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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - AMARGO AÇÚCAR
Uma escala na Ilha da Madeira - 4

O texto a seguir estava disponível, em 1998, em páginas Web do Centro de Estudos de História do Atlântico (Ceha), na Ilha da Madeira. Essas páginas não mais existem na Internet, mas foram arquivadas por Novo Milênio, que resgata assim para o meio digital o estudo Cinco séculos de Açúcar na Madeira, de Alberto Vieira:

Escravos com e sem açúcar

As ilhas apresentavam um ecossistema particular que conduziu o homem a um relacionamento particular no sentido da sua exploração e aproveitamento. A Madeira, mercê da configuração geográfica, foi definida por uma paisagem agrária específica, diferente dos grandes espaços continentais. O excessivo parcelamento das áreas agrícolas (poios), única forma de aproveitamento do solo arável disponível, e a sua ampla disseminação na vertente Sul e Norte, condicionaram o sistema de arroteamento e de posse de terras.

As grandes e iniciais concessões de terreno foram-se dividindo de acordo com o progresso da população e as experiências agrícolas. A primeira exploração extensiva deu lugar ao aproveitamento intensivo do solo, baseado nos inúmeros poios construídos pelos proprietários, arrendatários ou meeiros. Deste modo é difícil, senão impossível, definir a grande propriedade de canaviais, se nos situarmos ao mesmo nível do mundo americano.

No caso americano, os canaviais avançaram a partir do engenho e estão, quase sempre, ligados indissociavelmente. Isto não sucede na Madeira. Aqui, são muitos os proprietários de canaviais mas poucos os de engenho. Outra peculiaridade da Madeira é a concentração dos engenhos em áreas de maior facilidade de contactos com o exterior, nomeadamente no Funchal, o que nem sempre correspondia às de maior importância no cultivo dos canaviais. Esta diferente estrutura da faina açucareira condicionou outro posicionamento do escravo.

Ainda, na exploração agrícola insular torna-se necessário distinguir dois grupos de proprietários: aqueles que haviam entregue as terras a foreiros ou arrendatários e os proprietários plenos. Esta forma de dupla posse da terra marcou de modo evidente a actividade agrícola e favoreceu na Madeira o aparecimento e afirmação do contrato de colonia, a partir do século XVI.

Por outro lado, a extensão reduzida dos canaviais não obrigava à existência de um engenho para a transformação da cana, tão pouco de um grupo numeroso de escravos. Por tudo isto, a posição dos escravos na estrutura agrária madeirense deverá ser equacionada de acordo com esta dinâmica do sistema de propriedade na ilha. Se é certo que na exploração direta ou no arrendamento se estabelece uma posição clara para o escravo, o mesmo não se poderá dizer com o contrato de colonia. É o proprietário quem estabelece a forma de intervenção do escravo na sociedade e economia e, como tal, adquire uma posição chave na definição e expressão da escravatura.

Nos registros paroquiais, ao nome do escravo e origem étnica, associa-se sempre o nome do proprietário. A distribuição geográfica destes adequa-se à mancha da expressão da escravatura no arquipélago madeirense. Assim, a capitania do Funchal tem a supremacia, com 86% dos proprietários e 87% dos escravos, adquirindo maior expressão no século XVI. No global da circunscrição definida pela capitania do Funchal, temos, mais uma vez, o recinto do Funchal numa posição cimeira com 74% do número de proprietários. A par disso, a cidade, com as duas freguesias principais de que existe documentação - Sé e São Pedro - apresentam 64% do número de proprietários, distribuindo-se os restantes pelas outras da capitania do Funchal (23%), Machico (11%) e Porto Santo (2%). Esta elevada concentração dos escravos no espaço urbano revela, mais uma vez, que estamos perante uma escravatura essencialmente doméstica, com pouca ou nenhuma relação com a vida rural.

Quando estabelecemos uma comparação entre o número de proprietários de escravos e o de canaviais verificamos que em todas as áreas o primeiro grupo é superior ao segundo. Este fato poderá ser considerado um indicativo seguro de que nem todos os proprietários de escravos se dedicavam à safra açucareira e que nem todos os escravos existiam para isso. A diferença entre os dois grupos é mais acentuada no Funchal, onde o número de proprietários de escravos é três vezes superior ao de canaviais. Nas Partes do Fundo ela não ultrapassa o dobro, no século XVI, e nas comarcas da Calheta, Ponta do Sol e capitania de Machico apresentava valor inferior.

A mesma situação surge quando cruzamos o número de escravos com o dos proprietários de canaviais e engenhos de açúcar. No século XV esta proporção é diminuta; na centúria seguinte, exceto em Ponta do Sol e Machico, atinge valores elevados, sendo a média no Funchal de dez escravos por proprietário, quatro na Ribeira Brava e três na Calheta. Estes valores estão muito aquém da média estabelecida para as Antilhas e Brasil. Será isto demonstrativo de que não é tão evidente na Madeira a relação entre o escravo e o açúcar?

A mesma conclusão é possível quando comparamos os escravos com o número de engenhos na ilha. Enquanto nas Antilhas e América do Sul o valor por engenho oscila entre os 800 e 100, aqui, no global, não ultrapassaria os 30, sendo a média mais elevada no Funchal (com 77 escravos) e Ribeira Brava (com 24 escravos). É de salientar, ainda, que, no total de 46 proprietários de engenhos, dezesseis são do Funchal.

Os dados disponibilizados pela investigação levam-nos a concluir o seguinte: num total de 502 produtores de açúcar apenas 78 (16%) são possuidores de escravos. Para o século dezessete, é maior o número (39%) de proprietários de canaviais com escravos, mas aumenta sem existir qualquer relação de causa e efeito entre ambas as realidades. A comparação do número de escravos destes com o número de arrobas de açúcar dos canaviais apresenta, igualmente, valores dispares, pelo que estaremos perante uma prova evidente da intervenção do trabalho livre: a média do século dezesseis oscila entre 10 e 1.329,5 arrobas por escravo. Por outro lado os proprietários com maior número de escravos, como Francisco Betencor, Pedro Gonçalves e António Correia, não são, de modo algum, os maiores produtores de açúcar. Apenas João Esmeraldo, Simão Acioli e João Rodrigues Castelhano se apresentam como exceção.

Outro dos aspectos definidores da escravatura resulta do número de escravos disponíveis para cada proprietário. Também aqui a Madeira afasta-se do Novo Mundo. Não encontramos proprietários com duzentos ou mais escravos. O número mais elevado destes não ultrapassava os 14 apresentados por João Esmeraldo na fazenda da Lombada da Ponta do Sol. Na maioria (63%), os valores ficam-se por 5 escravos; por isso, tendo em conta o mínimo de mão-de-obra imprescindível para a laboração de um engenho, seremos obrigados a afirmar que a grande força de trabalho que animava os engenhos não era escrava, mas sim livre.

O máximo que conseguimos reunir foi de vinte escravos de Ayres de Ornelas e Vasconcelos (1556-1587), mas para pai e filho. Na Madeira, a tendência era para a existência de um reduzido número de escravos por proprietário. Com um ou dois escravos temos 58% e com mais de cinco a percentagem não ultrapassa os 11%. O grupo daqueles que possuem mais de dez escravos não suplanta os 2%. Estes destacados proprietários surgem, mais uma vez, no Funchal, entendido como o conjunto das duas freguesias e comarca.

O perfil deste proprietário de escravos define-se pelo reduzido número, pois 89% possuem entre um e cinco escravos. Não havia lugar para uma excessiva valorização da sua força de trabalho, no campo e cidade. A dimensão das oficinas e das arroteias não o permitia. Isto torna-se mais evidente quando estabelecemos uma relação entre o escravo e o patrimônio do proprietário.

De acordo com os dados disponíveis, apenas, foi possível estabelecê-la para dez proprietários. Eles situam-se, majoritariamente, no século XVII, pelo que as fazendas são dominadas pelas vinhas. Apenas com João Rodrigues Mondragão está expressa a trilogia rural madeirense. Nas suas fazendas era possível ver-se searas, vinhas e canaviais. A tudo isto acresce o fato de haver por parte do proprietário rural pouco empenho em aumentar o investimento em mão-de-obra escrava. Ele nunca ultrapassa os 5% do valor total do capital.

Esta situação contrasta mais uma vez com o sucedido do outro lado do Atlântico, onde sobe até os 28%. Caso existisse uma relação direta entre a presença do escravo e as tarefas agrícolas, era natural que o proprietário procurasse desviar parte do seu investimento de capital para a aquisição deles.

Ao nível do valor do capital investido pelos proprietários madeirenses na mão-de-obra, escrava também se verifica uma disparidade em relação ao que sucede no continente americano. Na Madeira, o valor oscilava entre os 2 e os 5%, enquanto, do outro lado do Atlântico a percentagem poderia atingir os 28%. A par disso, se enquadrarmos os escravos na estrutura fundiária dos proprietários, concluiremos pela fraca vinculação à cultura do açúcar: em 104 detentores em simultâneo de escravos e bens fundiários, apenas 9 são possuidores de canaviais. Os restantes, na sua maioria, detêm searas e vinhedos. Depois, nos signatários de canaviais,  merece apenas referência Bartolomeu Machado, no Funchal, com 10 escravos.

O escravo aparece ligado à cultura dos canaviais, mas sem atingir a mesma proporção de S. Tomé ou do Brasil: em 1496 a coroa dava conta da simbiose ao estabelecer a proibição de venda, por dívidas, de bens de raiz "nem escravos nem escravas", animais e aparelhos de engenho, permitindo apenas a troca nas "novidades" arrecadadas. Noutro documento de 1502, acerca das águas de regadio, o monarca refere que era hábito os proprietários mandarem "os escravos e homes de soldada que tem de reger seus canaveaes". À ligação do escravo à fase de cultivo e amanho dos canaviais também se pode atestar a presença dele nas diversas tarefas ligadas à laboração do engenho.

A estes testemunhos, denunciadores da participação do escravo, como serventes, na cultura e fabrico do açúcar também se poderão juntar outros que demonstram terem eles atuado na qualidade de oficiais de engenho: primeiro tivemos os escravos canários que se apresentaram na ilha como exímios mestres de açúcar, como se poderá verificar pela cautela posta em 1490 e 1505, quanto à sua expulsão. Desta época há apenas notícia de dois escravos que foram mestres de engenho, e não sabemos se eram ou não guanches: em 1486 Rodrigo Anes, o Coxo, da Ponta do Sol, estabeleceu em testamento a alforria de Fernando, mestre de engenho, e em 1500 no testamento de João Vaz, escudeiro, refere-se um escravo seu, Gomes Jesus, como mestre de açúcar. Mais tarde, em 1605, é Jorge Rodrigues, homem baço, forro, quem reclama de Pedro Agrela de Ornelas três mil réis de serviço que fizera no seu engenho em 1604. Em 1601 Jean Moquet dá conta de que os escravos tinham uma ativa intervenção na faina dos engenhos, uma vez que o mesmo terá visto um "grand nombre d'esclaves noirs qui travaillent aux sucres dehors la ville".

Certamente que a única particularidade do serviço dos escravos nos engenhos madeirenses residia no fato de eles trabalharem de parceria com homens livres ou libertos, destacando-se aqui os trabalhadores de soldada: em 1578 António Rodrigues, trabalhador, declara em testamento que havia trabalhado sob as ordens de Manuel Rodrigues, feitor do engenho de D. Maria.

O panorama da geografia açucareira na segunda metade do século XIX é distinto. A abolição da escravatura provocou uma transformação da estrutura social e conduziu inevitavelmente a inovações técnicas. O fim da escravatura conduziu a uma desenfreada busca de mão de obra livre através de contratos, sendo os novos colonos recrutados entre os chineses, indianos e madeirenses. O sistema e forma decorrente não estão longe da escravatura, razão porque ficou conhecido na imprensa madeirense da época com "escravatura branca". Este sistema vigorou até 1927. Neste momento, o grande suporte da estrutura produtiva madeirense que deu suporte à nova vaga dos canaviais é o contrato de colonia, responsável nos séculos anteriores pelo total parcelamento do solo em minúsculos poios.


Trapiches jamaicanos a vapor: à esquerda, de 1770; à direita, de 1830

Os preços do açúcar

Não é fácil estabelecer com clareza a evolução dos preços do açúcar no mercado insular porque não existem núcleos documentais que permitam a reconstituição de séries. Os dados disponíveis são avulsos e desconexos. Se no caso da Madeira foi possível reunir o maior número de informações para a década de trinta do século XVI. Além disso dever-se-ão juntar outras condicionantes que influem de forma decisiva nos preços. Em primeiro lugar está a falta crônica de moeda e o recurso ao açúcar como meio de troca, a que se associa nos séculos XV e XVI a sua insistente desvalorização.

É necessário ter ainda em conta que a lei da oferta e da procura condicionava de forma evidente a evolução do preço do açúcar ao longo do ano. Deste modo, é de notar uma variação mensal de acordo com o período da safra do açúcar e da presença de embarcações interessadas no seu trato. Daqui resulta que os preços mais elevados surjam nos meses de junho e julho, precisamente no momento em que se disponibilizava o primeiro açúcar do ano e, por isso, a afluência de mercadores era maior. A par disso, é de notar outras variações sazonais no próprio mês de acordo, como é óbvio, com a lei da oferta e da procura.

O açúcar branco apresentava dois preços, consoante fosse de uma ou duas cozeduras. O último preço correspondia em 1496 a quase o dobro do primeiro. Se tivermos em conta, que em 15.000 arrobas da primeira cozedura ficava apenas 10.000 na segunda, nota-se uma forte valorização do produto final. Esta insistência no açúcar de segunda cozedura é considerada uma condição necessária para a valorização do produto, impedindo que chegue ao mercado europeu em más condições, mas acima de tudo era uma medida benéfica que reduzia para metade a oferta do açúcar, o que favorecia a competitividade do produto numa altura que o mercado se pautava por excedentes.

A partir da década de setenta o preço do açúcar entra em quebra acentuada. Esta idéia está testemunhada nas intervenções do senhorio a partir de 1469, que insiste na solução do monopólio para o seu comércio. A negação dos madeirenses a semelhante solução levou o Duque D. Manuel a avançar com novas medidas. Assim em 1496 fixa os preços em 350 réis para o açúcar da primeira cozedura e 600 ao da segunda, e passados dois anos opta por estabelecer uma cota máxima de exportação que se cifrava em 120.000 arrobas.

Os dados disponíveis revelam este movimento de quebra do açúcar. O primeiro açúcar feito em Machico vendeu-se a 2.000 réis/arroba. Já em 1469 o seu preço estava em 500/arroba para o de uma cozedura e 750 para o de duas, Em 1472 temos a notícia que subiu para 1.000 réis a arroba, mas esta deverá ser uma situação particular resultante da quebra acentuada da moeda, pois que em 1478 regressou à normalidade. O movimento de queda foi uma constante até princípios do século XVI e só a revolução dos preços inverteu a situação. Todavia é evidente uma inversão de marcha a partir da década de trinta, que pode ser entendida com a presença concorrencial de açúcar de outras áreas, nomeadamente do continente americano.

Para o segundo período, que começa na centúria oitocentista, os preços do açúcar articulam-se diretamente com a evolução dos níveis de produção da ilha, das facilidades ou protecionismo sacarino e da conjuntura do instável mercado mundial. De acordo com os dados disponíveis para 1884, evidenciam a disparidade de preços entre o açúcar madeirense e brasileiro e inglês:

Preços do açúcar

Origem

branco

mascavado

Pernambuco

2.000

1.300

Baía

1.600

1.100

Inglês

1.650

1.250

MADEIRA

3.350

2.600

Para esta fase temos valores sobre o pagamento da cana-de-açúcar ao produtor, o que não acontece na primeira fase. Aqui temos de distinguir a situação que decorre a partir de 1895, em que o preço de pagamento ao agricultor foi estabelecido por decreto. Assim as fábricas matriculadas estavam obrigadas a adquirir a cana ao preço de 400 a 450 réis por trinta kg, tendo como compensação uma redução de 50% no imposto do melaço importado. Até esta data, os preços eram estabelecidos livremente pelas fábricas, de acordo com os graus Beaumé. A concorrência entre a fábrica de S. João, Hinton e demais levou a uma inflação do seu preço na década de setenta do século XIX, mas a falência da primeira, a tendência monopolista conduziram inevitavelmente à quebra abrupta do seu preço, o que levou à intervenção das autoridades.

O consumo do açúcar

O princípio fundamental que regeu o movimento de circulação do açúcar foi a necessidade de suprir as carências de alguns mercados europeus, em substituição do oriental, cada vez mais de difícil acesso. Esta conjuntura impôs a nova cultura no espaço atlântico e ditou as regras do seu mercado. Deste modo o consumo interno de açúcar é uma exigência tardia, gerada por novos hábitos alimentares ou das contingências do mercado do produto. Neste último caso, assume importância o dispêndio de açúcar na indústria de conservas e casca,como resultado da solicitação dos veleiros que demandavam o Funchal.

O dispêndio do açúcar dos direitos

O açúcar e derivados dele que se produziam na Madeira tinham um consumo variado. Assim a maior e melhor qualidade era canalizada para a exportação aos principais mercados estrangeiros. Do açúcar laborado há que distinguir aquele que pertence aos proprietários de canaviais e engenho e o que é da coroa, por arrecadação do almoxarifado dos quartos ou da Alfândega, resultante dos direitos que oneravam a produção (quarto/quinto/oitavo) e saída na Alfândega (dízima). Enquanto a cobrança deste último era feita diretamente nas alfândegas do Funchal e Santa Cruz, o primeiro poderia ser recolhido pela estrutura institucional criada para o efeito - o almoxarifado dos quartos (1485-1522) - ou a cargo da anterior. Ainda, nesta situação poderia suceder a sua arrecadação por contratadores, majoritariamente estrangeiros, que oscilava entre as 18.507 e 31.876 arrobas entre 1497 e 1506.

Este açúcar arrecadado pela coroa, tal como nos elucida F. J. Pereira, era gasto em despesas ordinárias, na carregação direta e nas vendas feitas aos mercadores e/ou sociedades comerciais. Na primeira despesa estavam incluídos, a redízima dos capitães, os gastos pessoais do monarca, da Casa Real, as esmolas, para além das despesas com os soldos dos funcionários, do transporte e embalagem do açúcar. Esta despesa variou entre as 1.070 e 2.114 arrobas, sendo a média anual no período de 1501 a 1537 de 1.622 arrobas.

No caso das esmolas, é de realçar as que se faziam às Misericórdias - Funchal (1512), Ponta Delgada em S. Miguel (1515), Todos os Santos em Lisboa (1506), Conventos - Santa Maria de Guadalupe (1485), Jesus de Aveiro (1502), Conceição de Évora. A par disso também se registra a utilização temporária destes lucros arrecadados pela Coroa no custeamento das despesas com os socorros às praças africanas ou no provimento das armadas. A contrapartida estará na política de ofertas estabelecida por D. Manuel I, que em muito contribuiu para o enriquecimento do patrimônio artístico da Madeira.

As conservas e doçaria

Parte significativa do açúcar produzido na ilha, e mais tarde importado do Brasil, era usado no fabrico de conservas e de doçaria. São vários os testamentos denunciadores da mestria dos madeirenses no fabrico destes produtos. Em meados do século quinze Cadamosto refere a feitura de "muitos doces brancos perfeitíssimos", enquanto em 1567 Pompeo Arditi dá conta da "conserva de açúcar" que se fazia no Funchal "de óptima qualidade e muita abundancia". E, esta tradição perpetuou-se na ilha para além do fulgor da produção açucareira local, pois, segundo Hans Sloane em 1687, o madeirense produzia "açúcar indispensável aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, indo ainda comprá-lo ao Brasil".

Dois anos após, John Ovington refere a indústria da conserva de citrinos que se exportava para França. Tal como se deduz de um documento de 1469, o fabrico de conservas era indústria importante para a sobrevivência de muitas famílias, uma vez que ocupava "molheres de boas pesoas e muytos pobres que lavraram os açuquares bayxos em tamtas maneyras de conservas e alfeni e confeitos de que am grandes proveytos que dam remedio a suas vidas e dam grande nome a terra nas partes onde vam...". Os livros do quarto e quinto do açúcar informam-nos sobre o dispêndio que dele se fazia no fabrico de conservas, frutas secas e marmelada. Nisso gastaram-se cerca de quatrocentas arrobas de açúcar de vários tipos, sendo na sua maioria para consumo dos proprietários do referido açúcar.

A fama da arte da confeitaria madeirense espalhou-se por toda a Europa e teve o seu expoente máximo na embaixada enviada por Simão Gonçalves da Câmara ao Papa. Segundo Gaspar Frutuoso compunha-se de "muitos mimos e brincos da ilha de conservas, e o sacro palacio todo feito de assucar, e os cardiais todos feitos de alfenim, dornados a partes, o que lhes dava muita graça, e feitos de estatura de hum homem".

São vários os testemunhos denunciadores da mestria dos madeirenses no fabrico destes produtos. Segundo Hans Sloane em 1687 o madeirense produzia "açúcar indispensável aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, indo ainda comprá-lo ao Brasil". Dois anos depois John Ovington refere a indústria da conserva de citrinos ou cidra que se exportavam para a França e Holanda. A cidra existia em abundância na Ponta de Sol, Ribeira Brava, Machico e Camara de Lobos (Ribeira dos Socorridos), quase desaparecendo em finais do século XVIII e arrastando inevitavelmente esta indústria para o seu fim.

Um dos fatores de promoção desta indústria ao nível das conservas foi a importância assumida pelo Funchal, como porto de escala de abastecimento para a navegação atlântica. Muitas embarcações aportavam aí com o intuito de se fornecerem de conservas de citrinos para a sua dieta de bordo. Mas, sem dúvida, o consumidor preferencial das conservas e doçaria madeirense era a Casa Real portuguesa. D. Manuel foi o seu consumidor preferencial e aquele que divulgou as suas qualidades na Europa. Assim ficaram como o seu principal presente, dentro e fora do reino, sendo o seu exemplo seguido por Vasco da Gama, que também ofertou o xeque de Moçambique com conservas da ilha. No período de 1501 a 1561 a Casa Real consumiu 1.129 arrobas e 58 barris de açúcar em conservas e frutas secas. A par disso, o rei havia estabelecido a partir de 1520 o envio anual de 10 arrobas de conserva para o feitor de Flandres.

Esta indústria manteve-se por todo o século XVII, suportada com o pouco açúcar da produção local ou com as importações dele do Brasil. Neste último caso, sabe-se que em 1680 foram importadas 2.575 arrobas para o fabrico de casca. Aliás, de acordo com uma informação dada ao governador da ilha, D. António Jorge de Melo referia-se que "é a casquinha negócio muito grande porque há anno que se carregão com aquella terra mais de 20 embarcações de hu so doce para o qual he necesareo comprar assucar da terra ou mandalo vir do Brasil". A correspondência de William Bolton refere-nos que a conserva de citrinos estava em grande prosperidade na década de noventa do século XVII, sendo usada para o abastecimento das embarcações que demandavam a ilha, ou exportadas para Lisboa, Holanda e França.

Parte significativa desse movimento comercial pode ser reconstituída através da correspondência comercial de dois mercadores: Diogo Fernandes Branco (1649-1652), William Bolton (1696-1715) e Duarte Sodré Pereira (1710-1712).

Diogo Fernandes Branco parece ter sido o principal interveniente do comércio com os portos nórdicos, quase só baseado na exportação de casca e conservas. Para o curto período que dura a correspondência é evidente a importância assumida pelo dito comércio. Assim em 1649, não obstante o açúcar da produção local ser de mau qualidade, a falta de cidra e tardar a vinda dos navios do Brasil, a procura manteve-se ativa, gerando dificuldades aos fornecedores, como Diogo Fernandes Branco, que tiveram que socorrer-se de todos os meios para poder satisfazer a encomenda. Esta conjuntura conduzia inevitavelmente ao aumento do preço do produto. Esta situação continuou de modo que em novembro de 1651 carregaram na ilha 9 navios franceses. No ano imediato inverteu-se a situação: a casca abundou e em outubro ainda tardavam em chegar os navios para a levar ao seu destino, o que era motivo para preocupação.

A correspondência de William Bolton refere-nos, também, que a conserva de citrinos estava em grande prosperidade na década de noventa do século XVII, sendo usada para o abastecimento das embarcações que demandavam a ilha, ou exportadas para Lisboa, Holanda e França.

Duarte Sodré Pereira surge, nos anos imediatos, como o continuador do comércio deste produto. A sua atividade mercantil, neste lapso de tempo, esteve dedicada também ao comércio do açúcar do Brasil e à exportação de casca para o norte da Europa, nomeadamente, Amesterdão.

No fabrico das conservas e doces variados merecem a nossa atenção as freiras do Convento de Santa Clara, da Encarnação e Mercês. Aliás, em 1687 Hans Sloane referia-se de forma elogiosa aos doces e compotas que comeu no Convento de Santa Clara, e ao referir que "nunca vi coisas tão boas".

Num breve relance pelos livros de receita e despesa do Convento da Encarnação, Misericórdia do Funchal, e Recolhimento do Bom Jesus, constata-se as assíduas despesas com a compra de açúcar da ilha ou do Brasil para o consumo interno. A Misericórdia do Funchal, para além das esmolas que recebia em açúcar ou marmelada, consumia açúcar que comprava. Do primeiro tanto se poderia dar aos doentes ou vender para fora. Em 1636 gastaram-se 6.180 réis na compra de 3 arrobas de açúcar para os doces da procissão das Endoenças. Ademais, são conhecidas outras despesas na compra de abóbora, ginjas, pêras, marmelos para o fabrico de doce. Em 4 de junho de 1700 a Misericórdia do Funchal gastou 101.500 réis na compra de 34 arrobas para o fabrico de doces a serem consumidos ao longo do ano. Para o período de 1694 a 1700, a mesma instituição gastou 634.400 réis na compra de 227 arrobas de açúcar e 14 canadas de mel.

Maior e mais assíduo foi o consumo de açúcar no Convento da Encarnação no período de 1671 a 1693. Aí, de acordo com o registro mensal dos gastos com as compras de produtos para a dispensa do convento, pode-se ficar com uma idéia da sazonalidade do consumo da doçaria, que consistia em coscorões, batatada, talhadas, queijadas, arroz-doce e bolos. No caso deste convento, destacam-se a Quinta-Feira de Endoenças, Páscoa, Espírito Santo, Nª Sra. Encarnação e do Carmo, Natal. Nesta última festividade distribuía-se a cada freira, para a Consoada, 8 libras de açúcar. Além disso parte significativa do açúcar de várias qualidades era usado para o "tempero do comer" e fazer conserva. No total, despenderam-se 190 arrobas de açúcar por estes vinte e dois anos, para um total aproximado de seis dezenas de recolhidas.

Extintos os conventos quase que também desapareceu a tradição da doçaria. Hoje, o único testemunho que resta dessa importante indústria do doce madeirense é o bolo de mel. O alfenim manteve-o a tradição dos ex-votos das festas do Espírito Santo na ilha Terceira, único local onde ainda persiste esta tradição.

Um novo produto: o álcool e a aguardente

O açúcar é - de todos os produtos resultantes da garapa - aquele que requere um mais demorado período de laboração e uma requintada e custosa tecnologia. Mais fácil se torna a extração do mel e aguardente. Neste sentido, o regresso da cana no século XIX fez-se mais por esta aposta na necessária produção de aguardente, tão necessária para a indústria viti-vinícola, não obstante as medidas impostas no sentido de uma produção equilibrada de aguardente, álcool e açúcar. O tratamento do vinho para exportação fazia-se no início com aguardentes de fora, depois queimaram-se os vinhos de inferior qualidade, a que se seguiu o recurso a aguardente de cana. Note-se que em 1865 os quatro engenhos em laboração são usados apenas para o fabrico de aguardente.

Esta abundância de aguardente levou ao consumo desusado, provocando graves problemas sanitários na ilha, pelo que as autoridades foram obrigadas a intervir para o seu controle, procurando retirar-lhe o epíteto de ilha da aguardente. Foi essa a função do decreto de 11 de março de 1911, que procurou estabelecer um travão, com a expropriação das fábricas de aguardente não matriculadas. Todavia, a quebra dos compromissos deste decreto levou a que as fábricas de aguardente se mantivessem. A machadada final nas fábricas de aguardente foi dada em 1928, com a criação da Companhia da Aguardente da Madeira, que detém o contrato exclusivo de produção de aguardente por vinte e cinco anos. Esta medida, saudada por muitos, que tinha como objetivo reduzir o consumo da aguardente, conduziu inevitavelmente ao encerramento das fábricas de aguardente.


Sistema conhecido com trem jamaicano, tem uma só fornalha que alimenta todas as caldeiras, economizando lenha (rara na Jamaica). O suco vai passando de caldeira a caldeira, em forno brando; no final, tem a espessura certa para ser colocado em formas de barro para endurecer

O Comércio Atlântico 

O desenvolvimento socioeconômico do mundo insular articula-se de modo direto, com as solicitações de economia euro-atlântica: primeiro região periférica do centro de negócios europeus, ajustaram o seu desenvolvimento econômico às necessidades do mercado europeu e às carências alimentares européias; depois, mercado consumidor das manufaturas de produção continental em condições vantajosas de troca para o velho continente e, finalmente, intervém como intermediário nas ligações entre o Novo e Velho Mundo.

Note-se que a partir de princípios do século XVI, o Mediterrâneo Atlântico define-se como centro de contacto e apoio ao comércio africano, índico e americano. A tudo isto acresce que os interesses da burguesia e aristocracia dirigente peninsular entrecruzam-se no processo de ocupação e valorização econômica das novas sociedades e economias insulares. Esta componente peninsular é reforçada com a participação da burguesia mediterrânica, atraída por novos mercados e pela fácil e rápida expansão dos seus negócios.

Por isso, um grupo de italianos, mais ou menos ligados às grandes sociedades comerciais mediterrânicas, participa ativamente no processo de reconhecimento, conquista e ocupação do novo espaço atlântico. Com efeito, eles interessaram-se pela conquista do arquipélago canário, expedições portuguesas de exploração geográfica e o comércio ao longo da costa ocidental africana. A sua penetração no mundo insular ficou assim facilitada, o que os levou a alcançar uma posição muito importante na sociedade e economia insulares.

O investimento de capital de origem mercantil, nacional ou estrangeiro surgiu apenas numa óptica da nova economia, afirmando-se como gerador de novas riquezas adequadas a um aproveitamento comercial. Assim, o comércio foi o denominador comum para os produtos a introduzir, sendo valorizados aqueles ativadores da nova economia de mercado. Aqui, a cana-de-açúcar e o cobiçado produto final, o açúcar, detém uma posição cimeira.

A Madeira foi no começo o mais importante entreposto. Os descobrimentos aliam-se ao comércio e, por isso, desde meados do século XV, manteve-se um trato assíduo com o reino, ativado com as madeiras, urzela, trigo e, depois, com o açúcar e o vinho. Este movimento alargou-se às cidades nórdicas e mediterrânicas, com o aparecimento de estrangeiros interessados no comércio do açúcar. Aliás, o mesmo produto contribuiu para o arranque decisivo da economia madeirense, e para a conseqüente inserção na economia européia.

O acelerado ritmo de crescimento da ilha condicionou a atração de diversas correntes migratórias. Tal situação é definida em 1508 pelo monarca D. Manuel ao justificar a elevação do Funchal a cidade: "teem creçido em mui gramde povoaçam e como nella vivem muytos fidalgos cavaleyros e pessoaes homrradas e de gramdes fazendas pollas quaaes e pello grande trauto da dyta ylha...". Esta piccola lixbona, segundo Torriani, inseria-se de modo evidente na economia européia atlântica, participando do trato com o Velho e o Novo Mundo, servindo de entreposto.

Na Madeira ele assumiu uma posição dominante na produção e comércio entre 1450 e 1550, enquanto que nas restantes praças surge apenas em princípios do século XVI, tendo assumido idêntica posição na década de trinta.

Política comercial

O regime do comércio do açúcar madeirense nos séculos XV e XVI, segundo opinião de Vitorino Magalhães Godinho, "vai oscilar entre a liberdade fortemente restringida pela intervenção quer da coroa quer dos poderosos grupos capitalistas, de um lado, e o monopólio global, primeiro, posteriormente um conjunto de monopólio cada qual em relação com uma escápula de outra banda". Deste modo, o comércio apenas se manteve em regime livre até 1469, altura em que a baixa do preço veio condicionar a intervenção do senhorio, que estipulou o seu exclusivo aos mercadores de Lisboa.

Ao madeirense, habituado a negociar com os estrangeiros, não agradou esta decisão. Mesmo assim o Infante D. Fernando decidiu em 1471 estabelecer o monopólio a uma companhia formada por Vicente Gil, Álvaro Esteves, Baptista Lomelim, Francisco Calvo e Martim Anes Boa Viagem. Desta decisão resultou um conflito aceso entre a vereação e os referidos contratadores.

Passados vinte e um anos, a ilha debatia-se ainda com uma conjuntura difícil no comércio açucareiro, pelo que a coroa retomou em 1488 e 1495 a pretensão do monopólio, mas apenas conseguiu impor um conjunto de medidas regulamentadoras da cultura, safra e comércio, que ocorrem em 1490 e 1496. Esta política, definida no sentido da defesa do rendimento do açúcar, irá saldar-se mais uma vez num fracasso, pelo que em 1498 foi tentada uma nova solução, com o estabelecimento de um contingente de cento e vinte mil arrobas para exportação, distribuídas por diversas escápulas européias.

Estabilizada a produção e definidos os mercados do açúcar, a economia madeirense não necessitava de tão rigorosa regulamentação, pelo que em 1499 o monarca acabou com algumas das prerrogativas estipuladas no ano anterior, mantendo-se, no entanto, até 1508 o regime de contrato para a sua venda, pois só nesta data foi revogada toda a legislação anterior, ficando o seu trato em regime de total liberdade. Assim o definiu o foral da capitania do Funchal, em 1515, ao enunciar que "Os ditos açúcares se poderão carregar para o Lavante e Poente e pera todas outras partes que os mercadores e pessoas que os carregarem aprouver sem lhe isso ser posto embargo algum".

As mudanças operadas no mercado mundial, resultantes primeiro de concorrência da beterraba e, depois, da conturbada conjuntura política, levaram ao estabelecimento de uma política protecionista que atingiu também o mercado. Em 1931 criou-se "international sugar agreement" em Bruxelas. A II Guerra Mundial provocou uma inversão da tendência, levando à liberalização do mercado livre, evidente a partir de 1953. Na Madeira também se sentiu os reflexos dessa política, que ficou conhecida como o proteccionismo sacarino.

Assim apostou-se na promoção da cultura através de medidas limitativas à concorrência dos produtos sacarinos importados que em 1855 foram onerados nos direitos de importação. Por outro lado, facilitou-se a exportação dos nossos produtos para o continente e Açores por meio de uma redução das taxas alfandegárias (1870) e depois da sua abolição (1876) por períodos de cinco anos até 1886, culminando em 1895 com o decreto de 30 de dezembro que pretende assegurar um mercado para o açúcar madeirense, dando à sua indústria condições para laborar em condições concorrenciais com as indústrias doutros países. Neste sentido, facilita-se a importação de melaço com taxa de 30 réis ao quilo, a isenção de impostos, tendo apenas a obrigatoriedade de adquirir a cana a preço mínimo de 400 e 450 réis cada trinta quilos. Note-se que estas medidas são simultâneas das medidas de proteção do açúcar das colônias.

O único senão que escondia esta medida era o fato de só se aplicarem às fábricas matriculadas, isto é, a de W. Hinton & Sons e do seu comparsa José Júlio de Lemos, deixando de fora as restantes, que serão forçadas a encerrar portas, levando a indústria do açúcar para um regime de monopólio do engenho do Torreão, situação que se manteve até 1985, ano em que deixou de laborar e de fabricar-se o produto.

Os Mercadores

A Madeira atraiu a primeira vaga de mercadores forasteiros, mercê da prioridade atribuída à cultura dos canaviais no processo de ocupação. Só o impediram as ordenanças limitativas da sua residência na ilha. Todavia, em meados do século XV, a coroa facultou a entrada e fixação de italianos, flamengos, franceses e bretões, por meio de privilégios especiais, como forma de assegurar um mercado europeu para o açúcar. Mas, o impacto e a influência destes foi lesivo para os mercadores nacionais e coroa, pelo que se foi necessário impedir que os mesmos pudessem "asy soltamente trautar todos", pelo que o senhorio proibiu a sua permanência na ilha como vizinhos.

A questão foi levada às cortes de Coimbra de 1472-1473 e de Évora em 1481, reclamando a burguesia do reino contra o monopólio de fato dos mercadores genoveses e judeus no comércio do açúcar, propondo a sua exploração nesse regime a partir de Lisboa. O monarca, comprometido com esta posição vantajosa dos estrangeiros, mercê dos privilégios que lhes concedera, atuou de modo ambíguo, procurando salvaguardar os compromissos anteriormente assumidos e as solicitações dos moradores do reino ao estabelecer limitações à sua residência no reino e fazendo-a depender de licenças especiais.

Quanto à Madeira foi a impossibilidade da sua vizinhança sem licença expressa da coroa e a interditação da revenda no mercado local. A Câmara, por seu turno, baseada nestas ordenações e no desejo expresso dos seus moradores, ordenara a sua saída até setembro de 1480, no que foi impedida pelo senhorio. Somente em 1489 foi reconhecida a utilidade da presença dos mercadores estrangeiros na ilha, ordenando D. João II ao duque D. Manuel, então Duque de Beja, que os estrangeiros fossem considerados como "naturaes e vizinhos de nossos regnos".

Na década de noventa, de novo, os problemas do mercado açucareiro conduziram ao ressurgimento desta política xenófoba. Os estrangeiros passaram a dispor de três ou quatro meses, entre abril e meados de setembro, para comerciar os seus produtos, não podendo ter loja e feitor na cidade. Somente em 1493 D. Manuel reconheceu o prejuízo que as referidas medidas causavam à economia madeirense, afugentando os mercadores, pelo que revogou todas interdições anteriormente impostas. As facilidades concedidas à estadia destes forasteiros conduziram à sua assiduidade, bem como à fixação e intervenção na estrutura fundiária e administrativa.

A comunidade de mercadores estrangeiros na Madeira foi dominada pela presença italiana de flamengos e franceses, que surgem no Funchal atraídos pelo tão solicitado ouro branco. Os italianos, e de entre estes os florentinos e genoveses, foram, desde meados do século XV, os principais agentes do comércio do açúcar, alargando depois a sua atuação ao domínio fundiário, possível por meio da compra e laços matrimoniais. 

Na década de 70, mediante o contrato estabelecido com o senhorio da ilha, estes detinham já uma posição majoritária na sociedade criada para o comércio do açúcar, sendo representados por Baptista Lomellini, Francisco Calvo e Micer Leão. No último quartel do século juntaram-se Cristóvão Colombo, João António Cesare, Bartolomeu Marchioni, Jerónimo Sernigi e Luis Doria. A este grupo seguiu-se, em princípios do século XVI, outro mais numeroso, que alicerçou a comunidade italiana residente.

O estrangeiro, para manter a amplitude de operações comerciais nas ilhas contava com um grupo de feitores ou procuradores. Note-se que o grupo inicial é, na sua maioria, constituído por italianos, ligados ao comércio do açúcar, e que os segundos pertencem a algumas famílias mais influentes da ilha.

Os mercadores-banqueiros de Florença destacaram-se nas transações comerciais e financeiras do açúcar madeirense no mercado europeu. A partir de Lisboa, onde usufruíam uma posição privilegiada junto da coroa, controlaram uma extensa rede de negócios que abrange a Madeira e as principais praças européias: primeiro conseguiram da Fazenda Real o quase exclusivo do comércio do açúcar resultantes dos direitos reais por contrato direto, a que se seguiu o exclusivo dos contingentes estabelecidos pela coroa em 1498. Assim, tivemos Bartolomeu Marchioni, Lucas Giraldi e Benedito Morelli com uma intervenção marcante no trato do açúcar, na primeira metade do século XVI. A manutenção desta rede de negócios foi assegurada pela ação direta dos mercadores, dos seus procuradores ou agentes substabelecidos.

A penetração deste grupo de mercadores na sociedade madeirense foi muito acentuada. O usufruto de privilégios reais, o relacionamento familiar, favoreceram a sua mistura com a aristocracia terratenente e administrativa. A sua intervenção é bastante evidente na estrutura administrativa, abrangendo os domínios mais elementares do governo, como a vereação e as repartições da fazenda, todas com intervenção direta na economia açucareira. São majoritariamente proprietários e mercadores de açúcar. Instalaram-se nas terras de melhor e maior produção e tornaram-se nos mais importantes proprietários de canaviais.

Também, os franceses e flamengos, a exemplo dos italianos, surgem na ilha, desde finais do século XV, atraídos pelo rendoso comércio do açúcar. No entanto, não se enraizaram na sociedade insular, mantendo uma condição errante. O seu interesse é única e exclusivamente a aquisição do açúcar a troco dos seus artefatos, alheando-se da realidade produtiva e administrativa. O caso de João Esmeraldo é a exceção. Os franceses afirmaram-se pelas operações de troca em torno do açúcar, enquanto os flamengos mantiveram uma posição subalterna e mesmo como grupo interveniente no mercado madeirense. Os franceses tiveram uma presença muito ativa no comércio do açúcar, na primeira metade do século XVI. Eles surgem com freqüência nas comarcas do Funchal, Ponta do Sol, Ribeira Brava e Calheta, onde adquiriam grandes quantidades de açúcar, que transportavam aos portos franceses nas suas embarcações. Neste trato, evidenciaram-se mestre António, Archelem, António Coyros, António Caradas e Francisco Lido.

As escápulas, até 1504, e o produto dos direitos reais, eram canalizados ao mercado europeu, quer por carregação direta, quer ainda por negócio livre ou a troco de pimenta. Este açúcar era arrendado por mercadores ou sociedades comerciais, sediados em Lisboa, sendo de destacar a atuação dos italianos, como João Francisco Affaitati e Lucas Salvago.

As operações comerciais em torno do açúcar, no período de 1501 e 1504, estiveram centralizadas em mercadores ou sociedades comerciais que, a partir de Lisboa, controlaram esse trato por meio de uma complicada rede de feitores ou procuradores. A sua intervenção, que se apresentava dominante nos três primeiros decênios do século, decresceu de forma acentuada na última década. Esta situação atesta que os mercadores estrangeiros, em face da conjuntura de instabilidade do mercado açucareiro madeirense nos primeiros trinta anos, abandonaram o seu comércio, fazendo-o substituir pelo de outras origens.

A comunidade italiana controlava a quase totalidade do comércio do açúcar com as principais praças européias, sendo seguida da portuguesa e da castelhana. Os mercadores nórdicos não apresentam uma posição de relevo nestas operações. Isto demonstra, mais uma vez, que a rota e o mercado flamengo mantiveram-se sob o controlo da nossa feitoria. No período que decorre de 1490 a 1550, verifica-se que os italianos detiveram o exclusivo do comércio na primeira década e uma posição dominante nas duas seguintes, sendo substituídos pelos portugueses na década de trinta, e também por castelhanos e franceses.

No grupo dos mercadores estrangeiros nota-se uma tendência concentracionista, pois apenas os cinco principais detêm 71% do açúcar transacionado. Todos eles apresentam valores superiores a dez mil arrobas, enquanto nos nacionais apenas um tem mais de 1.080 arrobas. João Francisco Affaitati, mercador cremonês de família nobre, chefe da sucursal em Lisboa da companhia Affaitati, uma das principais dessa praça, surge no período de 1502 a 1529 como o principal ativador do comércio do açúcar madeirense, tendo transacionado sete vezes mais açúcar que todos os portugueses. Durante este período, arrematou, em 1502, as escápulas de Águas Mortas, Liorne, Roma e Veneza. Conjuntamente com Jerónimo Sernigi, João Jaconde e Francisco Cornivelli conseguiu a venda do açúcar dos direitos (1512-1518, 1520-1521, 1529) e atuou em operações diversas de compra direta de açúcar e da sua troca por pimenta ou dívidas. Para manter esta amplitude de atividades comerciais, contava na ilha com um grupo numeroso de feitores ou procuradores.

A rede de negócios funchalense, em torno do trato do açúcar, foi criada e incentivada pelo mercador estrangeiro, alemão ou italiano, que aí aportou depois da reconfortante e vantajosa escala em Lisboa. Ele controlou as principais sociedades intervenientes no comércio açucareiro, não obstante ter morada fixa em Lisboa, Flandres ou Gênova. O seu domínio atinge, não só, as sociedades criadas no exterior com intervenção na ilha, mas também, o grupo de agentes ou feitores e procuradores substabelecidos no Funchal. A sua escolha é criteriosa: primeiro os familiares, depois os compatrícios enraizados na sociedade e só, depois, os madeirenses ou nacionais.

As principais casas intervenientes no trato açucareiro madeirense, sob esta forma, podem ser definidas de acordo com o número de representantes, destacando-se então, Baptista Morelli, B. Marchioni, Welser, Claaes, Charles Correa, Pero de Ayala e Pero de Mimença.

Os Welsers e Claaes intervêm na praça do Funchal por intermédio de agentes estabelecidos em Lisboa, respectivamente, Lucas Rem e Erasmo Esquet, que aí subestabelecem feitores. O primeiro tinha como seus interlocutores no Funchal, em princípios do século XVI, João de Augusta, Bono Bronoxe, Jorge Emdorfor, Jácome Holzbuck, Leo Ravenspurger e Hans Schonid.

Os procuradores e feitores, na sua condição de interlocutores dos mercadores europeus, não se ligam apenas a uma sociedade, pois distribuíram a sua acção por um grupo numeroso de societários. E estes, por sua vez, não se prendem apenas a um representante, concedendo-os a um grupo variado de feitores e procuradores. Da primeira situação destaca-se Benoco Amatori, que representava B. Marchionni, B. Morelli, Alvaro Pimentel e Jerónimo Sernigi. E, na segunda, João Francisco Affaitati que, entre 1500-1529, estava representado por Gabriel Affaitati, Luca Antonio, Cristóvão Bocollo, Capella de Capellani, João Dias, João Gonçalves, Matia Manardi, Mafei Rogell e Lucas Giraldi.

Na segunda metade do século XVII o açúcar madeirense foi paulatinamente substituído pelo brasileiro. Neste circuito de escoamento e comércio é evidente a intervenção de madeirenses e açorianos. A oferta de vinho ou vinagre era compensada com o acesso ao rendoso comércio do açúcar, tabaco e pau-brasil. Mas o trajecto destas rotas comerciais ampliava-se até ao tráfico negreiro, cobrindo um circuito de triangulação. Para isso, os madeirenses criaram a sua própria rede de negócios, com compatrícios fixos em Angola e Brasil.

Diogo Fernandes Branco é o exemplo perfeito da nova situação. A sua atividade incidia, preferencialmente, na exportação de vinho para Angola, onde trocava por escravos que, depois, ia vender ao Brasil por açúcar. O circuito de triangulação fechava-se com a chegada à ilha das naus, vergadas sob o peso das caixas de açúcar ou rolos de tabaco. Depois seguia-se outro processo de transformação do produto em casca ou conservas. Esta era uma tarefa caseira que ocupava muitas mulheres na cidade e arredores. Os mercadores, como Diogo Fernandes Branco, coordenavam todo o processo, de acordo com as encomendas que recebiam, uma vez que o produto depois de laborado deveria ter rápido escoamento. Os principais portos de destino situavam-se no Norte da Europa: Londres, St, Malo, Hamburgo, Rochela, Bordéus.

Diogo Fernandes foi o interlocutor direto dos mercadores das praças de Lisboa (no caso Manuel Martins Medina), Londres, Rochela ou Bordéus, satisfazendo a sua solicitação de vinho e derivados do açúcar a troco de manufaturas, uma vez que o dinheiro e as letras de câmbio raramente encontravam destinatário na ilha. A par disso, manteve a sua rede de negócios, apoiado em alguns mercadores de Lisboa, e das principais cidades brasileiras. São múltiplas as operações comerciais registradas na sua documentação epistolar. À primeira vista parece-nos que o mesmo se especializou em duas atividades paralelas: o comércio de vinho para Angola e Brasil e o de açúcar e derivados para adocicar os manjares dos repastos da mesa européia.

Estas atividades comerciais são de modo algum episódicas, no contexto da estrutura comercial madeirense da segunda metade do século dezessete, pois comprovam uma das dominantes estruturais: a ilha como intermediária entre os interesses da burguesia comercial do Novo e Velho Mundo. Um dos componentes deste puzzle era o porto do Funchal, onde uma chusma de pequenos burgueses que aguardam a oportunidade de singrar em tais negócios. Angola, Brasil são os outros dois vértices deste triângulo. Episodicamente surge nos Barbados, que só singrou a partir da afirmação.

O comércio

O comércio do açúcar destaca-se no mercado madeirense dos séculos XV e XVI como o principal animador das trocas com o mercado europeu. Durante mais de um século, a riqueza das gentes da ilha e o fornecimento de bens alimentares e artefatos dependeu do comércio do produto. O mesmo sucedeu nas Canárias, a partir do século XVI. Todavia, neste período, a sua venda e valor sofreram diversas oscilações, mercê da conjuntura do mercado consumidor e da concorrência dos mercados insulares e americanos.

Formas de troca

O dispêndio do açúcar do lavrador fazia-se de uma forma diversificada. Às vendas diretas aos mercadores, muitas vezes de antemão, associam-se os pagamentos de dívidas ou por trocas de produtos e serviços. Os livros do quarto e do quinto, como forma de controlo dos direitos em jogo, contabilizam o modo como os lavradores despendiam o seu açúcar. A partir daqui poderá saber-se quem eram os principais compradores, como testemunhar do seu uso no pagamento de serviços. Apenas na primeira metade do século dezessete é possível estabelecer com clareza essa forma de dispêndio do açúcar conseguido por proprietários de canaviais e engenhos. No global tivemos cerca de 81.280 arrobas distribuídas por 2.492 compradores. A tendência é para a disseminação pelos pequenos compradores, acabando com os interesses monopolistas de algumas casas comerciais, que haviam dominado o comércio na época de apogeu.

O lavrador e o proprietário do engenho serviam-se usualmente do produto da sua safra para o pagamento da mão-de-obra assalariada que necessitavam. Por fim, registre-se que esta distribuição diversificadora dos lucros acumulados por proprietários de canaviais e mercadores de açúcar contribuiu para um manifesto progresso da sociedade madeirense no século dezesseis, com evidentes reflexos no quotidiano e panorama artístico e arquitetônico.

Rotas e mercados

O açúcar foi, durante mais de um século, o principal ativador das trocas da Madeira com o exterior. As dificuldades sentidas com a penetração no mercado europeu levaram a coroa a intervir no sentido de manter um comércio controlado, que a partir de 1469 passou a ser feito sob o permanente olhar do senhorio e coroa. A situação manteve-se até 1508, altura em que a coroa aboliu o regime de contrato.

A partir de uma das medidas tomadas pela coroa (o contingenciamento de 1498) para defesa do mercado do açúcar madeirense poder-se-á fazer uma idéia dos principais mercados consumidores. As praças do mar do Norte dominavam o comércio, recebendo mais de metade das escápulas estabelecidas: aqui a Flandres adquire uma posição dominante, o mesmo sucedendo com os portos italianos para o espaço mediterrânico. Se compararmos estas escápulas com o açúcar consignado às diversas praças européias no período de 1490 e 1550, verifica-se que o roteiro não estava muito aquém da realidade. As únicas diferenças relevantes surgem nas Praças da Turquia, França e Itália, sendo de salientar na última um reforço acentuado de posição, que poderá resultar da atuação das cidades italianas como centros de redistribuição no mercado levantino e francês.

Os dados disponíveis para o comércio do açúcar na Madeira evidenciam a constância dos mercados flamengo e italiano. O reino, circunscrito aos portos de Lisboa e Viana do Castelo, surge em terceiro lugar com apenas 10%. Observe-se que o porto de Viana do Castelo adquiriu, desde 1511, grande importância neste circuito e daí com Espanha e Europa nórdica. Aliás, no período de 1581 a 1587 Viana é o único porto do reino mencionado nas exportações de açúcar, mantendo, todavia, uma posição inferior à 1490-1550.

Esta função redistribuidora dos portos a Norte do Douro ficara já evidenciada entre 1535 e 1550, pois das cinqüenta e seis embarcações entradas no porto de Antuérpia com açúcar da Madeira, dezesseis são do Norte e apenas uma de Lisboa. Na primeira, 50% são provenientes de Vila do Conde, 31% do Porto e 19% de Viana do Castelo.

Em 1505, o monarca considerava que os naturais desta região tinham muito proveito no comércio do açúcar da ilha. Em 1538, este trato era assegurado por um numeroso grupo de grupos de mercadores daí oriundos. O mesmo sucede nas trocas com o mundo mediterrânico, onde se contava com os entrepostos de Cádiz e Barcelona. Estas cidades surgem no período de 1493 a 1537 com os portos de apoio ao comércio com Genova, Constantinopla, Chios e Águas Mortas.

Os dados da exportação para o período de 1490 a 1550 testemunham esta realidade: a Flandres surge com 39% e a Itália com 52%. Todavia, é de salientar a posição dominante dos mercadores italianos na condução deste açúcar, uma vez que eles foram responsáveis pela saída de 78% do açúcar. Note-se que no início foram inúmeras as dificuldades para a presença de estrangeiros. Somente a partir da década de oitenta do século XV surgiram os primeiros como vizinhos, que se comprometeram com a cultura e comércio do açúcar.

Para a segunda metade do século dezesseis, escasseiam os dados sobre o comércio do açúcar madeirense. Somente entre 1581 e 1587 temos nova informação. Neste período, a ilha exportou 199.300 arrobas de açúcar para o estrangeiro e 4.830 para o porto de Viana do Castelo.

A partir de princípios do século XVI, o comércio do açúcar diversifica-se. A Madeira, que na centúria de quatrocentos surgira como o único mercado de produção, debater-se-á, a partir de finais desse século, com a concorrência do açúcar das Canárias, de Berbéria, de S. Tomé e, mais tarde, do Brasil e das Antilhas. Esta múltipla possibilidade de escolha, por parte dos mercadores e compradores, condicionou a evolução do comércio açucareiro.

Todavia, o açúcar madeirense manteve uma situação preferencial no mercado europeu (Florença, Anvers, Ruão), sendo o mais caro. Talvez, devido a este favoritismo encontramos com freqüência referências à escala na Madeira de embarcações que faziam o seu comércio com as Canárias, Berbéria e S. Tomé. Esta situação deveria, de igual modo, explicar a venda de açúcar madeirense em Tenerife, no ano de 1505.

O comércio açucareiro na primeira metade do século XVI era dominado na Europa do Norte pelas ilhas e litoral do Atlântico, nomeadamente, entre as primeiras, a Madeira, Tenerife, Gran Canaria e La Palma. Assim, na década de 30 os navios normandos ocupados neste comércio dirigiam-se preferencialmente a esta área. Convém anotar que a maioria das embarcações que rumavam a Marrocos, têm escala na Madeira à ida e no regresso, o que valorizou a Madeira no comércio com a Normandia. A situação dominante do mercado madeirense perdurou nas décadas seguintes, não obstante a forte concorrência da ilha de S. Tomé que se firmou, entre 1536 e 1550, como o principal fornecedor de açúcar à Flandres. Todavia, esta posição cimeira da ilha de São Tomé só é patente a partir de 1539.

A Madeira, que até à primeira metade do século dezesseis havia sido um dos principais mercados do açúcar do Atlântico, cede lugar a outros (Canárias, S.Tomé, Brasil e Antilhas). Deste modo as rotas desviam-se para novos mercados, colocando a ilha numa posição difícil. Os canaviais foram abandonados na quase totalidade, fazendo perigar a manutenção da importante indústria de conservas e doces. O porto funchalense perdeu a animação que o caracterizara noutras épocas.

É aqui que surge o arquipélago vizinho. O comércio canário, baseado nos mesmos produtos que o madeirense, será um forte concorrente na disputa dos mercados nórdico e mediterrânico. Os produtos dos dois arquipélagos surgem, lado a lado, nas praças de Londres, Anvers, Ruão e Génova. A única vantagem do madeirense resultava de ter sido o primeiro a penetrar com o açúcar e o vinho no mercado europeu, ganhando a preferência de muitos vendedores e consumidores.

A solução possível para debelar a crise da indústria açucareira madeirense, desde a segunda metade do século dezeesseis, foi o recurso ao açúcar brasileiro, usado no consumo interno ou como animador das relações com o mercado europeu. Por isso os contactos com os portos brasileiros adquiriram uma importância fundamental nas rotas comerciais madeirenses do Atlântico Sul. Tal como o refere José Gonçalves Salvador, as ilhas funcionaram, no período de 1609 a 1621, como o "trampolim para o Brasil e Rio da Prata".

É o mesmo quem esclarece que este relacionamento poderia ter lugar de modo direto, ou indireto, sendo este último rumo através de Angola, S. Tomé, Cabo Verde ou Costa da Guiné. Aqui definia-se um circuito de triangulação, de que são exemplo as atividades comerciais de Diogo Fernandes Branco, no período de 1649 a 1652. Note-se que desde finais do século dezesseis estava documentado o comércio do açúcar, servindo os portos do Funchal e Angra como entrepostos para a sua saída legal ou de contrabando para a Europa.

Este comércio do açúcar do Brasil, por imperativos da própria coroa ou por solicitação dos madeirenses, foi alvo de freqüentes limitações. Assim em 1591 ficou proibida a descarga do açúcar brasileiro no porto do Funchal - medida que não produziu qualquer efeito, pois em vereação de 17 de outubro de 1596 foi decidido reclamar junto da coroa a aplicação plena de tal proibição.

Desde 1596, é evidente uma ativa intervenção das autoridades locais na defesa do açúcar de produção local, prova evidente de que se promovia esta cultura. Em janeiro deste ano os vereadores proibiram António Mendes de descarregar o açúcar de Baltazar Dias. Passados três anos, o mesmo surge com outra carga de açúcar da Baía, sendo obrigado a seguir o seu porto de destino, sem proceder a qualquer descarga. O não acatamento das ordens do município implicava a pena de 200 cruzados e um ano de degredo. Esta situação repete-se com outros navios nos anos subseqüentes até 1611: Brás Fernandes Silveira em 1597, António Lopes, Pedro Fernandes o grande e Manuel Pires em 1603, Pero Fernandes e Manuel Fernandes em 1606 e Manuel Rodrigues em 1611.

A constante pressão dos homens de negócio do Funchal envolvidos neste comercio veio a permitir uma solução de consenso para ambas as partes. Assim em 1612 ficou estabelecido um contrato entre os mercadores e o município em que os primeiros se comprometiam a vender 1/3 do açúcar de terra.

Note-se que desde 1603 estava proibida a compra e venda deste açúcar, sendo os infratores punidos com a perda do produto e a coima de 200 cruzados. Mas, a partir de dezembro de 1611 ficou estipulado que a venda de açúcar brasileiro só seria possível após o esgotamento do da terra. Deste modo, os vereadores entregaram Domingos Dias nas mãos do alcaide, sob prisão, por ter vendido 50 caixas de açúcar brasileiro aos ingleses.

Em 1620 a transação do açúcar da terra e do Brasil era feita à razão de 1 por 2, sendo o embarque feito por licença assinada por dois vereadores e um juiz. Para assegurar este controlo, os escravos e barqueiros foram avisados que, sob pena de 50 cruzados ou dois anos de degredo para África, não poderiam proceder ao embarque de açúcar sem autorização da câmara. Em 1657, a proporção de cada açúcar era de metade.

Após a Restauração da independência de Portugal, o comércio com o Brasil foi alvo de múltiplas regulamentações. Primeiro foi a criação do monopólio do comércio com o Brasil, através da Companhia para o efeito criada, depois o estabelecimento do sistema de comboios para maior segurança da navegação. A esta situação, estabelecida em 1649, ressalva-se o caso particular da Madeira e Açores, que a partir de 1650 passaram a poder enviar, isoladamente, dois navios com capacidade para 300 pipas com os produtos da terra, que seriam depois trocados por tabaco, açúcar e madeiras. Mais tarde, ficou estabelecido que os mesmos não podiam suplantar as 500 caixas de açúcar.

Desde meados do século XIX que o açúcar voltou a entrar paulatinamente nas exportações madeirenses. Assim, em 1854 temos referência à saída de 238 kg que passam para 527.883 em 1871. Não existem dados concludentes sobre o comércio do açúcar da ilha neste período, mas pelas medidas que favoreciam a sua saída (em 1870-1887) sabemos da necessidade de garantir uma quota de mercado nos Açores e Continente.

No primeiro quartel da presente centúria, o açúcar de produção local era excedentário, sendo exportado para Lisboa. Após a segunda guerra mundial, a produção do açúcar não foi suficiente para cobrir as carências da ilha, tornando-se necessária a sua importação.

O açúcar do Brasil

No século XVII, o grosso das exportações de açúcar na ilha não será proveniente dela mas sim do Brasil: em 1620, do açúcar exportado, temos 23.560 arrobas do Brasil e 1.992 da Madeira, enquanto em 1650 surgem só 83 caixas do Brasil e 111 arrobas da Madeira (123). Para o período de 1650 a 1691 conseguimos identificar 53 navios provenientes da Baía, Rio de Janeiro, Pernambuco, Paraíba, Pará e Maranhão, que conduziram ao Funchal mais de dez mil caixas de açúcar.

Proveniência

Açúcar

Navios

 

Caixas

feixes

carga (*)

total

Baía

2.489

29

7

17

Rio de Janeiro

4.218

13

6

12

Pernambuco

3.343

71

9

18

Maranhão

   57

31

-

1

Paraíba

  615

-

2

5

Pará

-

-

1

1

TOTAL

10.722 

144

25

53

(*) sem indicação do número de caixas e feixes de açúcar

A estes valores dever-se-ão juntar alguns registros de despacho na alfândega, feito em livro próprio, com a indicação dos destinatários do açúcar transportado:

Ano

Nº de destinatários

Arrobas

1640

    77 (*)

12.769

1671

64

28.465

1682

30

  2.475

1691

98

  1.428

(*) incluem-se trinta e três em que não foi possível identificar o número de arrobas,
devido ao mau estado do manuscrito.

Por aqui se conclui que o açúcar do Brasil teve um lugar importante na economia madeirense, não apenas por apoiar as indústrias de conserva e casca, mas, fundamentalmente pelo ativo movimento de reexportação.