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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - ESTRADAS
Via Anchieta

pelo Engº Paulo Dutra da Silva (*)

Em 22 de abril de 1947, engalanou-se a terra de Piratininga para entrar na posse de uma das suas maiores realizações: a Via Anchieta, numa de suas pistas projetadas. Chegam enfim os paulistas à penúltima etapa rodoviária para a escalada do paredão de Paranapiacaba.

Até 1553, as pirogas levaram ao Porto Velho (Piassagüera) os viajantes que demandavam os campos de Piratininga pela trilha de índios que subia pela encosta atualmente ocupada pela Santos-Jundiaí; o ataque freqüente dos silvícolas de tribos adversas levou o Padre Anchieta a construir novo caminho para galgar a Serrania Geral.

Em 1553 deu o Padre José início a essa construção com o auxílio dos seus índios; partindo de um porto no Rio Cubatão, seguiu o vale do Rio das Pedras em direção dos campos de Tibiriçá sobre este "novo caminho", que se atribui também à ordem de Mem de Sá a pedido dos padres Luiz da Gram e Manoel da Nóbrega, e que ficou pronto em 1560.

[Dele] dá uma idéia o Padre Simão de Vasconcellos, que assim descreve a viagem através da serra: "O trilho é tal que põe assombro aos que hão de subir ou descer; o mais de espaço não é caminhar, é trepar de pés e de mãos, aferrados às raízes das árvores; não é caminhando que se faz a maior parte da viagem; é de rostos sobre as mãos e os pés, agarrando-se às raízes das árvores, em meio de rochedos pontiagudos e de terríveis precipícios, que eu tremia, devo confessá-lo, quando olhava para baixo; a profundeza do vale é aterrorizante e o número de montanhas que se elevam, umas por cima das outras, faz perder toda a esperança de chegar ao fim".

No começo do século XVII já era uma via perfeitamente consolidada, principalmente no seu trecho mais perigoso, que era o da serra; por ela vão e vêm mercadores em lombos de burros, por ela sobem ao planalto os senhores ouvidores, instalados em redes conduzidas por índios, e por ela transitam depois as cadeirinhas e os banguês.

E até 1788, por quase dois séculos e meio, o Caminho do Padre José foi a salvação e o encorajamento dos paulistas. Nesse ano assumia o governo da Capitania de São Paulo o capitão-general Bernardo José de Lorena, que em 1790, apenas dois anos após, inaugurou a sua famosa Calçada do Lorena, "traçada em declives violentos, com apenas 3 m de largura e calçada de pedras", mas que veio permitir aos bandeirantes o tráfego de tropas pela serra. Tanta melhoria trouxe esta realização que dela disse um cronista estrangeiro: "Tudo nessa estrada contribui para dar uma idéia da energia dos brasileiros e das grandes empresas de que são capazes". No alto da serra foi plantado um padrão comemorativo com quatro pedras, lavradas com as seguintes inscrições:

1ª - Omnia vincit amor subditorum
2ª - Maria Regina
3ª - Neste anno de 1790
4ª - Fez-se este caminho no feliz governo do Illmo. Exmo. Sr. Bernardo José Lorena, general desta capitania; (conta o Dr. Júlio Prestes de Albuquerque, no discurso inaugural dos monumentos da serra em 1922).

Em 1836, dizia o marechal D. P. Müller no seu Quadro Estatístico da Província de São Paulo: "Como atualmente já se pode contar com o rendimento das Barreiras (a de Cubatão, no distrito da Vila de Santos etc.) que se destina a ser empregado tanto nas estradas que vão ser construídas segundo todos os preceitos da arte como seja a da Serra do Cubatão, e outra para o interior (que julgo ser a de Jundiaí como tronco de outras principais) etc." (grifo do autor Paulo Dutra).

Em 1846, meio século depois de Lorena, o Senador Vergueiro, secretário da Agricultura do presidente da Província, Almeida Torres, executa na serra um novo traçado e pela mesma diretriz, cujos melhoramentos tiveram como finalidade permitir o tráfego de carruagens e diligências; inaugurou-se com o nome de Caminho da Maioridade, para comemorar "a ascensão de D. Pedro II ao trono do Brasil".

Em 1865, dizia o Visconde de Taunay acerca da Estrada do Vergueiro: "A estrada da Serra do Cubatão tem de comprimento 2 1/2 léguas e de largura 5,50 metros em média, e é de fortíssima declividade, superior à geralmente adotada nas estradas de rodagem; seu macadame, aliás péssimo, acha-se completamente estragado. É cortada por grande número de valetas mal feitas e de grande profundidade, existindo algumas pontes-boeiros, feitas de madeira roliça, cobertas e barro e pedra; finalmente, aberta na encosta da serra, não é guarnecida como convinha, de muralha que resguarde os carros de, por quaisquer circunstâncias, se precipitarem em medonhas despenhadeiras. Para se fazerem 2 1/2 léguas, foram precisas três horas de viagem. Por muitas vezes tornou-se necessário descer das diligências para estas poderem, apesar de conduzidas por três parelhas de bestas, vencer os obstáculos que a cada passo se apresentavam. Embora melhorada pela empresa Vergueiro, está a estrada ainda bastante má, pelo que provável é o seu completo abandono depois que a estrada de ferro tiver funcionado por alguns anos mais".

"Convém acentuar que, antes desse tempo, a estrada não ia até Santos; terminava no Cubatão. Aí havia um ponto onde os passageiros tomavam um barco que, pelo rio Cubatão, os levava até o litoral. Para subir a serra, tomava-se uma das diligências de uma empresa alemã. Nesse tempo, e por esse meio de transporte, a viagem do Cubatão até São Paulo era feita em 7 horas!"

Saint Hilaire afirmou que a viagem de Santos ao Cubatão por via fluvial era lenta e dispendiosa.

Em 1896, do primeiro plano de viação de rodagem do Estado, organizado pelos engenheiros Inácio Valace da Gama Cócrane, Ricardo Alfredo Medina e Orvile A. Derbi, sendo secretário da Agricultura o dr. Álvaro de Carvalho, constam estes comentários: "Assim a estrada de Santos foi substituída em grande parte e inutilizada pela São Paulo Railway Company".

Em 1913, a Estrada do Vergueiro foi macadamizada pelo governo do Conselheiro Rodrigues Alves, atendendo às instâncias do dr. Arthur Rudge Ramos e ao apelo do dr. Washington Luiz Pereira de Souza, então presidente do Automóvel Club de São Paulo, ao dr. Paulo de Morais Barros, secretário da Agricultura, do qual destacamos estes trechos:

"...sabendo que esse veículo não é um concorrente perigoso da estrada de ferro, e é antes um auxiliar indireto, devemos concluir que fazer boas estradas, para todo o ano, que permitam o trânsito de automóveis, é um dever geral neste momento de progresso na Viação, e que é um dever particular nosso o de fazer já, macadamizada, ou por sistema eqüivalente, a estrada do Vergueiro" (grifo do autor Paulo Dutra).

O trecho Sacoman-Rio Grande ficou a cargo do Dr. Artur Rudge Ramos, que resolveu posteriormente incorporar a empresa Caminho do Mar e construir uma estrada só para automóveis em que cobrava pedágio. Do Rio Grande a Santos, foram os encargos distribuídos ao 1º Distrito de Obras Públicas do Estado.

Em 1917, os congressistas rodoviários do 1º Congresso Paulista de Estradas de Rodagem, reunido por iniciativa do governo do dr. Altino Arantes, foram a Santos já pela estrada macadamizada. Posteriormente e até 1920, o trecho compreendido entre o Alto da Serra e a cidade de Santos esteve a cargo do Estado; o trecho entre Rio Grande e Alto da Serra era conservado pela Sociedade Anônima Caminho do Mar, que já explorava comercialmente o trecho Ipiranga-Rio Grande.

Em 1922, foram as curvas da serra calçadas com lajões, e inaugurados em 7 de setembro, centenário da Independência pátria,os monumentos que imortalizaram a arte de Victor Dubugras a serviço da história rodoviária: o Cruzeiro, na baixada, na encruzilhada das estradas do Padre José e do Vergueiro; o Arco do Lorena, na encruzilhada da Calçada do Lorena com a estrada do Vergueiro, a meia serra; o Rancho da Maioridade, na tradicional curva da morte; e o Pouso do Paranapiacaba, no topo da serra. Foi também inaugurado no alto da Calçada do Lorena um monumento a este bravo e operoso capitão-general. Sobre estes monumentos, é digno de ser lido em todos os tempos o discurso inaugural proferido pelo Dr. Júlio Prestes de Albuquerque, incluído nos anais do 3º Congresso Paulista de Estradas de Rodagem.

Em 1923, foi encampado pelo Estado o Caminho do Mar, cessando a cobrança do pedágio, e passando para o governo os encargos da conservação e melhoramentos da Estrada São Paulo-Santos.

Em 1925, proximamente, surgiu o projeto D. L. Derron & L. R. Sanson, cujo traçado seguia a diretriz da SPR até o alto da serra e se desenvolvia, serra abaixo, pela encosta oposta à ocupada pela ferrovia.

Em 1925 foi inaugurada a primeira estrada de concreto brasileira e da América do Sul, no trecho de condições mais desfavoráveis que é possível, nos oito quilômetros da Serra do Mar.

Ainda em 1925, dizia o notável Teixeira Soares, em entrevista ao O Estado de São Paulo publicada em 11/11:

"Entretanto, o que em qualquer hipótese, qualquer que seja a solução adotada, não pode passar po mais tempo sem que se atenda, é dotar São Paulo de uma via de comunicação com o seu porto normal, que é Santos, tal que torne a economia e o comércio dessa Capital a coberto de emergências que possam surgir, derivadas seja de erros ou imprudências, seja de circunstâncias anormais.

"Essa via de comunicação de capacidade ilimitada será constituída pela estrada de rodagem, não a estrada de passeio ou de pequeno tráfego local, mas um tipo de estrada que já vai surgindo no estrangeiro, cobrindo a Europa e os Estados Unidos de uma vasta rede de veículos: a estrada de rodagem para tráfego intenso e pesado".

E mais adiante:

"Tecnicamente, isto se resume numa questão de pavimentação. Aí é que está o ponto principal. E note que neste particular não temos que embarcar em aventura duvidosa, em regime de ensaios. É simplesmente aproveitar a experiência alheia, comprovada pelos resultados práticos. Será uma estrada de construção dispendiosa, mas em compensação de custeio mínimo.

"Economicamente, liberta o produtor e o comerciante em qualquer momento da dependência de uma administração pública ou particular, e liberta-o também, eventualmente, das sucessivas e dispendiosas baldeações".

Em 1929, mais ou menos, os engenheiros Francisco de Paulo Camargo e Siqueira Campos lançaram uma linha pelo vale do Perequê, em conseqüência de concessão que obtiveram da Municipalidade praiana, tendo chegado a atacar o serviço a partir da raiz da serra.

Em 1934, a 13 de novembro, o diretor geral do Departamento de Estradas de Rodagem, engenheiro Álvaro de Souza Lima, em memorial apresentado ao secretário da Viação, justificava a construção da nova rodovia baseado na estatística de tráfego organizada pela Guarda Civil, terminando assim as suas considerações:

"Considerando, pois, tudo o que acima se expõe, parece aconselhável e acertado dirigir-se o governo ao conselho Consultivo para que este, atendendo a imperativos das mais altas necessidades paulistas, forneça as autorizações e os meios que habilitem o mesmo governo a: construir, pavimentando-a inteiramente, uma nova rodovia entre São Paulo e Santos, pelo traçado e com as características técnicas que estudos definitivos mostrarem mais convenientes, aproveitando no todo ou em parte a atual estrada no planalto e introduzindo no trecho atual da baixada os melhoramentos que se fizerem precisos".

Em 1935, aos 24 de maio, foi publicado o Decreto nº 7.162:

Autoriza o Poder Executivo
a construir e pavimentar
uma estrada de rodagem
entre São Paulo e Santos

O Governador do Estado de São Paulo, usando das atribuições que lhe são conferidas por lei,

considerando que na atual estrada de São Paulo a Santos já existe um tráfego de passageiros e de cargas superior ao admissível para as suas condições de traçado e pavimentação;

considerando que, sob esse regime de tráfego, as condições técnicas desfavoráveis da estrada acarretam, para o Governo, despesas de conservação de enorme vulto, e para a economia paulista uma evasão de capitais com o excesso de gastos de gasolina, pneumáticos e outros, o que ao Governo cumpre evitar;

considerando que o estabelecimento de taxas de utilização a serem pagas pelos usuários (o que é perfeitamente legal e será perfeitamente justo, pois não ultrapassarão elas de uma quota parte das economias trazidas aos mesmos usuários pela construção de uma nova estrada) proporcionará os recursos necessários ao serviço de juros e amortização das obras, para o que será obtido, pelo Governo, o preciso financiamento, realizando-se, assim, a construção sem ônus para o Tesouro, e

atendendo ao parecer nº 154 do Conselho Consultivo do Estado, DECRETA:

Art. 1º - Fica o Poder Executivo autorizado a construir e pavimentar com os recursos que obtiver mediante contrato de financiamento, uma nova rodovia entre São Paulo e Santos, de acordo com o traçado e as condições técnicas que forem julgadas mais convenientes (...)

Em 1936, aos 31 de março, foi publicado - em decorrência do Decreto 7.162 já citado - o edital de concorrência pública, baseado em estudo realizado pelo engenheiro Alexandre D'Alessandro, reavivando a linha Camargo-Siqueira Campos. Esta concorrência foi baseada nas especificações elaboradas pela Secção de Estudos e Projetos da Diretoria Técnica do D.E.R. e publicadas às fls. 474 e seguintes do DER de julho de 1936.

Em 1938, sendo diretor geral o engenheiro Antônio Ponzio Ippolito, foi reavivado na serra o estudo Derron & Sanson.

Em 1938, o engenheiro Joaquim Timóteo e Oliveira Penteado, então diretor-geral do DER, ordenou novo estudo, executado pelo engenheiro Miguel Rascio Rossi, cuja linha, acompanhando a estrada Vergueiro além dos canos da Light and Power, desenvolveu-se na tradicional encosta.

Em 1939, em maio, depois de uma série de etapas cuja justeza aqui não discutimos, surgiu a Comissão Especial de Auto Estradas, sob a direção do engenheiro Dario de Castro Bueno, da Diretoria de Obras Públicas.

A personalidade do chefe, que, além da competência, possui qualidades pessoais que são o penhor de sua vitória (inteireza de caráter, destemor, vontade firme de acertar e de vencer, confiança em si mesmo); foi essa personalidade a base da realização. Sobre ela, e na sua habilidade de escolher um estado maior de indiscutível valor, assenta-se o monumento rodoviário de São Paulo e do Brasil que é e será a Via Anchieta.

Podemos afirmar, sem receio de falsa vaidade, que São Paulo e o Brasil possuem na sua Via Anchieta, e especialmente nos seus 12 km de serra, o maior, mais notável e mais harmonioso conjunto de obras rodoviárias de toda a América; não conhecemos através da literatura do continente coisa que se lhe assemelhe.

É legítimo pois o orgulho da gente bandeirante pelo feito de seus filhos, que, no mourejar diário, na luta hercúlea para vencer a natureza, como o humílimo Padre José, o enérgico Lorena, o grande Vergueiro e o bem nosso Timóteo Penteado, puderam e souberam escrever esse poema vivo da engenharia nacional, que, antes do seu epílogo, se há de ainda desenvolver em cantos heróicos.

Em julho de 1939, sendo interventor em São Paulo o Dr. Ademar de Barros, secretário da Viação o engenheiro Guilherme Ernesto Winter, e diretor geral do DER o engenheiro Ariovaldo de Almeida Vianna, em manhã risonha e ensolarada, foi colocada no antigo 1º arco do Caminho do Mar, nas imediações da velha árvore das lágrimas, a pedra inicial da atual Via Anchieta.

(*) Este artigo do engenheiro Paulo Dutra da Silva foi publicado, com as ilustrações reproduzidas nesta página, no livro "Cubatão Ontem e Hoje - Um Marco do Desenvolvimento" (1970, Hallison Publicidade Ltda., São Paulo/SP)

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