Projeção dos canaviais
e açúcar madeirense no mundo
A Madeira, arquipélago e Ilha, afirmou-se no processo da expansão européia pela
singularidade do seu protagonismo. Vários são os fatores que o propiciaram, no momento de abertura do mundo atlântico, e que fizeram com que ela
fosse, no século XV, uma das peças-chave para a afirmação da hegemonia portuguesa no Novo Mundo. O Funchal foi uma encruzilhada de opções e meios
que iam ao encontro da Europa em expansão. Além disso ela é considerada a primeira pedra do projeto, que lançou Portugal para os anais da História
do oceano que abraça o seu litoral abrupto.
À função de porta-estandarte do Atlântico, a Madeira associou outras, como "farol"
Atlântico, o guia orientador e apoio para as delongas incursões oceânicas. Por isso, nos séculos que nos antecederam, ela foi um espaço privilegiado
de comunicações, tendo a seu favor as vias traçadas no oceano que a circunda e as condições econômicas internas, propiciadas pelas culturas da cana
sacarina e vinha. Uma e outra contribuíram para que o isolamento definido pelo oceano fosse quebrado e se mantivesse um permanente contacto com o
velho continente europeu e o Novo Mundo.
Como corolário desta ambiência, a Madeira firmou uma posição de relevo nas navegações
e descobrimentos no Atlântico. O rápido desenvolvimento da economia de mercado, em uníssono com o empenhamento dos principais povoadores em dar
continuidade à gesta de reconhecimento do Atlântico, reforçaram a posição da Ilha e fizeram avolumar os serviços prestados pelos madeirenses. Aqui,
surgiu uma nova aristocracia dos descobrimentos, cumulada de títulos e benesses pelos serviços prestados no reconhecimento da costa africana, defesa
das praças marroquinas, ou nas campanhas brasileiras e índicas.
Trapiche de besta, ainda em uso na ilha de
Santiago, em Cabo Verde (foto: CEHA/I.Madeira)
A par disso, a ilha surge, nos alvores do século XV, como a primeira experiência de
ocupação em que se ensaiaram produtos, técnicas e estruturas institucionais. Tudo isto foi, depois, utilizado, em larga escala, noutras ilhas e no
litoral africano e americano. O arquipélago foi, assim, o centro de divergência dos sustentáculos da nova sociedade e economia do mundo atlântico:
primeiro os Açores, depois os demais arquipélagos e regiões costeiras onde os portugueses aportaram.
O sistema institucional madeirense apresentava uma estrutura peculiar, definida pelas
capitanias. Foi a 8 de maio de 1440 que o Infante D. Henrique lançou a base da nova estrutura, ao conceder a Tristão Vaz a carta de capitão de
Machico. A partir daqui ficou estabelecido o sistema institucional que deu corpo ao governo português no Atlântico insular e brasileiro. Sem dúvida
que o fato mais significativo desta estrutura institucional deriva de a Madeira ter servido de modelo referencial para o seu delineamento no espaço
atlântico. O monarca insiste, nas cartas de doação de capitanias posteriores, na fidelidade ao sistema traçado para a Madeira. Assim o comprovam
idênticas cartas concedidas aos novos capitães das ilhas dos Açores e Cabo Verde. O mesmo sucede com a demais estrutura institucional que chegou
também a S.Tomé e Brasil.
João de Melo da Câmara, irmão do capitão da ilha de S. Miguel, resumia em 1532 de uma
forma perspicaz o protagonismo madeirense no espaço atlântico. Segundo ele, a sua família era portadora de uma longa e vasta experiência "porque a
ilha da Madeira meu bisavô a povoou, e meu avô a de São Miguel, e meu tio a de São Tomé, e com muito trabalho, e todas do feito que vê...". Isso
dava-lhe o alento necessário e abre-lhe perspectivas para uma sua iniciativa no Brasil. Ele reclamava o protagonismo do seu ancestral Rui Gonçalves
da Câmara que em 1474 comprara a ilha de S. Miguel, dando início ao seu verdadeiro povoamento.
A mesma percepção surge em Gilberto Freire, que em 1952 não hesita em afirmar: "A irmã
mais velha do Brasil é o que foi verdadeiramente a Madeira. E irmã que se estremou em termos de mãe para com a terra bárbara que as artes dos seus
homens,... concorreram para transformar rápida e solidamente em nova lusitânia".
Outra componente importante da afirmação da ilha como modelo de referência tem a ver
com a organização da sociedade no espaço atlântico e da importância aí assumida pelo escravo. Mais uma vez, a Madeira é o ponto de partida para esta
transformação social. De acordo com S. Greenfield, ela serviu de trampolim entre o "Mediterranean Sugar Production" e a "Plantation Slavery"
americana. O autor não faz mais do que retomar os argumentos aduzidos por Charles Verlinden desde a década de sessenta. Note-se que esta
argumentação mereceu alguns reparos na sua formulação, mercê de novos estudos.
Na verdade, tudo o que foi concretizado em termos do mundo atlântico português teve
por matriz o sucedido na Madeira. A Madeira foi ao nível social, político e econômico, o ponto de partida para o "mundo que o português criou..."
nos trópicos. Neste contexto, é sumamente importante o conhecimento do sucedido na Madeira, quando pretendemos estudar e compreender as outras
situações.
Colombo abriu as portas ao Novo Mundo e traçou o rumo da expansão da cana-de-açúcar.
Note-se que esta cultura não lhe era alheia, pois o navegador tem no seu curriculum algumas atividades ligadas ao comércio do açúcar na
Madeira. Note-se que o navegador, antes da sua relação afetiva ao arquipélago, foi - a exemplo de muitos genoveses - mercador do açúcar madeirense.
Em 1478, ele encontrava-se no Funchal ao serviço de Paolo di Negro para conduzir a Gênova 2.400 arrobas a Ludovico Centurione. Com esta viagem e,
depois da larga estância do navegador na ilha, Colombo ficou conhecedor da dinâmica e importância do açúcar da Madeira.
Em janeiro de 1494, quando da preparação da Segunda Viagem, o navegador sugere aos
reis católicos o embarque de 50 pipas de mel e 10 caixas de açúcar da Madeira para uso das tripulações, apontando o período que decorre até abril
como o melhor momento para o adquirir. A isto podemos somar a passagem do navegador pelo Funchal no decurso da terceira viagem em junho de 1498;
podemos apontar como muito provável a presença de socas de canas da Madeira na bagagem dos agricultores que o acompanhavam. Note-se que neste
momento a cultura dos canaviais havia adquirido o apogeu na ilha, mantendo-se uma importante franja de canaviais ao longo da vertente Sul.
A tradição anota que as primeiras socas de cana saíram de La Gomera. Todavia, a
cultura encontrava-se aí nesse momento em expansão, enquanto na Madeira estava já consolidada. Note-se que ainda estão por descobrir as razões que
conduziram Colombo, no decurso da Terceira viagem, a fazer um desvio na sua rota para escalar o Funchal. Na verdade, a Madeira foi a primeira área
do Atlântico onde se cultivou a cana-de-açúcar que, depois, partiu à conquista das ilhas (Açores, Canárias, Cabo Verde, S. Tomé e Antilhas) e
continente americano. Por isso mesmo, o conhecimento do caso madeirense assume primordial importância no contexto da História e geografia açucareira
dos séculos XV a XVII.
O açúcar da Madeira ganhou fama ao nível do mercado europeu. A sua qualidade
diferenciava-o dos demais e fê-lo manter-se como o preferido de muitos consumidores europeus. Deste modo, o aparecimento de açúcar de outras ilhas
ou do Novo Mundo veio a gerar uma concorrência desenfreada, ganha por aquele que estivesse em condições de ser oferecido ao melhor preço.
Um testemunho disso surge-nos com Francisco Pyrard de Lavel: "Não se fale em França
senão no açúcar da Madeira e da ilha de S. Tomé, mas este é uma bagatela em comparação do do Brasil, porque na ilha da Madeira não há mais de sete
ou oito engenhos a fazer açúcar e quatro ou cinco na de S. Tomé". E refere que no Brasil laboravam 400 engenhos que rendiam mais de cem mil arrobas
que, segundo o mesmo, são vendidas como da Madeira.
O mais significativo desta situação do novo mercado produtor de açúcar é que o
madeirense encontra-se indissociavelmente ligado. Na verdade, a Madeira foi o ponto de partida do açúcar para o Novo Mundo. O solo madeirense
confirmou as possibilidades de rentabilização e de abertura de novo mercado para o açúcar. Também o íncola foi capaz de agarrar esta opção,
tornando-se no obreiro da sua difusão no mundo Atlântico.
A tradição anota que foi a partir da Madeira que o açúcar chegou aos mais diversos
recantos do espaço atlântico e que os técnicos madeirenses foram responsáveis pela sua implantação. O primeiro exemplo encontramos em Rui Gonçalves
da Câmara, quando em 1472 comprou a capitania da ilha de S. Miguel. Na sua expedição de posse da sua capitania, fez-se acompanhar de canas da sua
Lombada, que entretanto vendera a João Esmeraldo, e dos operários para a tornar produtiva. A estes seguiram-se outros que corporizaram diversas
tentativas frustradas para fazer vingar a cana-de-açúcar nas ilhas de S. Miguel, Santa Maria e Terceira.
Em sentido contrário avançou o açúcar em 1483, quando o governador D. Pedro de Vera
quis tornar produtiva a terra conquistada nas Canárias. De novo a Madeira surge disponibilizar as socas de cana para que aí surgissem os canaviais.
Todavia, o mais significativo é a forte presença portuguesa no processo de conquista e adequação do novo espaço a economia de mercado. Os
portugueses, em especial o Madeirense, surgem com freqüência nestas ilhas ligando-se ao processo de arroteamento das terras, como colonos que
recebem datas de terras na condição de trabalhadores especializados a soldada, ou de operários especializados que constroem os engenhos e os colocam
em movimento.
O avanço do açúcar para Sul, ao encontro do habitat que veio gerar o boom
da sua produção, deu-se nos anos imediatos ao descobrimento das ilhas de Cabo Verde e S. Tomé. Todavia, só nesta última, pela disponibilidade de
água e madeiras, os canaviais encontraram condições para a sua expansão. Deste modo, em 1485 a coroa recomendava a João de Paiva que procedesse à
plantação de cana-de-açúcar. Para o fabrico do açúcar refere-se à presença de "muitos mestres da ilha da Madeira".
A partir do século XVI, a concorrência do açúcar das Canárias e S. Tomé aperta o cerco
do açúcar madeirense - o que provocou a natural reação dos agricultores madeirenses. Deste modo, sucedem-se as queixas junto da coroa, que ficou
testemunho em 1527. Em vereação reuniram-se os lavradores de cana para reclamar junto da coroa contra o prejuízo que lhes causava o progressivo
desenvolvimento desta cultura em S. Tomé. A resposta do rei, no ano imediato, remete para uma análise dos interesses em jogo e só depois, no prazo
de um ano, seria tomada uma decisão, que parece nunca ter vindo. Note-se que a exploração fazia-se diretamente pela coroa e só a partir de 1529
surgem os particulares interessados nisso.
Enquanto isto se passava, do outro lado do Atlântico davam-se os primeiros passos no
arroteamento das terras brasileiras. E, mais uma vez, é notada a presença dos canaviais e dos madeirenses como os seus obreiros. A coroa insistiu
junto dos madeirenses no sentido de criarem as infra-estruturas necessárias ao incremento da cultura. Aliás, o primeiro engenho aí erguido por
iniciativa da coroa, contou com a participação dos madeirenses. Em 1515 a coroa solicitava os bons ofícios de alguém que pudesse erguer no Brasil o
primeiro engenho, enquanto em 1555 foi construído pelo madeirense João Velosa um engenho a expensas da fazenda real. Esta aposta da coroa na
rentabilização do solo brasileiro através dos canaviais levou-a a condicionar a forja de mão-de-obra especializada, que então se fazia na Madeira.
Assim, em 1537 os carpinteiros de engenho da ilha estão proibidos de ir à terra dos mouros.
Com tais condicionantes e colocados perante o paulatino decréscimo da produção
açucareira na ilha, muitos madeirenses são forçados a seguir ao encontro dos canaviais brasileiros. Deste modo, em Pernambuco e na Baia, entre os
oficiais e proprietários de engenho, pressente-se a presença madeirense. É de salientar que alguns destes madeirenses se tornaram em importantes
proprietários de engenho, como foi o caso de Mem de Sá, João Fernandes Vieira o libertador de Pernambuco.
É a partir daqui que se estabelece um vínculo com a Madeira, continuado através do
tráfico ilegal de açúcar para o Funchal ou então ao mercado europeu com a designação da Madeira. Este movimento seguia as ancestrais ligações entre
os que do outro lado do Atlântico viam florescer a cultura e aqueles que na ilha ficavam sem os seus benefícios. Contra isso intervêm os madeirenses
e a coroa, proibindo a importação deste açúcar para revenda na ilha.
Depois sucederam-se outras medidas do município, proibindo a qualquer dos seus membros
a compra de açúcar do Brasil. Todavia, com o aparecimento do bicho-da-cana em 1610, os madeirenses tiveram de se conformar com a entrada do açúcar
brasileiro, por isso a edilidade estabeleceu em 1611 um contrato com os mercadores em que estes se comprometem expedir do Funchal uma caixa de
açúcar de ilha com outro do Brasil. Situação que nunca foi cumprida, uma vez que em 1620 - nas 1.178 caixas saídas da alfândega do Funchal - temos
23.560 arrobas de açúcar do Brasil e 1.992 da Madeira.
Perante esta situação, a capacidade concorrencial do açúcar insular estava
irremediavelmente perdida. Os canaviais foram desaparecendo paulatinamente das terras, dando lugar aos vinhedos. Apenas a conjuntura da segunda
metade do século dezenove permitiu o seu retorno. Mas foram efêmeras as tentativas para a produção de açúcar, só possível mediante uma política
protecionista. Os canaviais perderam a sua função de produtores do açúcar, o ouro branco dos insulares, mas em contrapartida favoreceram uma
produção alternativa de mel e aguardente. Daqui resulta as atuais sobrevivências da cultura na Madeira e Canárias.
Mó de 1480 descrita por Francesco Di Giorgio e trapiche vertical movido a vento, da
Antilha Francesa, descrito em 1722 por Jean Baptiste Labat em Nouveau Voyage aus iles de l'Amerique
A tradição cultural e o açúcar
Tal como o enunciámos ao princípio, à expansão da cultura da cana-de-açúcar ligam-se
tradições culturais europeio-africanas. Na verdade a cana-de-açúcar propiciou o confronto da cultura européia com a africana, sendo exemplo cabal
disso as sociedades geradas em seu torno nas Antilhas e Brasil. Neste último espaço, são evidentes os aspectos sincréticos da cultura que veio a dar
origem à designação de Afro-brasileira: os estudos de Gilberto Freire e Roger Bastide são bastante expressivos a esse nível. Mas aqui insiste-se nas
aportações culturais resultantes do confronto com a população africana, aí conduzida como escrava para a safra do açúcar.
Por outro lado, insiste-se que a expansão da cultura da cana-de-açúcar propiciou a
divulgação de determinadas tradições lúdicas: representações teatrais e festivas. Está neste caso o "Tchiloli", nome dado a peça "A Tragédia do
Marquês de Mântua e do Imperador Carlos Magno", atribuída ao madeirense Baltazar Dias. Esta é uma peça teatral do ciclo carolíngio, muito
representada no século XVI, que teria sido levada para S. Tomé pelos plantadores e mestres de engenhos da Madeira. A tradição perpetuou-se e ainda
hoje se apresenta o "Tchiloli" para celebrar um acontecimento importante ou um dia santo.
Na ilha Terceira persistem na atualidade as afamadas danças do entrudo, que segundo
opinião de alguns estudiosos se filia na tradição do Bumba-meu-boi brasileiro. À volta disso estabeleceu Luís Fagundes Duarte uma teoria que aponta
para a existência de uma tradição lúdica canavieira, que acompanhou o percurso de expansão do açúcar no Atlântico, marcada por representações e
danças de caráter dramático com "sabor" vicentino.
A par disso, no Brasil algumas das folias que animavam os terreiros do engenho são um
misto de tradições européias e africanas. Destas, destacam-se o bumba-meu-boi e o fandango; a primeira aproxima-se da tradicional tourada, surgindo
como forma de exaltação do negro e do boi, elementos fundamentais da safra açucareira; o segundo é um auto popular do ciclo natalício que descreve a
luta entre o cristão e o mouro, numa clara alusão ao processo de conquista peninsular. Do lado oposto a estas duas tradições está a Congada,
uma dança de senzala, definida pela coroação do rei do Congo. Ela tinha lugar em maio (dia de São Benedicto) e outubro (dia de Nossa Senhora do
Rosário).
Ainda no Brasil, a economia açucareira gerou uma dinâmica socio-cultural diversa, que
deixou rastros evidentes na literatura: o caso mais evidente é o de José Lins do Rego (1901-1957), que escreveu um conjunto de romances a retratar o
ciclo da cana-de-açúcar: Menino de Engenho (1932), Doidinho (1933), Banguê (1934), o Moleque Ricardo
(1935), Usina (1936), Fogo Morto (1943) e Meus Verdes Anos (1956). Na Madeira, esta vivência não entusiasmou a veia
literária dos seus protagonistas e apenas na atualidade o tema despertou o interesse de Horácio Bento de Gouveia, em Águas Mansas (1963), e
João França em A ilha e o Tempo (1972).
Por outro lado, é de salientar que a safra açucareira teve também implicações na
política de urbanização do espaço rural, condicionando uma forma peculiar de ligação do espaço agrícola-industrial com as estruturas de mando e
controle social. A célebre trilogia rural, tão bem definida por Gilberto Freire, teve o seu primeiro aparecimento aqui na Madeira, sendo testemunho
atual disso a célebre lombada de João Esmeraldo (Ponta do Sol). Mas outros mais exemplos poderíamos referenciar na ilha que, lamentavelmente, se
estão perdendo.
Talvez por estas implicações do açúcar se define ao espaço rural, ou por outras razões
que desconhecemos, se definiu para o Funchal epítetos pouco expressivos da realidade. Assim a partir da publicação do livro de António Aragão sobre
a cidade do Funchal ficou estabelecido que ela era a "primeira cidade construída por Europeus fora a Europa" e dentro da sua malha urbana de uma
"cidade do açúcar" e outra do "vinho". Esta aventureira definição não colhe argumentos a seu favor.
O pioneirismo aventureiro desta afirmação com a segurança e afirmações resultantes das
pesquisas promovidas nos Açores, Canárias, Brasil e Antilhas, onde ninguém, até hoje, teve a ousadia de avançar com semelhante perspectiva
reducionista da realidade arquitetônica e urbana. Todos são unânimes em afirmar a adaptação do modelo europeu às condições geo-humanas dos novos
espaços e a forte vinculação às diretivas régias e à mão-de-obra especializada da península. O desenvolvimento econômico, assente na produção ou
comércio de certos produtos, surge em todas as áreas, não como fator definidor da traça urbana e arquitetônica, mas sim como meio.
O açúcar, o vinho surgem na Madeira como produtos catalisadores da atividade
socioeconômica madeirense e não como princípios geradores das cidades ou do espaço urbanizado. Eles foram apenas os suportes financeiros necessários
a este desenvolvimento e embelezamento do espaço urbano. A maioria dos mestres que orientaram a construção do espaço urbanizado são recrutados no
reino e enquadram-se nos padrões peninsulares de humanização do espaço.
Por outro lado, os monarcas intervêm com assiduidade nessa política arquitetônica,
enviando regimentos e planos sobre o modo porque se deverá proceder à construção. Tenha-se em atenção as recomendações dadas por D. Manuel para a
construção da cerca e muros conforme o sistema delineado em Setúbal. Por outro lado, o mesmo monarca - ao ordenar em 1485 a construção dos paços do
concelho, da igreja, alfândega e praça - pretendia dar ao Funchal uma dimensão peninsular. Terá sido esse espaço urbanizado à custa dos proventos do
açúcar que conduziu à errada formulação dos princípios geradores do urbanismo funchalense.
Se tivermos em consideração que a economia açucareira madeirense não assumiu a mesma
proporção da brasileira ou mexicana e que nestas últimas áreas não se fala de uma urbanização do açúcar mas sim das implicações sociológicas e
arquitetônicas deste produto, teremos por anacrônica a definição no Funchal de uma cidade do açúcar. Confrontados os estudos sobre a história das
cidades das demais ilhas atlânticas e do Novo Mundo, onde a cana-de-açúcar foi dominante, não encontramos qualquer definição deste tipo para a malha
arquitetônica urbana. Tenha-se como exemplo o caso de Canárias, onde é evidente também um extremo seguidismo aos cânones peninsulares.
Por isso, não entendemos a forma despropositada com que se tem defendido a existência
no Funchal de uma cidade do açúcar. Mas, do açúcar, a única coisa que se poderá dizer é que a imagem do açúcar ficou apenas o registro nas
armas da cidade a partir do século XVI, a que se juntou a videira no século dezenove. Não obstante o fato de aquele espaço, que é hoje o centro da
cidade, ter sido no século XV uma área de canaviais (o Campo do Duque), as alterações que se produziram a partir da década de oitenta do século XV
conduziram à sua adequação aos modelos arquitetônicos peninsulares.
E a imposição lançada em 1485 sobre o vinho, surgiu única e exclusivamente com o
intuito de criar um fundo municipal para o "nobrecimento" da vila. Com isto, não queremos excluir a função relevante dos proventos arrecadados pela
economia açucareira na valorização do patrimônio urbano, mas apenas referenciar que não houve uma ligação direta entre as duas situações.
Em boa verdade se diga, que o recinto urbano, que emerge a partir da década de
sessenta entre as ribeiras de João Gomes e Santa Luzia e, depois, para além desta última, foi o princípio da futura cidade, dominada pelos
mercadores do açúcar. As residências de João Esmeraldo, de D. Mécia, do capitão do donatário, bem como os conventos (Encarnação, S. Francisco e
Santa Clara) e igrejas (Sé, Capela dos Reis Magos, Madre de Deus e matrizes de Machico, Ponta do Sol, Calheta e Ribeira Brava) foram erguidas e
embelezadas artisticamente a partir dos proventos acumulados com a safra do açúcar.
Mas uma coisa é o açúcar ser fonte de receita, participadora deste processo, e outra é
o resultarem daí implicações urbanísticas e plásticas. Na verdade, a vila que é elevada em 1508 à categoria de cidade deve apenas ser considerada
como a cidade dos mercadores de açúcar e nunca a cidade do açúcar. |