Desenho de Hércules Florence permite ver no horizonte a Baixada Santista e, em
primeiro plano, a Calçada do Lorena: suspeita-se que o artista tenha incluído sua imagem entre os viajantes que andavam pelo caminho
Imagem publicada com a matéria
Os caminhos do mar
Da trilha aberta pelos jesuítas à Rodovia Anchieta, a história dos percursos que
levaram os paulistas até o litoral
Benedito Lima de Toledo (*)
Ao longo do primeiro século de colonização, São Paulo de
Piratininga foi o único núcleo afastado do litoral. Os descobridores presumiram que deveria haver caminhos de comunicação com o planalto, dado que,
dois dias após a chegada de Martim Afonso de Souza, os principais chefes indígenas lá estavam no litoral.
Logo se descobriu que havia uma trilha acompanhando o Rio Mogi. Esse percurso
corresponde aproximadamente ao caminho utilizado no século 19 pelos engenheiros ingleses na construção da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí. Era a
trilha de menor declividade e que atingia a Borda do Campo, num lugar denominado Paranapiacaba, que na língua dos nativos quer dizer "Lugar
de onde se vê o mar". Desse ponto, a estrada de ferro percorre um trecho praticamente plano até atingir a Estação da Luz.
Quando os jesuítas chegaram ao litoral, decidiram fundar um núcleo serra acima.
Guiados por André Ramalho, filho de João Ramalho, acabaram por optar por uma acrópole cercada pelos Rios Piratininga (Tamanduateí) e Anhangabaú.
Nos primeiros tempos, utilizavam a trilha do Rio Mogi, mas a proximidade de tribos
hostis levou-os a cogitar a abertura de uma nova trilha, afastada daquele rio. Foi escolhido o Vale do Perequê e o Padre José de Anchieta, muito
jovem ainda, presidiu a abertura dessa nova trilha, que passou à história como Caminho do Padre José. As empresas levadas a cabo por esse jesuíta
contradizem a idéia de que teria saúde frágil.
A trilha só permitia trânsito em fila indiana e as cargas eram carregadas nos ombros
de índios. Os doentes eram levados em redes, pelos mesmos portadores. O caminho era tido como um dos "piores do mundo", onde se subia "agarrando-se
às raízes das árvores", no dizer de um cronista da época.
Ao tempo do Morgado de Mateus, foi necessário melhorar o caminho e uma das razões foi
a necessidade de transportar a artilharia para o Forte de Iguatemi. Foram construídas pequenas pontes, realizados cortes e aterros, muros de arrimo
e, no planalto, uma estrada de troncos.
Caminho do Padre José: estrada de troncos no planalto
tornou mais fácil transporte de artilharia para forte
Foto: Benedito Lima de Toledo, publicada com a matéria
Em 1979, organizei com uma equipe uma pesquisa tentando balizar o antigo caminho.
Conjugando expedições por terra com foto-interpretação, depois de muitas entradas foi possível encontrar muros de arrimo, cortes e aterros,
vestígios de pontes e da estrada de troncos. Resultado dessa pesquisa foi publicado no Jornal da Tarde (7/5/80 e 24/6/80). Em conclusão, foi
demarcado o traçado do Caminho do Padre José, com lacunas decorrentes de escorregamentos que ocorrem na serra.
Há no Cubatão um monumento batizado como Cruzeiro Quinhentista, denominação alegórica
de uma obra edificada em 1922. O monumento assinala o ponto de convergência dos caminhos antigos que desciam a serra. O cruzeiro recebeu "restaurações
desastrosas". Numa delas, foram quebrados os azulejos originais para substituir por outros "novos".
Passando pelo local, nessa ocasião, pude resgatar, em meio ao entulho, um fragmento
retratando, precisamente, o rosto do Padre Anchieta. O Caminho do Padre José, mesmo após as melhorias introduzidas ao tempo do Morgado de Mateus,
tornara-se insuficiente e impraticável em épocas de grandes chuvas.
Bernardo José de Lorena, que governou a Capitania de São Paulo entre 1788 e 17798,
chegou a São Paulo acompanhado de oficiais do Real Corpo de Engenheiros. Esses oficiais vieram originalmente ao Brasil com a missão de realizar
trabalhos cartográficos, visando a dar cumprimento ao Tratado de Santo Ildefonso, celebrado entre Portugal e Espanha, em 1777. Não sendo necessária
sua presença naquelas operações, Lorena encarregou-os de obras em sua capitania. Uma delas, a construção de uma estrada entre Cubatão e São Paulo
que permitisse o tráfego regular de tropas de muares.
Baseados nos levantamentos cartográficos pioneiros que então realizaram, os oficiais
optaram para abertura do novo caminho por um contraforte divisor de águas entre o vale dos Rios das Pedras e do Perequê. Da acentuada declividade do
terreno resultou um traçado em ziguezague com 180 ângulos e, o que é surpreendente, sem cortar um único curso d'água, em plena Serra do Mar. Com
isso, evitou-se a construção de pontes, obra de difícil manutenção naquele clima. A maior inovação, todavia, foi a pavimentação em pedra, trazida de
longas distâncias, talvez das pedreiras de São Bento, em Santos.
A obra foi saudada pelos viajantes como a "melhor do País e como ela poucas eram
vistas na Europa". O beneditino Frei Gaspar da Madre de Deus, que percorrera o antigo caminho entre Santos e São Paulo seis vezes, ou seja, dez
vezes o percurso, descreve-o com pormenores apavorantes e conclui "enfim um passo laboriosíssimo, uma série contínua de perigos, foi a serra noutro
tempo". Já o novo trajeto era "uma ladeira espaçosa, calçada de pedras, por onde se sobe com pouca fadiga, e se desce com segurança". Informação
notável para o monge que andava pelos 80 anos.
Pesquisa que integrou tese de doutorado reconstituiu o traçado da Calçada do Lorena
Foto: Benedito Lima de Toledo, publicada com a matéria
A obra ficou conhecida como Calçada do Lorena. Essa invulgar obra da engenharia
colonial esteve, por muitas vezes, perdida em meio à vegetação da Serra do Mar. Depois de alguns anos de pesquisa, pude, trecho por trecho,
reencontrar e reconstituir seu traçado, pesquisa que integrou minha tese de doutoramento (O Real Corpo de Engenheiros na Capitania de São Paulo,
de 1973).
A Câmara de São Paulo fez erigir um monumento, em 1790, com uma lápide, em homenagem a
Lorena, em sinal de gratidão e reconhecimento por suas obras. O Capitão General transferiu a homenagem à rainha mandando afixar outra onde se lia a
inscrição "Omnia vincit amor subditorum". Essas lápides foram localizadas por Washington Luís em 1920 e colocadas no monumento conhecido como
Padrão do Lorena no Caminho do Mar.
A calçada permitiu o trânsito de tropas de muares e abriu uma via de exportação para o
açúcar produzido no chamado "quadrilátero açucareiro". Essa via, a melhor do País em seu tempo, foi utilizada pelo príncipe d. Pedro na
memorável jornada de 7 de Setembro. A Calçada do Lorena é a Estrada da Independência.
Gravura de Charles Landseer retrata tropeiro com sua carga na Calçada do Lorena
Imagem publicada com a matéria
Iconografia - Charles Landseer e William John Burchell, exímios desenhistas
ingleses que andaram por aqui em 1825 integrando a missão de Sir Charles Stuart, nos legaram magníficos desenhos retratando o novo caminho e seus
usuários, os tropeiros. Hércules Florence realizou um desenho que permite ver no horizonte a Baixada Santista e, em primeiro plano, a calçada e os
viajantes, entre eles, talvez, o próprio artista.
Padrão do Lorena, no caminho do Mar: lápides foram encontradas em 1920
Foto: Benedito Lima de Toledo, publicada com a matéria
A estrada da maioridade - Em 1836, o marechal do Corpo de Engenheiros Daniel
Pedro Müller foi encarregado de "formar o plano de uma estrada de carro desde o Cubatão de Santos até as povoações mais consideráveis que ali
exportam seus produtos".
Foi na administração de Rafael Tobias de Aguiar, em 1841, que ficou em condições de
tráfego, sob orientação de João Bloem. A estrada tinha 20 palmos de largura e o trecho de serra, 3.580 braças (cerca de 7.876 metros).
Em 1846, d. Pedro II e d. Teresa Cristina chegaram a Santos a 18 de fevereiro e
subiram a São Paulo a 25, acompanhados de grande comitiva. Em homenagem aos insignes visitantes, a nova via foi batizada como Estrada da Maioridade.
Os reverendos Kidder e Fletcher editaram, em 1857, a obra Brazil and the Brazilians,
que se tornou um clássico. Nessa obra utilizaram "daguerreotipes views taken on the spot". Uma gravura intitulada
The bridge and Serra do Cubatão (sic) mostra a ponte coberta construída pelos jesuítas sobre o Rio Cubatão e a serra ao fundo. São vistos dois
caminhos. Um quase a prumo, que os autores informaram ser o caminho feito pelos jesuítas - que, na verdade, pela posição, é a Calçada do Lorena,
imprecisamente representada -, e o outro é a Estrada da Maioridade, que esses viajantes iriam palmilhar. Sem dúvida, trata-se de um valioso
documento iconográfico.
Placa comemora os 30 anos da primeira viagem de carro
Foto: Benedito Lima de Toledo, publicada com a matéria
Vergueiro - Assumindo a presidência da província em 1862, Vicente Pires da
Motta entregava a José Vergueiro a direção e a administração da estrada para Santos. O novo administrador realizou extensas obras de melhoria como
cortes, aterros, pontes, muros de contenção e regularização da declividade.
Vergueiro elaborou um novo traçado entre a cidade e o Alto da Serra, que se iniciava
no Largo da Pólvora, no centro de São Paulo. Entre esse largo e a baixada, a estrada passou a ser conhecida como Estrada do Vergueiro. A atual Rua
Vergueiro é um remanescente dessa época, bem como o trecho da estrada que restou próximo à Via Anchieta.
Viaduto no trecho de serra da estrada de ferro Santos-Jundiaí, inaugurada em 1867
Foto: Arquivo, publicada com a matéria
Ferrovia - A 16 de fevereiro de 1867 era entregue ao tráfego a Estrada de Ferro
de Santos-Jundiaí, obra que exigiu notáveis trabalhos de engenharia no trecho de serra e que causou uma verdadeira revolução na economia e nos
costumes paulistas. Com a ferrovia, a Estrada do Vergueiro conheceu progressivo abandono. O aterro na baixada entre o Rio Cubatão e Santos foi
cedido à estrada de ferro. Dessa forma, a estrada ficou quase inutilizada.
Nem por isso desanimaram os tropeiros que gozavam da confiança dos paulistas e que,
com suas tarifas, concorreram durante muito tempo com a ferrovia.
O presidente do Estado, Washington Luís, na estrada
Foto: Arquivo, publicada com a matéria
A era automobilística - A primeira viagem de automóvel entre São Paulo e Santos
foi empreendida nos dias 16 e 17 de abril de 1908. Os carros eram um Motobloc francês e um Sizaire et Naudin, veículos de rodas altas que deixavam o
chassi elevado do chão.
A façanha foi realizada por António Prado, Clóvis Glicério, Mário Cardim, repórter do
Estado, Bento Canabarro e o motorista Malle. A viagem durou 37 horas. A situação da estrada era precária, o leito quase totalmente destruído
pela enxurrada. Essa situação só iria melhorar em 1913, quando Rudge Ramos resolve fundar uma empresa destinada a construir uma estrada entre São
Paulo e o Alto da Serra. O empreendimento seria financiado com cobrança de pedágio. A estrada passou a ser denominada Caminho do Mar.
Nesse ano, o Conselheiro Rodrigues Alves mandou macadamizar o trecho de serra.
Iniciava-se, então, a era automobilística. Multiplicavam-se os "raides" promovidos pelos aficcionados do novo esporte. Um deles, Washington
Luís - presidente do Estado -, cujo lema era "Governar é abrir estradas".
Por ocasião do Centenário da Independência, Washington Luís resolveu empreender obras
significativas para comemorar o evento. Na capital, manda erigir o conjunto da Ladeira da Memória, no entorno do Obelisco, que assinala o ponto
inicial da Estrada para Sorocaba (Rua da Consolação). Na Serra do Mar promove a construção do conjunto de monumentos ao longo do Caminho do Mar que
evocam fases da conquista do planalto. Para projetar essas relevantes obras, convoca Dubugras, o mais original arquiteto de seu tempo em São Paulo.
O primeiro monumento que o viajante encontra no início da descida, no ponto onde pela
primeira vez se avista o mar, recebeu o nome de Pouso de Paranapiacaba - lugar de onde se avista o mar, na linguagem dos naturais, como já foi dito.
A viagem de Pedro II é evocada em outro monumento, o Rancho da Maioridade. O Padrão do
Lorena e o Pouso Circular situam-se em pontos onde o Caminho do Mar corta a antiga Calçada do Lorena. No Padrão do Lorena estão afixadas as placas
em homenagem a Lorena reencontradas na Serra por Washington Luís em suas andanças.
Na baixada foi edificado o conjunto do Cruzeiro Quinhentista, constituído por um
núcleo central onde se eleva uma cruz de granito, envolta por bancos de pedra que ambientam e protegem o monumento.
No ponto mais alto da Calçada do Lorena foi erigido o Monumento do Pico, um monolito
visível do Cubatão em dias de sol, obra do prefeito Firmiano de Moraes Pinto (1922). Essas obras não eram apenas evocativas. Serviam de ponto de
apoio aos destemidos viajantes. Dispunham de fácil acesso a bicas de água para arrefecer os motores.
O Rancho da Maioridade contava com garagem, oficina para pequenos reparos e acomodação
para eventual pernoite. No Pouso de Paranapiacaba havia um restaurante com excepcional vista para a Serra do Mar e varanda à volta para os dias de
sol.
Esses pousos foram edificados em pontos privilegiados da paisagem e construídos em
granito com largos beirais e painéis de azulejos, de autoria de J. Wasth Rodrigues, que narram momentos decisivos da história dos Caminhos do Mar.
Esses materiais são extremamente adequados ao clima imprevisível da serra. Foi o momento em que o governo do Estado deu grande apoio à história de
São Paulo.
|
Governo deveria proteger região
|
|
Pavimentação - Alguns anos depois, o Caminho do Mar foi contemplado com uma
técnica pioneira: o uso de concreto no pavimento. Uma placa de bronze, colocada em um pontilhão na raiz da serra, ostenta os dizeres: "1926 -
Primeira estrada de rodagem brasileira revestida com concreto."
A estrada suportou, por muitos anos, o trânsito de todo tipo de veículo, incluindo
caminhões, até a construção da Via Anchieta. A partir de então, foi sendo gradativamente abandonada pela administração pública, até chegar ao
presente estado próximo à ruína.
Medalhão de Bernardo José Maria de Lorena
Foto: Benedito Lima de Toledo, publicada com a matéria
Patrimônio natural - As condições especiais da topografia da região e o seu
relativo isolamento pelas águas da represa possibilitaram a conservação de um recobrimento vegetal, que constitui uma reserva cujo significado deve
ser ressaltado.
Pelos seus extraordinários recursos naturais, a região compreendida entre os quatro
rios - o Rio Perequê e o Rio das Pedras, que descem a Serra, o Cubatão, na baixada, e o reservatório do Rio das Pedras, no planalto - deveria ser
enfatizada e protegida como reserva natural pelo governo do Estado de São Paulo, sem prejuízo da posterior extensão desse benefício à área
compreendida entre o Rio Pilões, em cujo vale se desenvolve a Via Anchieta, e o Rio Mogi, em cujas proximidades se instala a Estrada de Ferro
Santos-Jundiaí.
Essa região tão rica em evocações históricas deveria constituir uma área reservada aos
estudos geológicos, de flora e da fauna, constituindo um autêntico museu ao ar livre onde a população poderia se encontrar com nossa história,
narrada na paisagem e nos monumentos.
(*) Benedito Lima de Toledo é professor titular de
Históia da Arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP)
Anchieta em azulejo do Cruzeiro Quinhentista
Foto: Benedito Lima de Toledo, publicada com a matéria
|