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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - CINEMA
O cinema em Santos (3)

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Um francês que virou santista e um apaixonado pelo cinema, e que o editor de Novo Milênio teve oportunidade de conhecer, de dia ao chegar à redação e em algumas rodas boêmias à noite, acompanhando a sua luta em prol da revitalização e preservação do cinema em Santos. Maurice faleceu em 25 de maio de 1997 e no domingo seguinte foi destacado em matéria do jornal A Tribuna, nas capas do suplemento AT Especial/Leituras publicado em 1º de junho de 1997:
 

Maurice, o homem que resistia

Depois que morre geralmente todo mundo vira santo. Maurice Legeard, nunca. O velho guerreiro das sessões de arte certamente ficaria irado com elogios. Mas quem conviveu mais profundamente com ele e admirava seu amor pelo cinema sabe exatamente o que falar. Para Plínio Marcos, por exemplo, Maurice foi um grande animador das noites santistas, um grande boêmio, apaixonado pelo cinema e teatro, uma pessoa que procurava incomodar e não deixar ninguém acomodado.

"Muitas vezes as pessoas não o compreendiam, porque ele sabia instigar como ninguém. Ele foi um grande rebelde, anarquista por excelência, um grande amigo". Na página 7 (N.E.: 6...), o leitor poderá acompanhar outros depoimentos sobre o homem que respirou cinema até o final de sua vida. Nas últimas semanas, apesar da doença, ele ainda encontrou forças para selecionar material e organizar o Ciclo de Revisão do Cinema Moderno, pela Cinemateca que fundou. E com o maior carinho. Página 6.

MEMÓRIA
Maurice e sua obstinada paixão pelo cinema

Ele é relembrado nesta página como uma pessoa contraditória e polêmica, que dividia generosamente sua paixão

Cid Marcus (*)
Colaborador

Ele gostava de plantas, flores, aquários, selos e teve cachorros que se chamavam Felicidade em outras línguas. Era o Maurice, que, como poucos, viveu o cinema. O Langlois, na França, talvez o tenha vivido como ele, lá na sua Cinemateca. Ambos passando a vida em salas de projeção, emendando filmes, guardando nomes, fichas técnicas, revistas, livros, críticas, metidos em debates apaixonados e discussões infindas pela noite adentro.

Muitos se lembrarão dele como polêmico, contraditório, irritado, do contra mesmo. Mas acredito que alguns tenham percebido o que toda essa encenação escondia. No fundo, uma grande sensibilidade, temerosa de se revelar, possível de se adivinhar, contudo. Uma sensibilidade fina que lhe escapava por pequenos gestos, quase imperceptíveis, envergonhados gestos. Outras vezes ela se insinuava reticente nas lembranças de observações que um dia havíamos feito e que ele trazia à conversa, a nos revelar como contávamos para ele.

Com uma enorme quantidade de horas-filme em seu currículo, compulsivo arquivista de toda a documentação referente à arte, Maurice tem seu nome inscrito, par droit de conquête, na galeria dos memorialistas do cinema. Seu alter-ego mais próximo neste sentido é o personagem que Ettore Scola nos apresentou em Nós que nos Amávamos Tanto pelo Leopoldo Trieste. Uma entrega total à musa, fidelidade absoluta, nada de concessões, de médias.

Cinema para ele era arte completa, sonho e realidade misturados, técnica, divertimento, indústria, pedagogia, comércio, fenômeno social e político, sobretudo, uma maravilha, enfim. Era algo que se confundia com a dinâmica multifacetada da própria vida e até a ultrapassava, provavelmente mais em preto e branco que em cores.

Maurice fez parte daquelas gerações que se informaram sobre cinema com os teóricos franceses, a lição pioneira do Sadoul, do Jean Mitry, com o pessoal dos Cahiers du Cinéma, com os russos da teoria da montagem, com os primeiros americanos que fixaram a linguagem cinematográfica.

Aqui entre nós, com quantos ele não dividiu generosamente a sua paixão, a quantos não fez ver um pouco mais. Estudantes, curiosos, gente da crítica, de outros cineclubes, longas conversas, cigarro aceso, entre um trago e outro, a noite avançando.

Muito do que de melhor se fez em cinema foi apresentado em Santos devido à sua obstinação. Cinema de arte, de animação, o infantil dos países do Leste europeu, o Bergman dos primeiros tempos, o cinema baiano antes do Glauber "estourar", as retrospectivas polonesas e tchecas, o intimismo japonês, os clássicos russos, a surpresa indiana, todo o neorrealismo italiano e muito mais. Eram os tempos heroicos da bitola de 16 mm, com toda a sua precariedade e sedução.

Embora de uns anos para cá o modelo hollywoodiano de se fazer e ver cinema viesse se impondo cada vez mais, cinema de baixíssimo nível, muito mais comércio que cinema, Maurice resistiu, optando pelo que de melhor se podia obter em vídeo. Esses novos tempos trouxeram um grande rebaixamento qualitativo para o cinema. Boa parte da crítica oficial aderiu, publicando como "análises" aquilo que as distribuidoras fornecem. Maurice conseguiu montar, como lhe foi possível, as suas defesas, para tentar deter a invasão inexorável dessa barbárie.

Maurice se foi no último domingo. Não só a cidade ficou menor, nós também, pois ele, à sua maneira, soube fazer com que nós pudéssemos ir um pouco além de nós mesmos.

(*) Cid Marcus, ex-professor universitário e antigo companheiro de Maurice em várias diretorias do Clube de Cinema de Santos.

Maurice passou a vida em salas de projeção e no meio de filmes, críticas,
fichas e revistas sobre o que mais gostava de conversar: o cinema
Foto: Arquivo

O boêmio foi embora

Ana Maria Sachetto (*)
Colaboradora

Maurice é dessas pessoas que não morrem nunca. Ele só não pode mais ser visto na noite santista, nos locais onde a arte se manifesta, nos ambientes onde se debate cultura e, principalmente, nas salas de cinema, sejam elas confortáveis e convencionais ou improvisadas e improváveis. Era especialmente nelas, onde quer que houvesse projeção de um bom filme, que Maurice parecia mais feliz.

É claro que os velhos boêmios vão sentir falta de sua figura, que os intelectuais vão lamentar sua ausência. Ele não mais vai entrar porta adentro das redações, reclamando em voz alta e com cara de mau contra o que sempre julgava ser pouca divulgação para suas promoções. Mas ele era assim mesmo, apaixonado pelo que fazia e louco por bom cinema. Quantas vezes suas reclamações não acabavam em boas gargalhadas, uma de suas marcas registradas?

Mas também não se preocupava se, por conta do seu mau humor ou de reclamações que considerava justas e de posicionamentos francos, atraísse antipatias. Era esse o seu jeito, e não saberia mudá-lo. Não perseguia a unanimidade. Só que acabou alcançando-a. Ninguém, gostasse ou não de seu modo de ser, admirasse ou não sua personalidade, pôde, por um momento sequer, negar seu espírito guerreiro.

Foi uma guerra árdua e constante, com batalhas ganhas e perdidas. Mas Maurice era incansável. Enfrentava com igual disposição dos seus próprios problemas de saúde à incompreensão e falta de conhecimento de algumas pessoas. Também encontrou poucos, mas importantes apoios. E venceu muitas vezes. Tantas, que hoje, em Santos, não se pode falar em cinema de arte e em bom cinema, sem se falar de Maurice Legeard.

Por isso ele é desses que não morrem nunca. Maurice está definitivamente incorporado a Santos. Seu nome é sinônimo de cinema e ele permanecerá vivo em tudo o que, daqui para a frente, for realizado pela arte santista. De preferência, saudado com uma boa gargalhada.

(*) Ana Maria Sachetto é jornalista.


Para ele, cinema era a arte completa, sonho e realidade, técnica e divertimento,
enfim a grande maravilha

Foto: Carlos Marques/Arquivo

Um lutador a menos

Gilberto Mendes (*)
Colaborador

Maurice Armand Marius Légeard, que romântico e poético nome tinha nosso velho Maurice, agora morto. A primeira sensação é a da perda de um amigo muito especial. Depois, o vazio deixado, um lutador a menos neste final de século melancólico, em que as forças tenebrosas, provincianas e reacionárias, parecem estar retornando a todo vapor, em todo o mundo.

Maurice foi o caso raro de uma pessoa que conquistou o amor, a admiração de toda uma cidade, a nossa Cidade, sendo absolutamente como ele era, sem papas na língua, sem concessões, dizendo o que pensava, doesse a quem doesse. Cinema de arte foi sua paixão, sua atividade. Mas, acima de tudo, ele ensinava através dessa atividade a justiça social, o companheirismo.

Coisas que não contam mais, consideradas pieguices neste fim de milênio cruel, cínico e profundamente injusto. Maurice foi participante, interessado nas coisas até o último momento, sem nunca se queixar do seu sofrimento. Que belo exemplo de vida e de morte.

(*) Gilberto Mendes é maestro e compositor

Irritante guerreiro

Narciso de Andrade (*)
Colaborador

Guerreiro. Desafiador. Irritante. Incorruptível. Independente.

Na morna paisagem cultural da cidade surgia sempre como um grande provocador. Imprescindível. Não hesitava em comprar briga até com amigos, em defesa de suas idéias. Inflexível. Teimoso. Irritante.

Rara criatura, capaz de viver (como viveu) para um sonho e um ideal. Uma vida inteira.

Se chamava Maurice, era francês mas virou santista, com muita raiva e muito amor.

Nos entendemos e nos desentendemos durante mais de 40 anos. Era uma questão de preservar a liberdade e a independência de pensamento de cada um.

De difícil acesso em sua integral e profunda verdade humana, acredito que era, no fundo, um menino valente e sonhador.

(*) Narciso de Andrade é poeta.

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Universidade Santa Cecília (UniSanta) inaugurou em 2 de março de 2009 um mural temático em homenagem a Maurice Legeard e à artista Simone Marie. Criada por Gilson de Mello Barros, a obra fica na Biblioteca de Saúde, na Rua Cesário Mota, 8, em Santos
Foto: divulgação, publicada no jornal santista A Tribuna, em 3 de março de 2009, página D-4

Também o jornalista e historiador Paulo Matos (falecido em julho de 2010) publicou seu depoimento sobre Maurice Legeard, ainda em vida deste. O artigo saiu no Diário da Cidade, de Guarujá, na edição de sexta-feira, 29 de setembro de 1995:

Maurice e seu século: cinema e vida

Paulo Matos (*)
Colaborador

Lumiére, Meliés, Chaplin, Welles e Bergman; Fellini e Passolini; Coppola, Wadja, Glauber e Cavalcanti. No banco, no mesmo nível dos titulares, Visconti, Buñuel, Godard, Kurosawa e Shindo. A escalação de uma seleção de diretores do cinema mundial se tornou possível para muitos santistas, da mesma maneira que a de futebol para 150 milhões de brasileiros, só que inerentes de conceitos artísticos e sociais. Um trabalho de Maurice.

Há quase cinquenta anos, o cidadão santista, nascido francês, Maurício Marius Legeard, se juntava com outros militantes intelectuais da terra, deslumbrados ante a descoberta do mecanismo cinematográfico como capaz de agregar grandes públicos no processo de pensar. Era fundado o Clube de Cinema de Santos, em 1948, em pleno renascimento intelectual do pós-guerra.

No século do cinema, o mundo esteve na cidade e não conheceu o seu registro de nascimento. O secretário de cultura de Roma e o dirigente da "Cinecittá" italiana de tantos mestres estiveram aqui. Mas não viram ou souberam de Maurice, desbravador da sétima arte, que dedicou toda uma vida à disseminação de sua ideologia. Foi ainda pior do que ir a Roma e não conhecer o Papa, ou a arquitetura histórica do berço da civilização.

A técnica que permitiu o cinema foi o instrumento para que intelectuais e artistas o projetassem como veículo de ideias e concepções. Mas o caminho entre a criação e o público haveria de ser pavimentado por descobridores de sua importância, na origem desse revolucionário método audiovisual - que somava todas as sete artes. A custa de não se converterem aos falsos e efêmeros valores do lucro ou do sucesso fácil, dispostos a exibirem temas valiosos em salas acanhadas, para reduzidíssimos públicos. Eram heróis, semeando revoluções.

Era diferente da gigantesca estrutura eletrônica montada para ludibriar milhões de cidadãos, de forma a manter imutável o sistema de dominação, mediante a imposição do circo. Abrir ou impedir consciências? Nobreza de ideais ou egoísmo dos serviçais do sistema que leva a sociedade ao aniquilamento? Na concorrência institucionalizando a violência e o cada um por si, está hoje desenhada uma nação de milhões de idiotas fundamentais, incapazes de formular alternativas para o esmagamento coletivo. Há meio século, a resistência começava, atraindo aliados para linguagem do cinema.

Não foram poucas as gerações revolucionárias que se alimentaram deste néctar libertário do cinema, nas sessões da meia-noite do Maurice. Eram a prévia das panfletagens clandestinas, das pichações noturnas, em que a resistência tinha mão dupla, da afirmação em nós mesmos e na população-alvo de nossa catilinária. Nas salas, a fossa dos sentimentos - afogada nas constatações inevitáveis das discussões de cinema e política, inseparáveis. Revoluções cerebrais e pictóricas que nos traduziam a certeza de estarmos vivos e atentos - e fortes. Não tínhamos tempo de temer a morte.

A história dos processos culturais e sociais das civilizações tem um valor fundamental no presente e no futuro dos sistemas. O resgate de seus iniciadores remontam sentidos, atmosferas. São símbolos, referenciais de novas etapas. O cinema em Santos passa, em sua história, pelo Paulo Gonçalves nº 22 - onde fica a Cinemateca de Santos. Foi o resgate de Maurice para seguir cinematografando, após ter sido destruído por mãos outras seu cultuado clube de cinema, que dirigiu sozinho desde 1953.

Em 1954, Maurice e o Clube passam a morar juntos. Ainda que "Clube" de um homem só, nenhum outro de natureza cultural pregou para tantos durante tanto tempo, ainda que sem absolutamente nenhum apoio oficial. Em 1976, Lélio Kolhy era eleito presidente; em 1980 Herédia. Maurice se afastava e fundava a Cinemateca, seu alter-ego. Em 1983, o presidente era Everaldo, quando tudo foi liquidado. Mas estava ressurgido, na Cinemateca.

O arquivo de uns dez mil filmes, com críticas especializadas dos principais jornais do país, era atualizado diariamente por décadas - mas faltou fôlego. Mas centenas de caixinhas guardam cuidadosamente centenas de diretores, fora a biblioteca. Hoje, a Cinemateca é uma videoteca, com cerca de mil fitas de vídeo com as maiores obras do cinema universal. É o descanso do herói, que chegou a promover cinco sessões semanais, nos cinemas e em entidades profissionais ou hotéis, levando mensagens e informações.

Cinemateca e Clube de Cinema são referenciais de um esforço de vida em prol da disseminação não apenas da cultura cinematográfica, que carrega inerente todas as artes, mas da formação de consciências políticas. Forjadora de elementos capazes da proposta de inverter e fazer vencer Sacco e Vanzetti, de reverter a trajetória de esmagamento social e intelectual do capitalismo. No centro desse trabalho, Maurice, ser diverso dos das paixões efêmeras que iniciam e liquidam esforços em curtos períodos. Maurice seguiu - e segue - até hoje. Na certeza de que o caminho valia a pena.

No século do cinema, Maurice é um personagem local que, do alto de seus 70 anos, persiste lúcido na análise pessimista da conjuntura social, na vitória e na predominância dos falsos profetas e dos escritores hipócritas. No século do cinema, Santos tem um valor permanente porque com raízes no processo histórico. É este um dos cinco primeiros cineclubes do Brasil, nascido em uma época insurgente e afirmativa. Que durante décadas teve a sede em sua casa e por duas vezes quase esteve no Centro de Cultura do município. Na primeira, teve que sair logo depois de constatada sua natureza antagônica com o governo de intervenção na cidade. A segunda, já no governo Telma, não chegou a se instalar.

Rubens Uchôa Cintra, Gastão Frazão, Nelson e Armando Sá foram, entre outros, companheiros de Maurice na fundação do CCS em 1948 - sem esquecer de seu sócio nº 1, Roldão Mendes Rosa. Uma história de hoje.

O cineclubismo brasileiro, nascido no Rio de Janeiro na mesma época, teve a expressão de personalidades como Vinicius de Moraes. Depois desse, só o da capital paulistana antecede o de Santos, vanguarda dos promotores de imagens consistentes. E resistentes aqui nos anos difíceis, enfrentando a ditadura e a censura com fitas revolucionárias que não podiam impedir, nosso canal com a consciência universal da inevitável superação do arrocho político.

Maurice está no bairro do Mercado, semelhante física e conjunturalmente a Leon Trotsky. Uma série de radioterapias o deixaram apenas com o cavanhaque, como o construtor da sociedade soviética. O diretor Joseph Losey o contraria de pronto para interpretar o líder marginalizado e aniquilado em nome de transformação de que foi intérprete. Chaplin, em vida, escreveu a Maurice - fio condutor das mais célebres imagens da humanidade com que brindou milhares, carentes desse enriquecimento temático e visual. Agente de processo e da civilização, é mais uma glória santista - inseparável do seu século. E está inseparavelmente inserido na história da cidade. Ele ainda quer restaurar o Clube de Cinema.

(*) Paulo Matos é jornalista e historiador pós-graduado.

 

Veja também:

"O guru e os guris"