Em
1962, foi publicado em Sorocaba/SP este livro de 200 páginas (exemplar no acervo do historiador santista Waldir Rueda), composto e impresso nas
Oficinas Gráficas da Editora Cupolo Ltda., da capital paulista (ortografia atualizada nesta transcrição):
Pequeno histórico da Mayrink-Santos
Meus serviços prestados a essa linha entre Mayrink e Samaritá
Antonio Francisco Gaspar
[...]
2ª PARTE - ESTUDOS E CONSTRUÇÃO
XXIII - Chuvas e trovoadas
Um dos fatores que muito concorreram amiudadamente para serem um tanto morosas as
obras de construção da Mayrink-Santos, foram as copiosas chuvas que caíam, durante muitas vezes semanas inteiras, e eram quase sempre acompanhadas
de trovões e raios, cujos ribombos iam perder-se nas profundas e íngremes grotas dos alcantis das enormes montanhas, que formam a Serra do Mar, vale
do rio Cubatão e encosta dos morros Chapéu, Pae Mathias, Mãe Maria e outros, onde por intrépidos engenheiros
brasileiros foi estudada e construída essa importante via férrea de simples aderência rumo a Santos.
O traçado, Rio dos Campos na altitude de 741 metros acima do nível do oceano
Atlântico, quilômetro 70, desce suavemente até Samaritá, altitude 6 metros, quilômetro 19 da linha Santos a Juquiá. São 36 quilômetros, divididos
entre 6 estações, e nesse trecho há 27 túneis, 24 viadutos e pontes, e inúmeros muros de arrimo.
É uma delícia avistar-se ao longe o mar. Magnífico panorama descortina-se frente aos
olhos dos que por ali viajam. A grandiosa serra, os vales, as cascatas, as ilhas Queimada Pequena, Queimada Grande, Alcatrazes, tudo enfim os nossos
olhos contemplam, extasiados ante a natureza abrupta daqueles recônditos rincões. E o comboio vai descendo em suave carreira, tendo por maquinista
um homem resoluto que, com a mão firme no regulador da locomotiva, prevenido, não faz com o trem desembalado corra pela serra abaixo.
Seus viajantes e turistas vão contemplando aqueles panoramas belíssimos e depois da
virada do morro Mãe Maria, aparecem: a dupla via Anchieta, as obras da Light, o
oleoduto, as baixadas de Cubatão, as planícies santista e de São Vicente,
cortadas pelos inúmeros canais dos rios Cubatão e Rio Branco e, brevemente, pela Rodagem que, da via Anchieta vai ter à
cidade Ocean (Pedro Taques).
Atualmente é uma maravilha esse tão falado e arrojado empreendimento, a linha
Mayrink-Santos. Mas, lá por 1928 a 1940, foi um tour de force para ser conseguida a sua realização, lado a lado de ignotos despenhadeiros.
Foi nessa época que eu ali ia, quando era preciso instalar telefones e aparelhos telegráficos. As turmas telegráficas avançavam com os postes e fios
e quando chegavam nas esplanadas das futuras estações, lá ia o Gaspar instalar em vagões usados o indispensável telégrafo e telefones.
O guarda-fios Gaspar diz - Olhem em que estado fiquei. Sim senhor!... Em 15-2-1934
Imagem e legenda reproduzidas do livro
Muitas ocasiões, no tempo das águas, trabalhava-se sempre com as roupas molhadas.
Eu não tenho queixa desses momentos que ali passei, debaixo de formidáveis aguaceiros.
Nunca fiquei doente, gripado ou constipado. Levava sempre Cafiaspirina (hoje Melhoral).
Sobre mosquitos (borrachudos e pernilongos), também, não tenho que dizer, pois eles
nunca me assaltaram. Eu tinha uma arma terrível contra esses insetos... Os charutinhos de Santa Catarina os afugentavam de perto de minha
pessoa. Fumava sempre, porém não tragava a fumaça. Possuía comigo três a quatro maços desses charutinhos, que os meus colegas os taxaram de "mata-mosquitos,
quebra-peito etc."
Um engenheiro, uma ocasião, me pediu um charuto e eu disse-lhe que só fumava "mata
mosquitos". Dei-lhe o tal charutinho e ele gostou.
Esse boníssimo engenheiro, quando me via pela Mayrink-Santos, perguntava-me: - "Trouxe
os mata-mosquitos, sr. Gaspar?" E, eu lhe oferecia alguns. Ele se deliciava.
Os "borrachudos" perto de mim não ficavam, iam picar o meu ajudante que não
fumava. Até a hora do almoço, meio-dia, às vezes eu havia queimado dez charutinhos.
Falemos agora das chuvas.
Certa ocasião chovia a cântaros. Eu sempre levava uma mala com roupas e botina, para
trocar quando fosse preciso. De madrugada embarquei num trem de lastro em Rio dos Campos e chegamos debaixo de chuva em M'Boy-Guassu. O pessoal do
avançamento, acampado naquele local, já havia almoçado. Eu estava com fome. Era meio-dia. O fogão da cozinha da turma do feitor Louro estava ainda
aceso.
Fui numa vendinha que atrás da esplanada da estação estava aberta e tinha de tudo.
Comprei 200 gramas de bacalhau, 300 gramas de macarrão, umas batatas, cebola, alho, gordura e um tanto de sal. Voltei à cozinha da turma. Emprestei
1 caldeirão de um trabalhador e em 40 minutos fiz uma suculenta sopa com os ingredientes que havia comprado.
O trem de lastro já ali não estava. Tinha partido para o acampamento do túnel 32, obra
do sr. José Giorgi.
A chuva não passava e eu sempre disposto, depois que ingeri aquela tão saborosa sopa
de bacalhau com batatas e macarrão, saí a pé com minha inseparável mala e pelo leito da via férrea regressei até encontrar com a turma telegráfica
do feitor Joaquim de Almeida, que estava com os vagões de materiais e dormitório, próximo à ponte.
Ia tomando chuva. Estava todinho molhado, em sopa. A certo ponto dos matos marginais,
senti que as minhas botinas já não agüentavam a caminhada. Estavam com as solas a se despregarem das gáspeas.
Então, como sempre eu não deixava de trazer na mala a minha Kodak, parei, abri a mala
e retirei dela o sobressalente par de botinas e a máquina fotográfica. Descalcei as velhas botinas e calcei as novas. Eu estava só naquele ermo
lugar. Fiz as botinas velhas fazerem pose e com minha Kodak fotografei-as e joguei-as para o meio do matagal. Continuei a viagem e às 17 horas,
ainda com chuva, achava-me com os meus amigos no vagão, onde, cansado, depois de comer alguma coisa, ali pernoitei.
Onde o guarda-fios Gaspar perdeu as botas.
Trecho entre Rio dos Monos e Rio dos Campos em 15-2-1934
Imagem e legenda reproduzidas do livro
Este episódio deu-se a 16 de janeiro de 1934. Batizei esse lugar com o epíteto: "Onde
o guarda-fios Gaspar perdeu as botas". Passados alguns anos, em 1940, passei por ali novamente a pé e quis ver se encontrava os "restos mortais" das
minhas botinas. E encontrei. Pobres botinas! Onde hoje, 1962, andarão elas? Sumiram. Acabaram. Era uma vez umas botinas...
Sobre as trovoadas na serra, lembro-me de uma espantosa tempestade que caiu sobre a
residência e escritório do dr. Nahúl Benévolo e por todo o acampamento desse setor, no dia 7 de fevereiro de 1935.
Em frente à residência desse engenheiro existia um tablado seguro por quatro postes de
guarantã, onde em cima dessa mesa estava instalado um grande transformador de 6.600 volts que transformava a corrente elétrica para 220 e 110 volts,
com o fim de acionar betoneiras e dar luz às casas.
Eu tinha ido a essa 2ª seção de construção da Mayrink-Santos, instalar dois telefones.
Era meio-dia. De repente, sem se esperar, começou a chover copiosamente. Relâmpagos e trovões fortíssimos fizeram-se ouvir. Fechou-se as janelas e
portas, acendeu-se as lâmpadas.
A tempestade aumentava. Estávamos todos apreensivos. A cozinheira veio apressada da
cozinha parar no escritório, estava transida de medo pelos ribombos dos canhões etérios em plena tempestade. Um formidável estouro ouviu-se.
Apagaram-se as luzes. Ficamos no escuro. A cozinheira tremia de medo e nós também estávamos inquietos com essa anormal intempérie. Depois de 20
minutos, o tempo acalmou. Eram 12 horas e 30 minutos. Terminou a tempestade. Abrimos uma das janelas e qual não foi nosso espanto!...
O poste dos fios de alta tensão que sustinham os fusíveis primários, estavam queimados
e caídos no chão. Outros postes, fios e o tablado com o transformador de 6.600 volts, enfim, tudo estava desmantelado. Da janela do escritório,
observávamos todos esses estragos. O transformador tinha derretido, estava reduzido a nada.
A torrencial chuva estragou também grande parte da estradinha de rodagem, a cargo do
engenheiro sr. Antônio Duarte.
A destruição era grande. O dr. Nahúl Benévolo enviou um camarada a cavalo, avisar a
Companhia Civil em Santos, sobre o que houve, com o fim, ainda, naquela noite, ficar restabelecida a força e luz.
Imediatamente veio de Cubatão o pessoal da City com novo
transformador e materiais e na mesma tarde desse dia ficou tudo restabelecido, em ordem. À noite tínhamos novamente luz.
Nunca vi um estrago tão grande como esse dessa ocasião, quando ia e estive na Serra. O
dr. Nahúl dizia que estava, há bom tempo, acostumado com as tempestades e chuvas na linha Mayrink-Santos. E, por aí, muitas outras vezes, quando a
serviço eu percorria a Serra, tomei grossas e fracas chuvas pelos ombros e andava todo encharcado por aqueles ínvios caminhos, sem trocar a roupa do
corpo.
Este acontecimento, deu-se em 7 de fevereiro de 1935. Pousei no acampamento do dr.
Afonso Bauer, cômodo do sr. Ideval Carvalho, bons amigos hospitaleiros, que jamais os esquecerei, pelo acolhimento que me dispensaram. No dia
seguinte desci do S.5 até Cubatão, pois o caminhão em que eu viajava não tinha ordem de ir até Santos. Sabendo que o amigo sr. José Kerr era chefe
da casa de força da Light, aproveitei a ocasião e pela estrada de rodagem dirigi-me para a tão falada usina elétrica.
Pelo caminho, ia a passo de passeio, quando sem esperar cai uma grossa pancada de água
e, sem capa e guarda-chuva, fiquei molhado até os ossos. Minha caderneta de identidade, papéis e passe-livre da Sorocabana, ficaram também molhados,
pois não tinha onde me esonder. Apressei o passo e cheguei na guarita que ficava ao lado do portão dos domínios da Light. Falei com o guarda-portão.
Disse-lhe quem era. Queria visitar o sr. José Kerr.
Pelo telefone da guarita, o guarda comunicou-se com o escritório e falou com o chefe,
contando que Antônio Francisco Gaspar ali estava e pedia para visitá-lo. O sr. Kerr deu ordem para que eu entrasse. Andei um bom pedaço para chegar
à casa de força. O amigo José Kerr veio me receber à porta e levou-me para dentro do edifício. Estava admirado de me ver e ir debaixo de chuva
visitá-lo.
- São cavacos do ofício. Estou acostumado -, disse-lhe.
- Como é que você está aqui? E desse jeito, todo molhado, Gaspar?
- Eu estava na Mayrink-Santos e passando hoje por Cubatão, resolvi te visitar, José.
No interior da casa de força, passeando, enxugou-se minha roupa no corpo. A caderneta
e os papéis também enxugaram. Despedi-me do amigo Kerr e tomei um ônibus que passava para Santos e fui pernoitar em São Vicente, residência do sr.
Antônio Leite, chefe da estação. No dia seguinte, pela S.P.R., rumei para São Paulo.
Seria longo descrever todas as chuvas e trovoadas que houve na grandiosa linha
Mayrink-Santos.
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