DOS CASARÕES HISTÓRICOS À HISTÓRIA DE ABANDONO - Os casarões antigos, alguns seculares, se
espalham pelas ruas do Paquetá, em Santos. No passado, abrigaram famílias nobres. Hoje, transformaram-se em cortiços, refletindo os efeitos do
abandono. Estrangulado entre o badalado Centro HIstórico e o Porto em franca expansão, o bairro abriga 1.368 moradores
Imagem: reprodução parcial da primeira página de A
Tribuna de 7/6/2010
Lugar onde os cortiços se impõem
Moradores e comerciantes aguardam por projetos que possam tirar o bairro da
estagnação e ajudá-lo a vencer a miséria de décadas
Da Redação
O Paquetá já foi um bairro de luxo e abrigou
ricas moradias. Mas a falta de projetos eficientes que resgatem o progresso fica evidente na degradação dos imóveis e das ruas. Há décadas, o
bairro permanece parado no tempo e estrangulado entre o Centro, impulsionado pelo otimismo de prometido crescimento, e o Porto em franca expansão.
O Paquetá é delimitado pelas ruas São Francisco e Xavier da Silveira, Constituição e João
Otávio. Desse quadrilátero que expõe muita miséria, o desenvolvimento parece passar longe. A própria Secretaria de Planejamento estima que todas
as habitações ali são "subnormais", classificação dada a moradias sem condições estruturais nem sanitárias de acolher seres humanos.
Nessa região, são os cortiços que predominam. Ficam em casarões, muitos deles seculares, onde
viveram famílias nobres entre o final do século 19 e a primeira metade do século passado. Hoje, as mansões deterioradas abrigam diversas famílias,
uma em cada cômodo alugado, muitas das quais com banheiros coletivos.
No bairro com 1.368 moradores em 499 domicílios, segundo o censo 2000 do IBGE, 266 famílias
recebem Bolsa Família por estarem em situação d e pobreza (com renda mensal por pessoa de R$ 70 a R$ 140) ou extrema pobreza (até R$ 70 por
pessoa).
Na lista, está
Gilda Silva Gabas, 40 anos. Quatro filhos e apenas a renda do marido, de um salário mínimo. Às vezes, ela até consegue um complemento vendendo
material reciclável, ofício que exercia até meses atrás. Mesmo pagando os R$ 250,00 em dia, Gilda foi despejada do cortiço em que morava. "A gente
pagava o aluguel pro dono da chave. Mas ele nã pagava pro dono (da casa). Aí a gente teve que sair".
Dono da chave é uma espécie de sublocador do casarão, função muito comum na região central. Ele
aluga a casa do proprietário e loca os quartos para as famílias. Há casarões com 10, 12 cômodos, distribuídos inclusive em porões úmidos.
A soma de todos os aluguéis pagos ao dono da chave normalmente ultrapassa o valor acertado por
ele com o dono do imóvel. Assim, ele ganha à custa de famílias que não têm outra alternativa a não ser habitar cortiços.
Após ser vítima da desonestidade de um deles, Gilda teve que arrumar R$ 300,00 para garantir o
aluguel do quarto de outro imóvel. "Vendi minha carroça, que era meu ganha-pão. Consegui R$ 200,00. Os outros R$ 100 tirei do Bolsa Família. Tive
que tirar da boca das crianças".
Meses depois, a casa em que passou a morar foi lacrada pela Prefeitura por falta de condições
estruturais. Com a ajuda de uma amiga, ela e a família estão alojadas provisoriamente em um imóvel.
Desabafo |
"Esta área não tem jeito. É só lixo, é só
abandono.
Político nenhum liga pra isso aqui" |
Adelino da Silva, dono de uma loja de móveis usados |
Cemitério -
Em bairro de tanta pobreza, o contraste está associado a um cemitério, construído em 1854. Local
vizinho de dezenas de submoradias, no Cemitério do Paquetá estão enterrados, ironicamente, representantes da aristocracia e da burguesia de Santos
nos séculos 19 e 20.
Em um desses imóveis do entorno, meia dúzia de famílias habitam quartos
divididos no porão. Outros seis cômodos ficam no primeiro - e único - piso. O banheiro é o mesmo para todos.
"Eu já estava querendo voltar pra São Paulo, porque aqui é ruim mesmo,
viu? Mas aí veio esse projeto dos predinhos. Isso é o que nos dá esperança"., comemorou Márcia Lopes Ribeiro, de 40 anos, moradora do quarto dos
fundos do casarão com dois filhos - Tatiana, de 15 anos, e Thiago, 9.
Os predinhos a que Márcia se refere são os conjuntos que estão sendo
construídos na Rua General Câmara.
Ela reclama não só de pagar R$ 250,00 por um lugar apertado em um
casarão deteriorado. O lixo nas ruas também incomoda muito.
"Esta área não tem jeito. É só lixo, é só abandono. Político nenhum liga pra isso aqui", resumiu
o comerciante Adelino da Silva, dono de uma loja de móveis usados.
Márcia mora com 2 filhos em um quarto de cortiço, mas aguarda apartamento em conjunto
habitacional
Foto: Nirley Sena, publicada com a
matéria
Projeto depende de donos de imóveis
A Prefeitura terá de contar com a boa vontade dos proprietários dos
casarões da região central da Cidade para colocar em prática o Programa Alegra Centro Habitação. A iniciativa promete melhorar as condições de
habitabilidade dos cortiços do Paquetá e parte de Vila Nova, Vila Mathias e Centro.
O programa prevê isenções fiscais aos proprietários que reformarem seus
imóveis na região central e adaptá-los ao tamanho das famílias que os habitam, dando boas condições de moradia. Mas a adesão dos donos das casas é
facultativa.
O projeto de lei que institui o Alegra Centro Habitação - nome popular
para o Programa de Reabilitação do Uso Residencial na Região Central Histórica de Santos - foi enviado à Câmara em 27 de maio de 2009 e foi
aprovado em primeira discussão. Mas teve alterações por causa da reforma administrativa da Prefeitura. Agora, aguarda segunda discussão.
"Essa é uma ação e inclusão social. Queremos a restauração dos imóveis
para dar condições de moradia e manter as famílias lá", afirmou o secretário municipal de Planejamento, Bechara Abdalla Pestana Neves.
Seleção |
Em levantamento preliminar, o Município identificou a existência de 350 a 400 imóveis
exigidas para inclusão no programa |
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Pela iniciativa, os proprietários que aderirem à idéia se comprometem a
adaptar os cômodos de seu imóvel a três tipos de planta definidos pela Prefeitura. Um tipo tem 10 metros quadrados para famílias com até duas
pessoas. O segundo deve ter entre 20 e 40 metros quadrados, para famílias com até oito integrantes. O terceiro módulo é de até 60 metros
quadrados, para até 12 pessoas, com mais de um cômodo.
Todos têm banheiro privativo. Os módulos "garantem ventilação e
conforto", segundo Neves, e serão desenvolvidos por arquitetos da Prefeitura e oferecidos aos proprietários. Caso invistam nas reformas conforme
propõe o programa, ganharão isenção total do ITBI, IPU e do ISS da obra, além de desconto no IPTU e ISS do patrocinador da reforma, caso haja.
A Secretaria de Planejamento pode encontrar obstáculos geográficos para
a concretização dessa idéia. Como a ocupação dos cortiços é irregular, pode faltar espaço para acomodar todas as famílias em um cortiço, na
transformação de cômodos, conforme os módulos padronizados pelo Município. Há cômodos com 8 pessoas e outros de mesmo tamanho ocupados por 3, por
exemplo.
"Por isso, teremos uma comissão pactuada composta pela Prefeitura,
moradores, proprietários e associação dos cortiços. Esse grupo vai realocar famílias para os imóveis onde está sobrando espaço. "Vamos construir
esse processo e controlá-lo", afirmou o secretário.
Pelo projeto, o proprietário deve se comprometer a manter o imóvel
alugado para os moradores atuais por até cinco anos após a adesão ao programa. Mas a iniciativa não garante o congelamento do preço do aluguel.
Após a reforma, com o imóvel em melhores condições, o locador pode aumentar o preço. Isso geraria a expulsão de moradores da região central,
exatamente o que o poder público busca evitar com o Alegra Habitação.
O secretário, novamente, atribui à comissão pactuada a missão de mediar
as relações e propor índices de correção no aluguel dos imóveis. Ele afirmou que, após a aprovação do projeto, a secretaria vai convocar cada
proprietário de imóveis degradados que viraram cortiços para explicar as vantagens de aderir ao programa.
E se eles simplesmente não quiserem melhorar as condições de seus imóveis? "Vamos pegar mais
pesado na fiscalização". A Prefeitura pode autuar proprietários pelo não cumprimento dos códigos Sanitário e de Edificações, que exigem condições
mínimas para moradia. Antes não se fiscalizava, segundo ele, o público sempre fechou os olhos para essa irregularidade. "Porque essa é uma questão
social. Se fechar um cortiço, as pessoas vão morar onde?"
Intenção é adaptar os cortiços, para terem boas condições de moradia
Foto: Nirley Sena, publicada com a
matéria
Mutirão
O sonho de ter seu espaço e viver com as mínimas condições humanas deve virar realidade até 2011
para moradores de cortiço. No ano que vem, deve ficar pronto o empreendimento erguido no terreno do número 410 da Rua General Câmara, como fruto
da iniciativa da Associação dos Cortiços do Centro (ACC), entidade formada pelos próprios moradores.
A obra começou em janeiro de 2009, é financiada pelo Crédito Solidário, programa da Caixa
Econômica Federal, e administrada em sistema de autogestão pela ACC. Os futuros moradores do conjunto atuam em mutirão nos serviços gerais. O
prédio, com 113 unidades, já foi erguido e 70% ficaram prontos neste ano. Mas as obras estão paralisadas desde fevereiro. É que a empreiteira
contratada pela AC não conseguiu cumprir os prazos estabelecidos pelo contrato. "A Caixa libera a verba mensalmente e, a cada final de mês,
verifica se o que foi acordado já foi feito. No mês nove, a construtora informou que não teria como continuar", afirmou Rafael Paulo Ambrósio,
presidente da ONG Ambienta, que presta assessoria para a Associação dos Cortiços.
A empresa alegou que, com o dinheiro recebido, não poderia honrar compromissos financeiros
assumidos para finalizar o empreendimento. "Estamos revendo todos os contratos. Vamos contratar profissionais e não mais uma empreiteira",
explicou a presidente da ACC, Samara Faustino.
Um engenheiro já foi contratado. Precisam ser concluídos os sistemas elétrico e hidráulico,
parte do telhado e o acabamento externo. A parte interna fica por conta dos moradores, que acompanham o empreendimento. Eles pleiteiam junto à
Cohab uma verba para a compra de material para esse acabamento. O conjunto custou R$ 4,515 milhões, sendo R$ 30 mil por unidade pagos pela Caixa
R$ 8 mil de contrapartida do Governo do Estado.
Samara Faustino, presidente da ACC
Foto: Nirley Sena, publicada com a
matéria
História
O adensamento no Paquetá começou na segunda metade do século 19, após um crescimento
populacional em ritmo mais acelerado a partir de 1870 e o aparecimento de epidemias ocasionadas pelas péssimas condições sanitárias da época, que
afastaram os moradores do Centro, local mais adensado. Até então, o bairro era conhecido apenas pelo cemitério, construído em 1854. elite
começou então a se estabelecer no Paquetá e na Vila Nova, em casarões imponentes, até os anos 1940.
"A partir dessa década, com a construção e ampliação dos caminhos para a praia e a inauguração
da Anchieta (1947), há uma migração mais acelerada em direção à orla", explicou o historiador Dionísio de Almeida, da Fundação Arquivo e Memória
de Santos. Com a desocupação, os imóveis passaram aos poucos a servir de moradia para pessoas de baixa renda. Com a falta de planejamento urbano
na região e o abandono dos imóveis, a região entrou em acelerado processo de degradação e evidenciou um problema social.
Foto: Nirley Sena, publicada com a matéria
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