracol
E a força da enxurrada escavou socavões.
A tosca chaminé, hirta no velho aprumo,
Caducando, senil, no maior dos sossegos,
Em vez de se enfeitar com penachos de fumo,
Guarda teias de aranha e nuvens de morcegos.
No tendal alagado, entre cochos vazios,
Onde outrora se ouvia o cantar dos "banqueiros",
Na calada da noite, em recantos sombrios,
Coacham com tristeza os sapos carpinteiros...
E esse engenho que vem dos idos tempos bravos,
Imerso, como está, nesse extremo torpor
Foi a angústia sem fim do mundo dos escravos
E a grandeza fugaz do ríspido senhor...
Na barroca perdido, ao sabor da erosão
A se diluir nos tons da mata que o encerra,
Ninguém mais pensará que esse torvo aleijão
Foi um dia na vida - o poder de uma terra.
Engenho, o teu viver na existência passada
Ainda ecoa em clamor de antigos sofrimentos
Na noite tropical, quando canta a nortada
Na velha escuridão dos teus travejamentos!
No teu poente sem luz, só te resta e alumia
Como em tempo distante, o mesmo azul do céu
- És a tumba de taipa a guardar com poesia
O despojo brutal de um mundo que morreu!... [5]
NOTAS E BIBLIOGRAFIA
[...]
[1] O Primeiro Engenho
Brasileiro - A.A. Menezes Drummond - In Brasil Açucareiro - Janeiro/1941.
[2] Fundações Municipais
Paulistas nos Séculos XVIII e XIX - 1º tomo - obra do autor.
[3] Diálogos das
Grandezas do Brasil, com introdução de Capistrano de Abreu e Notas de Rodolfo Garcia - 1930.
[4] Fundações Municipais
Paulistas nos Séculos XVIII e XIX - tomo 6º.
[5] Engenho Velho -
poesia de João Campos Filho - Zico Láu - 1941.
Departamento
do Arquivo do Estado
Documentário do
Museu Histórico Cesário Mota Júnior, de Capivari
Tratado da
Terra do Brasil - P. M. Gandavo
História da
América Portuguesa - Rocha Pitta
Brasil -
Zeferino Candido
Antigos
Aspectos Paulistas - Afonso Taunay
A Carne -
Júlio Ribeiro
Notícias do
Brasil - Gabriel Soares de Sousa
Tratados da
Terra e Gente do Brasil - Fernão Cardim
História do
Brasil - Frei Vicente do Salvador
Memórias para
a História da Capitania de São Vicente - Frei Gaspar da Madre de
Deus
Caminhos
Antigos e Povoamento do Brasil - Capistrano de Abreu
Revistas do
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
Anais do Museu
Histórico Nacional
Silva Leme, Pedro
Taques, Washington Luiz, Antonio Piza,
Monografias da
USELPA (Usinas Elétricas do Paranapanema) |