Crônica da Época: Pagu que falta
tu fazes
Evêncio da Quinta
E lá já se vão vinte anos. O que a princípio foi um
espanto mudo, transformou-se em saudade doce e agora é memória feliz. Estes vinte anos pertencem à lembrança de
Patrícia Galvão. De lá para cá, isto é, desde o dia de sua morte, o que de início parecia tornar-se uma lembrança viva apenas entre amigos
saudosos está se agigantando e transformando nossa amiga numa espécie de mito. Escrevem-se peças de teatro sobre ela, cita-se seu nome em filmes e
livros, aliás escreve-se um livro inteiro sobre ela. Portanto, a lembrança de Patrícia não é mais exclusiva de sua turminha de teatro. É um
patrimônio paulista e nacional.
É curioso pensar nela como um patrimônio. Patrícia
simplesmente abominava os patrimônios. Ela era a favor das revoluções permanentes e achava que o que era velho devia ser arquivado. Pois no que se
refere à sua pessoa, que hoje estaria com respeitáveis setenta e tantos anos, ela não foi de modo nenhum arquivada. Viveu e espalhou sementes, e
neste ponto cabe a pergunta: e o que foi feito destas sementes? Germinaram?
Algumas sim, outras não. Há sempre uma margem de fracasso
implícita em qualquer tentativa. De qualquer modo, é penoso constatar que o movimento teatral, que ela inspirou e liderou, está hoje virtualmente
morto. Morto, não, que estas coisas não morreram, mas está abúlico por falta de quem o faça nadar de novo. Da velha turma, alguns se
profissionalizaram e mergulharam no limbo da obscuridade, que a arte nem sempre traz a fama consigo, embora esta seja o sonho principal de quem faz
da arte a sua ferramenta de trabalho. Outros simplesmente abandonaram tudo, por cansaço, desfastio ou desencanto, ou tudo junto. Outros mais
atingiram um ponto ótimo de popularidade e parecem agora não saber o que fazer com ela.
Enfim, para ser franco, o movimento esfacelou-se e o que se
vê hoje em dia é uma cidade prenhe de potencialidades completamente estanque, sem fazer nada, sem criar nada, sem emocionar-se com nada, graças aos
caldeiras e aos barbosas da vida, que nos foram impingidos e aqui
chegaram sem saber que esta cidade era, nos tempos de Patrícia, uma verdadeira fornalha criativa, que transbordava de vitalidade e nos fazia pensar
alegremente que vivíamos numa espécie de Atenas tropical, onde em cada esquina podia-se encontrar um autor pensando na sua próxima peça, ou um
diretor imaginando o próximo sucesso da temporada. As outras artes eclipsavam-se diante do furacão que a turma do teatro armou, mas mesmo assim
vicejavam e competiam. Vivia-se, então, a festa permanente do espírito.
De repente, parece que tudo terminou. Por falar nisso, por
onde anda a orquestra sinfônica municipal? Depois que o maestro tornou-se um funcionário público, a coisa simplesmente degringolou. Com o
afastamento dos amigos – aliás afastamento imperioso ditado pelo tempo de serviço e necessidade de reciclagem – a arte em Santos conheceu tempos
ominosos, onde qualquer parvenu achava-se capacitado a dirigir uma
peça de teatro. O resultado, naturalmente, só poderia ser traduzido por palavras impublicáveis.
Patrícia, precisava ter visto o último festival de teatro
amador feito cá na terrinha. Já não sei em que ano foi, só consigo me lembrar do Hamlet entrando em cena carregando a caveira como se fosse uma bola
de futebol. Nem tua boa vontade multiplicada por 10 ou 20 conseguiria salvar esta gente da mediocridade enfatuada em que mergulharam. Em suma, tua
escola, teu esforço, teu carinho, ficaram mesmo para os teus contemporâneos, que hoje vêem maravilhados a tua transformação em figura histórica.
Há quem atribua a decadência do teatro em particular, e das
artes em geral, à inflação. Está tudo muito caro, dizem, e é parcialmente verdadeiro. Claro, neste país meio ensandecido, muita coisa tem que ser
posta de lado por causa das artes maiores do gordo sinistro, mas isto não desculpa o marasmo e a falta de entusiasmo, principalmente dos estudantes,
que há 20 anos eram uma das colunas mestras do movimento. Dizem – não sei ao certo porque não freqüento as escolas – que nem mesmo estudar os
estudantes não querem. Eles, como muita gente boa, estão mesmo é a fim de ficar vendo a banda passar.
No vazio formado entre tua morte e o momento em que escrevo
este desabafo, surgiu uma formidável geração de espectadores. Espectadores para tudo: desfiles de carnaval, corridas de Fórmula 1, futebol
(ultimamente também em fase de descrédito), vôlei (em grande alta), festivais de música popular e até, eventualmente, uma peça de teatro. Desde que
seja boa, naturalmente.
Eu gostaria de saber o que pensas do teatro atual. Lógico,
com tua condescendência certamente irias achar tudo maravilhoso, porque o teu maior defeito era exatamente este, todos eram lindos e belos, desde
que estivessem mergulhados na aventura do teatro. No seu entender, o teatro tinha o poder mágico de absolver a pessoa de suas falhas.
No entanto, os que conviveram contigo adquiriram senso mais
crítico e menos – digamos assim – maternal para as coisas. Alfredo Mesquita, que cometeu a proeza de fundar – e dirigir – a Escola de Arte
Dramática, herdeiro de uma biblioteca, portanto pessoa que vivia num canto de ter coração, simplesmente passou a Escola para a USP, recolheu-se à
sua fazenda e não quer nem mais ouvir falar em teatro, pelo menos não o teatro que ele entende e ensinava. Por isso, como tantos outros daquele
tempo, prefere retirar-se, sair de lado e deixar que os que chegam façam do modo como melhor souberem.
Enfim, minha cara
Pagu (este apelido o Augusto de Campos não registrou no seu livro sobre Patrícia) está fazendo falta. O curioso: ela não representava, tentou
escrever alguma coisa e não chegou a terminar, não dirigia, não projetava cenários nem os pintava. Sentava-se na platéia durante os ensaios e
incentivava. Era o que ela sabia fazer de melhor no teatro: incentivar com palavras, com artigos, com sua simples presença. É isto ai. A luz não nos
conduz pelo caminho. A luz apenas indica o caminho, clareia a trilha e mostra onde está a pedra. O resto, tem que ser por conta de quem caminha.
A Tribuna, 13/12/1982. |