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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - BIBLIOTECA - TEATROS
Memórias do Teatro de Santos (17)


Clique na imagem para voltar ao índice da obraComo em muitas outras cidades brasileiras, a memória do teatro santista raramente é registrada de modo ordenado que permita acompanhar sua história e evolução, bem como avaliar a importância dos artistas no contexto nacional, rememorando as grandes atuações, as principais montagens etc.

Uma tentativa neste sentido foi feita na década de 1990 pela crítica teatral santista Carmelinda Guimarães, que compilou depoimentos escritos e orais, documentos e outros registros, nas Memórias do Teatro de Santos - livro publicado pela Prefeitura de Santos em 1996, com produção de Marcelo Di Renzo, capa de Mônica Mathias, foto digitalizada por Roberto Konda. A impressão foi da Prodesan Gráfica.

Esta primeira edição digital em Novo Milênio foi autorizada pela autora, Carmelinda Guimarães, em 6 de janeiro de 2011. O exemplar aqui utilizado foi cedido pelo ator santista Osvaldo de Araujo:

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Memórias do Teatro de Santos

Carmelinda Guimarães

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Crônica da Época: Pagu que falta tu fazes

Evêncio da Quinta

E lá já se vão vinte anos. O que a princípio foi um espanto mudo, transformou-se em saudade doce e agora é memória feliz. Estes vinte anos pertencem à lembrança de Patrícia Galvão. De lá para cá, isto é, desde o dia de sua morte, o que de início parecia tornar-se uma lembrança viva apenas entre amigos saudosos está se agigantando e transformando nossa amiga numa espécie de mito. Escrevem-se peças de teatro sobre ela, cita-se seu nome em filmes e livros, aliás escreve-se um livro inteiro sobre ela. Portanto, a lembrança de Patrícia não é mais exclusiva de sua turminha de teatro. É um patrimônio paulista e nacional.

É curioso pensar nela como um patrimônio. Patrícia simplesmente abominava os patrimônios. Ela era a favor das revoluções permanentes e achava que o que era velho devia ser arquivado. Pois no que se refere à sua pessoa, que hoje estaria com respeitáveis setenta e tantos anos, ela não foi de modo nenhum arquivada. Viveu e espalhou sementes, e neste ponto cabe a pergunta: e o que foi feito destas sementes? Germinaram?

Algumas sim, outras não. Há sempre uma margem de fracasso implícita em qualquer tentativa. De qualquer modo, é penoso constatar que o movimento teatral, que ela inspirou e liderou, está hoje virtualmente morto. Morto, não, que estas coisas não morreram, mas está abúlico por falta de quem o faça nadar de novo. Da velha turma, alguns se profissionalizaram e mergulharam no limbo da obscuridade, que a arte nem sempre traz a fama consigo, embora esta seja o sonho principal de quem faz da arte a sua ferramenta de trabalho. Outros simplesmente abandonaram tudo, por cansaço, desfastio ou desencanto, ou tudo junto. Outros mais atingiram um ponto ótimo de popularidade e parecem agora não saber o que fazer com ela.

Enfim, para ser franco, o movimento esfacelou-se e o que se vê hoje em dia é uma cidade prenhe de potencialidades completamente estanque, sem fazer nada, sem criar nada, sem emocionar-se com nada, graças aos caldeiras e aos barbosas da vida, que nos foram impingidos e aqui chegaram sem saber que esta cidade era, nos tempos de Patrícia, uma verdadeira fornalha criativa, que transbordava de vitalidade e nos fazia pensar alegremente que vivíamos numa espécie de Atenas tropical, onde em cada esquina podia-se encontrar um autor pensando na sua próxima peça, ou um diretor imaginando o próximo sucesso da temporada. As outras artes eclipsavam-se diante do furacão que a turma do teatro armou, mas mesmo assim vicejavam e competiam. Vivia-se, então, a festa permanente do espírito.

De repente, parece que tudo terminou. Por falar nisso, por onde anda a orquestra sinfônica municipal? Depois que o maestro tornou-se um funcionário público, a coisa simplesmente degringolou. Com o afastamento dos amigos – aliás afastamento imperioso ditado pelo tempo de serviço e necessidade de reciclagem – a arte em Santos conheceu tempos ominosos, onde qualquer parvenu achava-se capacitado a dirigir uma peça de teatro. O resultado, naturalmente, só poderia ser traduzido por palavras impublicáveis.

Patrícia, precisava ter visto o último festival de teatro amador feito cá na terrinha. Já não sei em que ano foi, só consigo me lembrar do Hamlet entrando em cena carregando a caveira como se fosse uma bola de futebol. Nem tua boa vontade multiplicada por 10 ou 20 conseguiria salvar esta gente da mediocridade enfatuada em que mergulharam. Em suma, tua escola, teu esforço, teu carinho, ficaram mesmo para os teus contemporâneos, que hoje vêem maravilhados a tua transformação em figura histórica.

Há quem atribua a decadência do teatro em particular, e das artes em geral, à inflação. Está tudo muito caro, dizem, e é parcialmente verdadeiro. Claro, neste país meio ensandecido, muita coisa tem que ser posta de lado por causa das artes maiores do gordo sinistro, mas isto não desculpa o marasmo e a falta de entusiasmo, principalmente dos estudantes, que há 20 anos eram uma das colunas mestras do movimento. Dizem – não sei ao certo porque não freqüento as escolas – que nem mesmo estudar os estudantes não querem. Eles, como muita gente boa, estão mesmo é a fim de ficar vendo a banda passar.

No vazio formado entre tua morte e o momento em que escrevo este desabafo, surgiu uma formidável geração de espectadores. Espectadores para tudo: desfiles de carnaval, corridas de Fórmula 1, futebol (ultimamente também em fase de descrédito), vôlei (em grande alta), festivais de música popular e até, eventualmente, uma peça de teatro. Desde que seja boa, naturalmente.

Eu gostaria de saber o que pensas do teatro atual. Lógico, com tua condescendência certamente irias achar tudo maravilhoso, porque o teu maior defeito era exatamente este, todos eram lindos e belos, desde que estivessem mergulhados na aventura do teatro. No seu entender, o teatro tinha o poder mágico de absolver a pessoa de suas falhas.

No entanto, os que conviveram contigo adquiriram senso mais crítico e menos – digamos assim – maternal para as coisas. Alfredo Mesquita, que cometeu a proeza de fundar – e dirigir – a Escola de Arte Dramática, herdeiro de uma biblioteca, portanto pessoa que vivia num canto de ter coração, simplesmente passou a Escola para a USP, recolheu-se à sua fazenda e não quer nem mais ouvir falar em teatro, pelo menos não o teatro que ele entende e ensinava. Por isso, como tantos outros daquele tempo, prefere retirar-se, sair de lado e deixar que os que chegam façam do modo como melhor souberem.

Enfim, minha cara Pagu (este apelido o Augusto de Campos não registrou no seu livro sobre Patrícia) está fazendo falta. O curioso: ela não representava, tentou escrever alguma coisa e não chegou a terminar, não dirigia, não projetava cenários nem os pintava. Sentava-se na platéia durante os ensaios e incentivava. Era o que ela sabia fazer de melhor no teatro: incentivar com palavras, com artigos, com sua simples presença. É isto ai. A luz não nos conduz pelo caminho. A luz apenas indica o caminho, clareia a trilha e mostra onde está a pedra. O resto, tem que ser por conta de quem caminha.

A Tribuna, 13/12/1982.

Lenimar Rios e Sérgio Gomes, teatro infantil

Foto publicada com o texto