Maurice, o homem que resistia
Depois que morre geralmente todo mundo vira santo.
Maurice Legeard, nunca. O velho guerreiro das sessões de arte certamente ficaria irado com elogios. Mas quem conviveu mais profundamente com ele e
admirava seu amor pelo cinema sabe exatamente o que falar. Para Plínio Marcos, por exemplo, Maurice foi um grande animador das noites santistas, um
grande boêmio, apaixonado pelo cinema e teatro, uma pessoa que procurava incomodar e não deixar ninguém acomodado.
"Muitas vezes as pessoas não o compreendiam, porque ele sabia instigar como ninguém.
Ele foi um grande rebelde, anarquista por excelência, um grande amigo". Na página 7 (N.E.: 6...),
o leitor poderá acompanhar outros depoimentos sobre o homem que respirou cinema até o final de sua vida. Nas últimas semanas, apesar da doença, ele
ainda encontrou forças para selecionar material e organizar o Ciclo de Revisão do Cinema Moderno, pela Cinemateca que fundou. E com o maior carinho.
Página 6.
MEMÓRIA
Maurice e sua obstinada paixão pelo cinema
Ele é relembrado nesta página como uma pessoa contraditória e polêmica, que
dividia generosamente sua paixão
Cid Marcus (*)
Colaborador
Ele gostava de plantas, flores, aquários, selos e teve
cachorros que se chamavam Felicidade em outras línguas. Era o Maurice, que, como poucos, viveu o cinema. O Langlois, na França, talvez o tenha
vivido como ele, lá na sua Cinemateca. Ambos passando a vida em salas de projeção, emendando filmes, guardando nomes, fichas técnicas, revistas,
livros, críticas, metidos em debates apaixonados e discussões infindas pela noite adentro.
Muitos se lembrarão dele como polêmico, contraditório, irritado, do contra mesmo. Mas
acredito que alguns tenham percebido o que toda essa encenação escondia. No fundo, uma grande sensibilidade, temerosa de se revelar, possível de se
adivinhar, contudo. Uma sensibilidade fina que lhe escapava por pequenos gestos, quase imperceptíveis, envergonhados gestos. Outras vezes ela se
insinuava reticente nas lembranças de observações que um dia havíamos feito e que ele trazia à conversa, a nos revelar como contávamos para ele.
Com uma enorme quantidade de horas-filme em seu currículo, compulsivo arquivista de
toda a documentação referente à arte, Maurice tem seu nome inscrito, par droit de conquête, na galeria dos memorialistas do cinema. Seu
alter-ego mais próximo neste sentido é o personagem que Ettore Scola nos apresentou em Nós que nos Amávamos Tanto pelo Leopoldo Trieste.
Uma entrega total à musa, fidelidade absoluta, nada de concessões, de médias.
Cinema para ele era arte completa, sonho e realidade misturados, técnica,
divertimento, indústria, pedagogia, comércio, fenômeno social e político, sobretudo, uma maravilha, enfim. Era algo que se confundia com a dinâmica
multifacetada da própria vida e até a ultrapassava, provavelmente mais em preto e branco que em cores.
Maurice fez parte daquelas gerações que se informaram sobre cinema com os teóricos
franceses, a lição pioneira do Sadoul, do Jean Mitry, com o pessoal dos Cahiers du Cinéma, com os russos da teoria da montagem, com os
primeiros americanos que fixaram a linguagem cinematográfica.
Aqui entre nós, com quantos ele não dividiu generosamente a sua paixão, a quantos não
fez ver um pouco mais. Estudantes, curiosos, gente da crítica, de outros cineclubes, longas conversas, cigarro aceso, entre um trago e outro, a
noite avançando.
Muito do que de melhor se fez em cinema foi apresentado em Santos devido à sua
obstinação. Cinema de arte, de animação, o infantil dos países do Leste europeu, o Bergman dos primeiros tempos, o cinema baiano antes do Glauber
"estourar", as retrospectivas polonesas e tchecas, o intimismo japonês, os clássicos russos, a surpresa indiana, todo o neorrealismo italiano e
muito mais. Eram os tempos heroicos da bitola de 16 mm, com toda a sua precariedade e sedução.
Embora de uns anos para cá o modelo hollywoodiano de se fazer e ver cinema
viesse se impondo cada vez mais, cinema de baixíssimo nível, muito mais comércio que cinema, Maurice resistiu, optando pelo que de melhor se podia
obter em vídeo. Esses novos tempos trouxeram um grande rebaixamento qualitativo para o cinema. Boa parte da crítica oficial aderiu, publicando como
"análises" aquilo que as distribuidoras fornecem. Maurice conseguiu montar, como lhe foi possível, as suas defesas, para tentar deter a invasão
inexorável dessa barbárie.
Maurice se foi no último domingo. Não só a cidade ficou menor, nós também, pois ele, à
sua maneira, soube fazer com que nós pudéssemos ir um pouco além de nós mesmos.
(*) Cid Marcus, ex-professor universitário e
antigo companheiro de Maurice em várias diretorias do Clube de Cinema de Santos.
Maurice passou a vida em salas de projeção e no
meio de filmes, críticas,
fichas e revistas sobre o que mais gostava de conversar: o cinema
Foto: Arquivo
O boêmio foi embora
Ana Maria Sachetto (*)
Colaboradora
Maurice é dessas pessoas que não morrem nunca. Ele só
não pode mais ser visto na noite santista, nos locais onde a arte se manifesta, nos ambientes onde se debate cultura e, principalmente, nas salas de
cinema, sejam elas confortáveis e convencionais ou improvisadas e improváveis. Era especialmente nelas, onde quer que houvesse projeção de um bom
filme, que Maurice parecia mais feliz.
É claro que os velhos boêmios vão sentir falta de sua figura, que os intelectuais vão
lamentar sua ausência. Ele não mais vai entrar porta adentro das redações, reclamando em voz alta e com cara de mau contra o que sempre julgava ser
pouca divulgação para suas promoções. Mas ele era assim mesmo, apaixonado pelo que fazia e louco por bom cinema. Quantas vezes suas reclamações não
acabavam em boas gargalhadas, uma de suas marcas registradas?
Mas também não se preocupava se, por conta do seu mau humor ou de reclamações que
considerava justas e de posicionamentos francos, atraísse antipatias. Era esse o seu jeito, e não saberia mudá-lo. Não perseguia a unanimidade. Só
que acabou alcançando-a. Ninguém, gostasse ou não de seu modo de ser, admirasse ou não sua personalidade, pôde, por um momento sequer, negar seu
espírito guerreiro.
Foi uma guerra árdua e constante, com batalhas ganhas e perdidas. Mas Maurice era
incansável. Enfrentava com igual disposição dos seus próprios problemas de saúde à incompreensão e falta de conhecimento de algumas pessoas. Também
encontrou poucos, mas importantes apoios. E venceu muitas vezes. Tantas, que hoje, em Santos, não se pode falar em cinema de arte e em bom cinema,
sem se falar de Maurice Legeard.
Por isso ele é desses que não morrem nunca. Maurice está definitivamente incorporado a
Santos. Seu nome é sinônimo de cinema e ele permanecerá vivo em tudo o que, daqui para a frente, for realizado pela arte santista. De preferência,
saudado com uma boa gargalhada.
(*) Ana Maria Sachetto é jornalista.
Para ele, cinema era a arte completa, sonho e realidade, técnica e divertimento,
enfim a grande maravilha
Foto: Carlos Marques/Arquivo
Um lutador a menos
Gilberto Mendes (*)
Colaborador
Maurice Armand Marius Légeard, que romântico e poético
nome tinha nosso velho Maurice, agora morto. A primeira sensação é a da perda de um amigo muito especial. Depois, o vazio deixado, um lutador a
menos neste final de século melancólico, em que as forças tenebrosas, provincianas e reacionárias, parecem estar retornando a todo vapor, em todo o
mundo.
Maurice foi o caso raro de uma pessoa que conquistou o amor, a admiração de toda uma
cidade, a nossa Cidade, sendo absolutamente como ele era, sem papas na língua, sem concessões, dizendo o que pensava, doesse a quem doesse. Cinema
de arte foi sua paixão, sua atividade. Mas, acima de tudo, ele ensinava através dessa atividade a justiça social, o companheirismo.
Coisas que não contam mais, consideradas pieguices neste fim de milênio cruel, cínico
e profundamente injusto. Maurice foi participante, interessado nas coisas até o último momento, sem nunca se queixar do seu sofrimento. Que belo
exemplo de vida e de morte.
(*) Gilberto Mendes é maestro e compositor
Irritante guerreiro
Narciso de Andrade (*)
Colaborador
Guerreiro. Desafiador. Irritante. Incorruptível.
Independente.
Na morna paisagem cultural da cidade surgia sempre como um grande provocador.
Imprescindível. Não hesitava em comprar briga até com amigos, em defesa de suas idéias. Inflexível. Teimoso. Irritante.
Rara criatura, capaz de viver (como viveu) para um sonho e um ideal. Uma vida inteira.
Se chamava Maurice, era francês mas virou santista, com muita raiva e muito amor.
Nos entendemos e nos desentendemos durante mais de 40 anos. Era uma questão de
preservar a liberdade e a independência de pensamento de cada um.
De difícil acesso em sua integral e profunda verdade humana, acredito que era, no
fundo, um menino valente e sonhador.
(*) Narciso de Andrade é poeta. |