O caminho das praias para o Planalto No século 16, vir da Baixada santista para São Paulo era uma aventura, mesmo para os
aventureiros que chegavam à costa. Foi um longo caminho até a aventura de hoje dos congestionamentos da Anchieta e Imigrantes
José Alfredo Vidigal Pontes (*)
Quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? Esta dúvida pode ser transferida para a origem das cidades de São Paulo, Santos e São Vicente. É certo que a primeira
cidade paulista elevada à categoria de vila foi São Vicente (também a primeira do Brasil), em 1532. Santos ganharia esta denominação em 1545 e São Paulo somente em 1560. Deste ponto de vista não há dúvida sobre o pioneirismo de São Vicente. Mas se
o critério for a aglomeração humana, ou seja, a maior concentração de habitantes em um mesmo lugar, o quadro muda.
No Caminho do Mar, inaugurado por D. Pedro II, grupo do Rali de 1917
A vila de São Vicente foi fundada em um local onde já havia uma pequena ruela com algumas casas de pessoas envolvidas com o movimento do porto de Tumiaru, no canal, próximo à Ponte Pênsil. Neste local, desde 1510,
escravos índios capturados pelos tupiniquins (N.E.: veja nota no final da página) no Planalto de Piratininga eram trazidos para serem trocados por mercadorias com os portugueses. Dois portugueses,
João Ramalho e Antônio Rodrigues, eram os mediadores. Casados com filhas de caciques da região do Campo de Piratininga, onde mais tarde seria fundada a cidade de São Paulo, estavam no Brasil há muito tempo, talvez náufragos ou degredados por
crimes.
A existência do porto se dava em função dos escravos trazidos do planalto. Os tupiniquins, embora dominassem a costa de Boiçucanga até Cananéia, estavam mais concentrados na região de Piratininga, antigo nome do
Rio Tamanduateí. A aldeia de Tibiriçá, principal cacique dos tupiniquins, ficava em um ponto entre os atuais Jardim da Luz e Mercado Municipal em São Paulo. Ao contrário de hoje, a preferência pelo litoral era no inverno, quando a pesca em
Piratininga era mais escassa. Desciam a serra para caçar, catar mariscos e ostras e pescar tainhas durante a desova (agosto).
Calçada do Lorena: primeira estrada brasileira projetada,
comportava tropas de até 300 mulas entre a Baixada e São Paulo
Foto: Sebastião Moreira/AE
Assim, a atividade dos habitantes do planalto era complementada com a negociação no porto - e a caça e pesca em junho, julho e agosto. Esta relação interdependente entre Piratininga e Tumiaru nos primeiros momentos
da colonização européia irá se transformar com o tempo na relação São Paulo/São Vicente, depois São Paulo/Santos e hoje em dia Grande São Paulo/Baixada Santista.
Dada a proximidade geográfica, a integração econômica e a diversidade das ligações interurbanas, pode-se dizer que a Grande São Paulo e a Baixada Santista formam o maior complexo metropolitano do planeta. Apesar
dos oitocentos metros de altitude da Serra do Mar, planalto e litoral estão unidos por quatro estradas de rodagem e duas de ferro: as rodovias Imigrantes, Anchieta, Caminho do Mar e Mogi-Bertioga; e
as ferrovias Santos-Jundiaí e Sorocabana.
Rio Pinheiros, em 1930, ainda com suas curvas
Foto: Arquivo Eletropaulo
No bairro do Jabaquara, em São Paulo, há um terminal exclusivo de ônibus para a Baixada, integrado ao metrô, pelo qual passam diariamente milhares de pessoas, muitas delas morando em São Paulo e trabalhando em
Santos e vice-versa. A maior parte da torcida do Santos F.C. está na cidade de São Paulo, onde o clube costuma mandar seus jogos em grandes decisões.
Entretanto, nem sempre a comunicação terrestre foi fácil assim. Quem hoje está incomodado com os congestionamentos dos fins de semana talvez se console com este depoimento do padre Anchieta sobre a subida da serra
no século 16:
"Vão lá por umas serras tão altas que dificultosamente podem subir nenhuns animais, e os homens sobem com trabalho e às vezes de gatinhas por não despenharem-se, e por ser o caminho tão mal e
ter ruim serventia padecem os moradores e os nossos grandes trabalhos".
Nesta época, o viajante que quisesse ir de São Vicente ou Santos para Piratininga, ia de barco pelos canais até o sopé da Serra. Aí abriam-se dois caminhos: mais ao Norte havia a subida a partir de Piaçagüera
(porto velho) em direção ao vale do Rio Mogi, e o outro ia até o porto de Santa Cruz na encosta da serra e daí para o vale do Rio Perequê.
Rio Tamanduateí no fim do século 19: entrada da cidade
Foto: arquivo/AE
O caminho mais ao Norte, pelo vale do Rio Mogi, era o mais usado pelos tupiniquins e pelos portugueses. Entretanto, a partir da fundação da cidade de São Paulo, em 1554, os tamoios, inimigos dos portugueses e dos
tupiniquins que ocupavam o vale do Paraíba e o litoral Norte, começaram a atacar os viajantes. A situação se agravou ainda mais quando Piquerobi, irmão de Tibiriçá, cacique da aldeia de Ururaí (próxima ao local onde hoje está São Miguel Paulista),
rompeu com os portugueses e com o irmão, e se aliou aos antigos inimigos tamoios na sua guerra frontal aos colonizadores.
A partir daí, passa a ser mais utilizada a trilha pelo Rio Perequê, a qual havia sido melhorada sob a orientação do padre José de Anchieta, e mesmo modificada em alguns trechos do planalto. Além da subida da Serra
do Mar, havia outras dificuldades nessa rota, chamada de Caminho do Padre José. Depois de dois dias de viagem e uma vez alcançado o planalto, o viajante, já inchado pelas picadas dos borrachudos do vale do Rio da Pedras,
tinha de enfrentar os mosquitos dos brejos do vale do Rio Pequeno e do Rio Grande (Pinheiros), verdadeiros pântanos, hoje inundados pelas águas da Billings.
Aí havia duas opções: atravessar os pântanos e chegar ao vale do Tamanduateí por terra, ou tomar um barco no Rio Pequeno rumo à sua foz no Pinheiros e por este seguir em direção à confluência com o Tietê. Típico
rio de planície, com declividade quase imperceptível, o Rio Pinheiros tinha uma sinuosidade estupenda, sombreado por uma densa mata de galeria, com remansos margeados por praias de areia branca. Na mata havia uma grande quantidade de palmeiras
chamadas jerivás, explicando a origem de seu nome tupiniquim: Jeribatiba, ou muitos jerivás. No inverno, durante a estiagem, as águas recuavam e o leito se estreitava, deixando ao longo das várzeas pequenas lagoas em forma de ferradura formadas
pela segmentação dos meandros.
Ladeira Porto Geral (em 1912): o rio chegava até ali
Foto: Arquivo/AE
Essa rota fluvial tinha três alternativas, que dependiam das circunstâncias. As cargas muito pesadas eram carregadas por escravos índios na subida da serra e em seguida colocadas em barcos no Jeribatiba (Pinheiros
ou Grande). Entrava-se no Tietê rio acima até a foz do Tamanduateí. Alguns desembarcavam no primeiro porto, na Ponte Pequena, e a maioria prosseguia até o Porto Geral, no mesmo local onde hoje se cruza a ladeira do mesmo nome com a Rua 25 de Março.
Acontece que o curso original do Tamanduateí foi modificado no século passado [N.E.: século XIX], pois passava tortuosamente beirando a colina do Colégio e não onde está hoje no Parque D. Pedro II, canalizado e
retificado.
Durante a estiagem de inverno havia duas alternativas que se tornavam viáveis devido à redução dos brejos e alagadiços. Uma era o desembarque em Virapoeira, ou Ibirapuera, no atual bairro de Santo Amaro, próximo à
desembocadura do Guarapiranga. A outra era a utilização do porto do aldeamento de Pinheiros, embrião do atual bairro. Ambos os caminhos eram muito usados pelos jesuítas. Dos dois pontos seguia-se por terra até a vila de São Paulo de Piratininga, na
época restrita às imediações do triângulo formado pelas ruas Direita, São Bento e XV de Novembro.
No livro clássico da historiografia brasileira, Tratados da Terra e Gente do Brasil, escrito pelo jesuíta português Fernão Cardim no início do século 17 na Bahia, consta uma interessante descrição de uma
viagem de um padre pelo Rio Pinheiros (N.E.: veja nota no final da página) até o porto de Santo Amaro. Após um dia de viagem de Santos até o sopé da serra e outro subindo a encosta em redes
carregadas por escravos índios, o jesuíta relatava depois de ter dormido no alto da serra: "Ao 3º dia navegamos todo o dia por um rio de água doce (Pinheiros),
deitados em uma canoa de casca de árvore, em a qual além do fato (a roupa, ou batina, dos padres) iam 20 pessoas; íamos voando a remos, e da borda da canoa até a água havia
meio-palmo..." A grande velocidade se explicava por estarem a favor da corrente.
Devido aos galhos atravessados no leito do rio, "era necessário guardar o rosto e olhos; porém a navegação é graciosa por o ser a embarcação e o rio muito alegre, cheio de muitas flores e
frutas, de que íamos tocando, quando a grande torrente nos deixava; chegando a peaçaba, lugar onde se desembarcam, demos logo em um campo cheio de mentrastos (hortelã silvestre); aquela noite nos agasalhou um
devoto com galinhas, leitões, muitas uvas e figos de Portugal, camarinhas brancas e pretas e umas frutas amarelas do tamanho e feição de cerejas, mas não têm os pés compridos. Ao dia seguinte vieram os principais da vila (São Paulo), a três léguas, receber o padre". Ou seja, no 4º dia ainda tiveram que percorrer por terra quase 20 km!
Imigrantes: a aventura hoje é diferente
Foto: Itamar Miranda/AE
Bibliografia básica
Petrone, Pasquale - O povoamento antigo e a circulação, in Baixada Santista: Aspectos Geográficos. São Paulo, Edusp, 1964.
Reis, Nestor Goulart dos - Guarujá e Faroeste e Santos e as praias, São Paulo, Jornal da
Tarde, 26/5/1990 e 30/6/1990, respectivamente.
Toledo, Benedito Lima de - O Real Corpo de Engenheiros: a obra do Eng. João da Costa Ferreira, São Paulo, João Fortes Engenharia, 1981.
(*) José Alfredo Vidigal Pontes publicou esta matéria em duas páginas no Jornal da Tarde/O Estado de São
Paulo em 19 de janeiro de 1997, caderno Domingo, como terceira parte da série História do Litoral Paulista, publicada por esse jornal paulistano.
N.E.: O pesquisador Heitor Laso Gonçalves enviou a Novo Milênio, em 27/3/2004, os seguintes comentários, corrigindo e complementando informações desta matéria:
Os Caciques Piquerobi, Tibiriçá e Cayobi eram de etnia Guaianá (Gianazes para os lusos) e não Tupiniqui (Tupiniquim).
Os escravos não vinham do planalto, mas do litoral sul, trazidos pelos Carijós de Mestre Cosme Fernandes Pessoa. Até 1532, este português (o 2º a pisar o solo brasílico) era o único governador
de Tumiarú.
Chamado de o Bacharel servia as naus com provisão, manutenção e escravos indígenas de etnia Guarani e Jê, predados pelos Carijós no litoral sul (desde a região de Santa Catarina até Cananéia).
Estes escravos eram mantidos confinados e Tapijrama (na foz do rio Itanhaém) e trabalhavam no transporte de carne moquiada dos Tupiniquis e outros víveres provenientes da Aldeia de Jerubatiba
(Santo Amaro) do Cacique Cayobi. Aliás esse era um caminho que não foi mencionado: o caminho de Piquerobi, usado para atacar São Paulo em 1562.
Heitor complementa, citando trecho da matéria acima:
No livro clássico da historiografia brasileira, Tratados da Terra e Gente do Brasil, escrito pelo jesuíta português Fernão Cardim no início do século 17 na Bahia, consta uma
interessante descrição de uma viagem de um padre pelo Rio Pinheiros até o porto de Santo Amaro. Após um dia de viagem de Santos até o sopé da serra e outro subindo a encosta em redes carregadas por escravos índios, o jesuíta relatava depois de ter
dormido no alto da serra:
"Ao 3º dia navegamos todo o dia por um rio de água doce (Pinheiros) (NÃO É O RIO PINHEIROS, MAS O RIO EMBÚ-GUAÇÚ), deitados
em uma canoa de casca de árvore, em a qual além do fato (a roupa, ou batina, dos padres) iam 20 pessoas; íamos voando a remos, e da borda da canoa até a água havia meio-palmo..." A grande velocidade se explicava por
estarem a favor da corrente.
Devido aos galhos atravessados no leito do rio, "era necessário guardar o rosto e olhos; porém a navegação é graciosa por o ser a embarcação e o rio muito alegre, cheio de muitas flores e
frutas, de que íamos tocando, quando a grande torrente nos deixava; chegando a peaçaba, lugar onde se desembarcam, demos logo em um campo cheio de mentrastos (hortelã silvestre) (VÁRZEA DO EMBÚ-GUAÇÚ); aquela noite nos agasalhou um devoto com galinhas, leitões, muitas uvas e figos de Portugal, camarinhas brancas e pretas e umas frutas amarelas do tamanho e feição de cerejas, (UVAIAS E CAMBUCIS) mas não têm os pés compridos. Ao dia seguinte vieram os principais da vila (São Paulo) (ATUAL BAIRRO DE INTERLAGOS), a três léguas, receber o padre".
Ou seja, no 4º dia ainda tiveram que percorrer por terra quase 20 km! |