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HISTÓRIAS E LENDAS DE GUARUJÁ
O faroeste era logo ali

No início do século XX, a fisionomia do Guarujá era muito semelhante às clássicas cenas do faroeste norte-americano, com estação ferroviária, cassino, inclusive casas em madeira importadas dos Estados Unidos. É o que contou Nestor Goulart Reis Filho, nesta matéria publicada no paulistano Jornal da Tarde/OESP de 26/5/1990:


PRIMEIRO HOTEL DE GUARUJÁ: A fotografia de Gaensly e Lindermam, recolhida por Boris Kossoy, mostra o primeiro hotel, construído em madeira com peças importadas dos Estados Unidos, em 1892, por Elias Fausto Pacheco Jordão. Foi destruído por um incêndio, em fins de 1897. Observar a linha do trem no primeiro plano e os chalés ao fundo. O hotel dava ao local a aparência de cenário de filme de faroeste. Do lado direito ficava o cassino. Fonte: Kossoy, Boris: Álbum de Fotografias do Estado de São Paulo - 1892; São Paulo, CBPO/Kosmos, 1984.

Um Grande Hotel, um cassino, uma igreja, uma linha férrea e a estação. Várias casas de madeira, construídas com pinho da Geórgia, toda uma cidade importada dos Estados Unidos. Assim começou Guarujá, há quase cem anos


O HOTEL DE LA PLAGE - GUARUJÁ: Após o incêndio do primeiro hotel, em seu lugar foi construído um outro, de alvenaria, bem mais seguro mas com pouco encanto. O cassino, o jardim, a estação e os chalés permaneceram com a mesma aparência. 
Cartão postal - acervo da Biblioteca Nacional-RJ.

Guarujá e Faroeste. Quem se lembra?

Por Nestor Goulart Reis Filho (*)

O Guarujá tem quase 100 anos e no começo tinha aparência dos cenários de filmes de faroeste. Mas quem se lembra disso?

Talvez ainda exista no centro de Guarujá alguma velha casa de madeira. Há vinte ou trinta anos eram mais comuns. Foram construídas há exatamente 98 anos (N.E.: portanto, em 1892). Eram parte de um plano de urbanização, organizado pela Companhia Balneária da Ilha de Santo Amaro. A empresa foi constituída pelo grupo econômico ligado à firma Prado, Chaves e Cia., sob a liderança do conselheiro Antonio Prado, de seu cunhado Elias Chaves, e seus parentes e amigos, quase todos grandes produtores de café e empresários urbanos de sucesso.

Em 1892, o grupo decidiu organizar um conjunto turístico, no local onde hoje se encontra o centro da cidade do Guarujá. Criaram a Companhia Balneária, sob a presidência de Elias Fausto Pacheco Jordão, que era o gerente da firma Prado, Chaves.

Elias Fausto formou-se em Engenharia Civil nos Estados Unidos pela Universidade de Cornell, em 1874. Trabalhou na Companhia Paulista de Estradas de Ferro e na Companhia Ituana. Ao assumir a presidência da Companhia Balneária, elaborou um plano que reproduzia, em grande parte, os projetos das cidades novas norte-americanas das regiões pioneiras e, de modo especial, alguns empreendimentos turísticos mais sofisticados, da região de Rhode Island.

O plano do empreendimento turístico do Guarujá incluía um grande hotel, um loteamento, a construção de 46 casas residenciais e a construção de uma linha férrea, que fazia a ligação da vila com o canal do porto de Santos, em frente ao terminal da São Paulo Railway.

Para obter um resultado rápido no seu empreendimento e lhe conferir um aspecto festivo, de arquitetura pouco formal, Pacheco Jordão importou todas as construções dos Estados Unidos, para serem aqui montadas. Eram edifícios construídos com peças de madeira, pinho da Geórgia, com o estilo dos chalés que estava em uso, naquela época.

Além das 46 casas, havia o hotel, uma igreja, um cassino e uma pequena estação. Eram ruas inteiras de construções importadas em pedaços e montadas no local. De início, até mesmo os gradis de fecho dos terrenos e os portões eram de madeira, com feição estrangeira. Quem percorresse o Guarujá daqueles tempos, poderia se acreditar no Oeste americano.

As casas tinham partes das estruturas de madeira aparentes e cobertura com telhas tipo Marselha. As paredes eram arrematadas com tábuas horizontais. Os chalés apareciam como novidades e eram registrados nos cartões postais.

O hotel, com dois andares e mansardas, tinha cinqüenta quartos, além dos salões, barbeiro e sala de leitura. Na frente era cercado por uma gigantesca varanda, também de dois pavimentos, e possuía na parte mais alta três mirantes em três torres. Teria cerca de 16 metros de largura por 64 de comprimento. Tinha um corpo transversal, de comprimento equivalente, que se alongava para o fundo, a partir da parte central da fachada. Pelo que mostram as fotografias, essa parte não dispunha de varandas. Contrastava portanto com o corpo da frente, no qual os gradis das varandas, os ornatos de fecho das mansardas e os arremates de madeira recortada dos beirais davam impressão festiva.

Os chalés, com dois pavimentos e mansardas, eram em geral de grandes proporções, o que justificou seu aproveitamento continuado em épocas posteriores.

Em um prazo extremamente curto e de forma simultânea, foi realizado o trabalho de implantação urbanística, a encomenda das construções em madeira e a construção da ferrovia. Esta era uma pequena linha férrea de bitola estreita, que na época era chamada de "tramway" (N.E.: bonde, como depois ficou conhecido no Brasil) a vapor. A estação era uma pequena plataforma, coberta com madeira, à vista do Grande Hotel. A linha partia de Itapema, em frente à estação terminal da São Paulo Railway, no Valongo, em Santos, sendo a travessia feita por duas lanchas, denominadas Cidade de Santos e Cidade de São Paulo.

A ferrovia foi inaugurada em 2 de setembro de 1893. Para a solenidade, foi organizada uma caravana, com o presidente do Estado e o bispo de São Paulo, que saiu da Capital em um trem especial, que partiu às 11 horas e chegou às 13h30.


OS CHALÉS DO GUARUJÁ: As ruas eram todas construídas com casas de madeira importadas da Geórgia. A fotografia mostra a igreja e os chalés.- acervo da Biblioteca Nacional-RJ.

Segundo Stiel (1), seguiram em bondes especiais para o cais em frente à Alfândega, onde tomaram o vapor Cidade de São Paulo, atravessando o estuário. Em Itapema, participaram da viagem inaugural do trem, até o Grande Hotel.

Ao redor da estação existia um jardim, à borda da praia, que foi sendo ampliado com o tempo. Parte dele ainda existe no mesmo local.

Ao lado do hotel, em pavilhão de madeira, existiu o cassino, com cerca de 20 metros de frente. Era cercado por uma varanda larga, como a do hotel, para a qual abriam portas tipo veneziana. Na parte central do telhado de quatro águas, tinha duas pequenas torres.

Nas proximidades, segundo informa Pedro Luís Pereira de Souza (2), havia um modesto balneário onde se alugavam "os competentes calções". O esporte da natação por certo não estava muito em moda; os freqüentadores chegavam desprevenidos ou só punham seus calções à beira da praia.

No início foi instalada uma usina elétrica, movida a vapor, que fornecia luz para o hotel e o cassino, para os chalés e para a iluminação pública. O fornecimento de energia era interrompido às 23 horas, como em um colégio interno.

Em 1897 o velho hotel de madeira foi destruído por um incêndio. Em seu lugar foi construído um pequeno pavilhão de alvenaria de tijolos. Esse pavilhão, ao contrário do anterior, era bem pouco elegante. Tinha apenas dois pavimentos. O telhado era escondido por uma platibanda recortada com ameias, como uma construção militar de gosto duvidoso. Tinha dois corpos separados, na parte superior, e um pequeno alpendre, na entrada, que contrastava pela sua modéstia com a majestade do velho edifício de madeira do primeiro hotel. Funcionou até 1910, quando foi demolido.

Nessa época, o conselheiro Antonio Prado, então na presidência da Companhia Prado Chaves, vendeu o conjunto de Guarujá para um grupo econômico, representado pelo grande aventureiro das finanças internacionais, Percival Farquhar. Em 1911 a nova empresa, Companhia Guarujá, contratou o Escritório Técnico Ramos de Azevedo, que construiu no mesmo local um hotel de maiores proporções, com cerca de duzentos e vinte apartamentos. O Grand Hôtel de la Plage foi inaugurado em 1912 e era composto de quatro grandes edifícios, alguns com três e outros com quatro andares. Era servido por elevadores e os apartamentos dispunham de terraços, dos quais se desfrutava a bela paisagem sobre o mar. Tinham, já nessa época, água quente e fria, aparelhos telefônicos em cada apartamento, e todas as instalações de luxo que se usava na época.

Junto ao antigo jardim, foi construído um pavilhão para banhistas. Havia cem cabines, sem contar as cabines móveis, um local para exercícios de ginástica sueca e duas piscinas de água doce, provavelmente para abrigar os mais tímidos. Ao fundo, junto às áreas ainda florestadas, foram construídos dois parques, um em terreno plano, com um quilômetro de comprimento, um jardim zoológico e algumas áreas para prática de esportes e outro em uma colina, chamado Parque Miramar, para permitir uma visão geral da paisagem, a trezentos metros de altura, como um belvedere.

UM CHALÉ DO GUARUJÁ: A Companhia Balneária do Guarujá importou os chalés desmontados. Construiu algumas dezenas de casas e edifícios de uso público. O presidente da empresa, Pacheco Jordão, havia estudado engenharia nos Estados Unidos e recriou aqui um cenário americano. Fotografia de J. Marques Pereira - Coleção de postais Dr. Elyseo de Oliveira Belchior.

Em 1918 foi instalado o sistema de ferry-boat. O uso generalizado de automóveis, em Santos e em São Paulo, impunha uma modernização, que acolhesse o novo meio de transporte privado. Essa inovação se tornou importante a partir de 1920, com as melhorias realizadas por Rudge Ramos no Caminho do Mar e principalmente a partir de 1926, quando foram concluídos os trabalhos de pavimentação do trecho da Serra de Paranapiacaba. A partir dessa época, tornou-se mais importante o transporte rodoviário do que o da pequena ferrovia.

Com a conclusão das obras da Via Anchieta, em 1947, tornaram-se mais comuns as viagens de automóveis e ônibus entre São Paulo e Santos e São Paulo e Guarujá. No mesmo período, desenvolveu-se o sistema de lotação, organizado por táxis, entre São Paulo e Guarujá. A proibição do jogo, em 1946, provocou o fechamento do cassino, mas a abertura da via Anchieta, no ano seguinte, abriu novas perspectivas para o desenvolvimento imobiliário da área e compensou largamente o município de suas perdas.

Em 1959 foi interrompida a atividade da ferrovia do Guarujá. A pequena locomotiva virou monumento da cidade, mas os chalés foram desaparecendo um a um, para dar lugar a prédios de apartamentos.

Há quem acredite que as restrições impostas à ação empresarial, durante o Império, criaram uma classe dominante voltada exclusiva e voluntariamente para as atividades produtivas do setor rural. Mas, pelo menos no Estado de São Paulo, essa imagem merece alguma revisão.

Logo nos primeiros anos do regime republicano, levantadas as interdições e restrições oficiais, os grupos econômicos paulistas, de mais larga tradição no setor rural, voltaram-se, com extrema agilidade, para todas as frentes capazes de oferecer compensações financeiras. E suas realizações, nesses setores, revelaram segurança e maturidade, que se comprovam pelos resultados práticos e pelo sucesso financeiro. Esse é o caso do empreendimento turístico do Guarujá. Alguns membros do mesmo grupo realizaram tempos mais tarde um projeto semelhante, em Poços de Caldas. Mas essa já é uma outra história.

(*) Nestor Goulart Reis Filho é arquiteto, sociólogo e professor titular da Universidade de São Paulo (USP)/Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU).

O GRAND HÔTEL DE LA PLAGE: O terceiro hotel construído no Guarujá foi concluído em 1912 por Ramos de Azevedo. Nessa época o local pertencia a uma empresa ligada a Percival Farquhar. Essa obra foi demolida por volta de 1950. Cartão postal - acervo da Biblioteca Nacional-RJ.

NOTAS:

(1) Stiel, Waldemar C. - História dos Transportes Coletivos em São Paulo.

(2) Souza, Pedro Luiz Pereira de - Meus 50 anos na Companhia Prado Chaves, S.L.S., ED., 1950, p.71.

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