A construção de prédios resultará no aumento populacional
Foto: Paulo Freitas, publicada com a matéria
No começo era a favela. Hoje, um bairro
A Areia Branca, cuja ocupação começou no final da década de 40, vive a segunda
onda de crescimento populacional com construção de prédios
Andrea Rifer
Da Redação
Imagine um bairro onde a principal
preocupação dos moradores já foi a possibilidade de ser despejado. Acrescente a esse pedaço do território uma ocupação tão desordenada que exigiu
de técnicos, além da habilidade profissional, muita criatividade para executar algum planejamento. Agora pense no desafio de pela primeira vez
urbanizar uma grande favela em Santos (ver texto).
Avance seis décadas no tempo. Ande pelas ruas estreitas e curvas e observe a transformação das
casas, das vias. Tente encontrar os antigos campos de futebol de várzea. Procure pela areia clara que deu origem ao nome do local. Quase tudo
sumiu. Foi modificado.
Olhe para cima.
Veja como as residências cresceram. Os chalés foram substituídos por sobrados e um dos raros terrenos vazios, coberto por prédios já prontos ou
ainda em construção.
Bem-vindo à Areia Branca, que no final da década de 40 começou a viver seu primeiro momento de
ocupação e que agora, empurrada pelo boom imobiliário, encara a segunda onda de grande crescimento populacional.
De acordo com o censo de 2000, do IBGE, o bairro da Zona Noroeste que
faz divisa com São Vicente tem 6.740 moradores. O número, apesar de subestimado, é o único dado oficial sobre a
população. Mas, se considerarmos apenas as unidades construídas no terreno do Estradão pela CDHU e entregues em julho do ano passado, já há
pelo menos mais duas mil pessoas vivendo na Areia Branca.
Quando um outro conjunto residencial ainda em construção na mesma área ficar pronto, a população
do bairro pode ficar quase três vezes maior do que o índice apontado pelo IBGE há dez anos. Isso porque a construtora responsável pelo
empreendimento planeja erguer 2.500 apartamentos, o que pode representar mais 10 mil novos habitantes.
Vai ficar |
"Minha mulher diz assim: vamos sair daqui para
quê? Para voltar depois para o cemitério" |
Magnaldo José dos Santos, o Ado, 49 anos, morador que nasceu na Areia Branca e que
chegou a viver um período no Itararé, em São Vicente, mas acabou voltando |
Para os que têm mais tempo e idade na Areia Branca, como os moradores e comerciantes Maria
Zelita Oliveira Andrade e Antenor Francisco dos Santos, ambos com 80 anos, sendo quase 50 no bairro, acompanhar tantas novidades e de tão perto
parece ser tarefa simples. Basta que permaneçam dentro de seus estabelecimentos, numa das principais ruas do local (a Tomoichi Kobuchi) para
assistirem às mudanças que passam pela porta.
Quando eles chegaram, o bairro ainda não tinha sistema de esgoto, por exemplo. Tampouco possuía
ruas definidas e com calçamento. E os meninos então, nem se fala. Quanta diferença! "Eles não eram como os de hoje. A gente podia confiar",
ressalta dona Zelita, que chegou a ter 20 deles trabalhando para ela. Os jovens vendiam o sorvete de palito que Zelita fabricava.
Hoje, ela, que é dona de um bazar que tem quase tudo, garante que mesmo com o crescimento
populacional, o movimento é um fracasso, "porque tem muita gente no mesmo ramo". Mas ela não reclama. "Daqui (do comércio) eu tirei duas casinhas
e cheguei a comprar um carro do ano, na época. Foi um Opala", destaca, enquanto a memória lhe trai mais uma vez na hora de dizer o ano da compra
do automóvel.
De fato, hoje a concorrência é pesada. Junto com a população, o local está atraindo interesse
comercial. A instalação de um atacadista no bairro é um bom exemplo do que pode se transformar a economia local, que ainda sobrevive basicamente
de pequenos estabelecimentos como bares (são 12 no total), lanchonetes, comércio varejista de artigos do vestuário e de produtos alimentícios,
além de outras atividades.
Seu Antenor ou Tonico, como todos o conhecem, por exemplo, é barbeiro. Dentro do
salão, o tempo parece ter parado: as cadeiras são muito antigas, há um filtro de barro e uma fotografia da inauguração da Sociedade de
Melhoramentos, em 1955.
Modernidade mesmo só do lado de fora. Pela porta do estabelecimento, que para seu Tonico
funciona como uma espécie de televisão na qual são transmitidas cenas ao vivo e reais da Areia Branca, ele vê o tempo passar, os meninos
crescendo, alguns indo embora, outros chegando.
"Aqui eu criei meus filhos", conta o baiano nascido na cidade de Jandaíra, ao se referir ao
bairro que o acolheu e ao comércio que desde a década de 60 garante o sustento de sua família.
Seu Tonico segue alheio. Como se as mudanças que já passaram pela sua porta e as
que ainda estão por vir não fizessem diferença. Afinal, desde que começou na profissão só fez conquistar simpatia e fidelidade. Tanto que tem
ex-morador do bairro que até hoje volta para a Areia Branca só para cortar o cabelo com ele.
É, não tem jeito. Tem coisa que parece eterna, que transpõe o tempo, que perdura na memória
mesmo depois de tão modificada. Bem-vindo à Areia Branca, bairro onde Leila Marinho de Andrade, de 50 anos, vive desde que nasceu e que, pesar das
mudanças, ainda parece o mesmo para ela.
Dona Zelita tem saudade dos bailes do bairro e das brincadeiras
Foto: Paulo Freitas, publicada com a
matéria
Mudanças
Futebol
Antes - A Areia Branca era conhecida por seus clubes de futebol. O mais tradicional e
antigo, o Brasil, foi fundado em 1952 e oficializado em 1953. Tinha também o Botafogo, o Bandeirantes, o Areia Branca e o São José.
Depois - Os campos de futebol de várzea foram ocupados pelas novas edificações. Futebol
hoje só nas ruas, com gol caixote. Dos times, segundo Magnaldo José dos Santos, o Ado, só sobrou o XI Bandeirantes, que usa um campo no Bom
Retiro.
Carnaval
Antes - Os blocos eram a maior tradição do Carnaval na Areia Branca. O Chapeleiro,
fundado em 1965, e o Cai-Cai, criado em 1984, resistem até hoje.
Depois - Agora a principal atração do Carnaval na Areia Branca é o desfile oficial das
escolas de samba, realizado na Passarela Dráusio da Cruz desde 2006.
Política
Antes - A caça aos votos foi um dos motores da ocupação da Areia
Branca. No final da década de 40, em busca de eleitores, um vereador da Cidade teria incentivado e conseguido autorizações para que migrantes
nordestinos fizessem casas no bairro.
Depois - Para os moradores, um dos principais problemas da Areia Branca é a falta de
representatividade política no Legislativo. Mesmo com candidatos locais, os votos acabam sendo pulverizados em nomes de outras regiões que só
aparecem no bairro em época de eleição.
Seu Tonico sente falta de jogar (dominó e baralho) com os amigos
Foto: Paulo Freitas, publicada com a
matéria
Cemitério é referência
Conhecido como o principal ponto de referência do bairro, o cemitério da
Areia Branca ocupa quase 10% do território. Com 50 mil metros quadrados, abriga 16.686 sepulturas e 13.330 ossuários. Para dar conta de tudo
isso, há 27 funcionários trabalhando no equipamento municipal. Inaugurado em 29 de agosto de 1953 pelo então prefeito Antonio Feliciano, o
cemitério realizou o primeiro sepultamento, quase uma semana depois, no dia 4 de setembro. Tantos anos passados, hoje freqüentam o local milhares
de pessoas que visitam as campas de parentes e amigos.
O cemitério ganhou fama por abrigar os mausoléus do Soldado Constitucionalista e da Polícia
Militar. Além disso, lá estão enterrados o menino Onofre, falecido em 1956, e a menina Dulcinéia de Souza, morta em 1971. A eles são atribuídos
milagres e por isso suas campas estão sempre cheias de velas e pedidos. É também no cemitério, ou melhor, junto ao muro do equipamento (do lado de
fora) que pode ser encontrada uma das principais reclamações dos moradores: a sujeira. Todos os dias muito lixo é despejado na calçada ao lado ou
na parte de trás. Segundo os moradores, é preciso sempre esperar que a montanha [cresça] um pouco, até que o material seja recolhido.
Também junto ao cemitério, um outro problema incomoda as pessoas que vivem no bairro: caminhões
estacionados e que tiram o sossego de quem vive na Areia Branca.
Um episódio curioso: em outubro de 1994 A Tribuna registrou a invasão de centenas de
baratas nas casas do bairro ao redor do cemitério. A mudança de endereço dos insetos foi provocada pela dedetização no equipamento.
Foto: Alberto Marques, publicada com a matéria
População maior exigirá planejamento
Aumentar a população em quase três vezes a população da Areia Branca deve exigir planejamento.
Junto com os edifícios, além dos moradores e do aquecimento da economia local, alguns problemas podem surgir, como o trânsito que deve ser gerado
com a circulação de mais carros nas ruas do bairro, por exemplo.
Outra deficiência poderá ser observada no transporte coletivo. Um número muito maior de
moradores deve exigir mais ônibus. E as escolas, serão suficiente? Haverá vagas para todas as crianças? O único equipamento de saúde do bairro
suprirá demanda futura?
Na década de 60, o grande desafio foi vencido, apesar das dificuldades. Depois de anos, a
urbanização da favela da Areia Branca, que se formou com a ocupação desordenada, virou realidade.
O professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UniSantos, Fábio Eduardo Serrano, que era
chefe do setor de Urbanismo da Cohab, coordenou o trabalho. Para buscar conhecimento, chegou a visitar uma favela do Rio de Janeiro.
"Havia muita dificuldade técnica. Nenhum topógrafo queria trabalhar lá", lembra Serrano. Foi
preciso usar até um pequeno avião para fazer fotos aéreas, a fim de "entender melhor a ocupação". Na época, 1.600 famílias viviam na favela.
Para começar o trabalho, era preciso esvaziar parte do bairro. Assim, um conjunto de moradias
foi construído no Jardim Castelo. "Só que, quando as casas ficaram prontas, os moradores (da Areia Branca) não quiseram
ir". Resultado, apenas uma pequena parte se mudou, mas não desocupou espaço suficiente.
Assim, em 1966, Serrano foi contratado para executar um projeto de urbanização. Os lotes foram
demarcados, para depois serem vendidos aos moradores. Ruas foram abertas. Outras, mantidas. Por isso, até hoje o bairro tem uma particularidade:
um emaranhado de vias muito pequenas, estreitas e curvas.
"Me lembro que os moradores não dormiam de noite com receio que a gente passasse por cima da
casa deles" para abrir as ruas. O medo era que as vias fossem um prolongamento, em linha reta, das que existiam nos bairros vizinhos.
Em alguns locais foi preciso remover casas (cerca de 10% das que existiam) para lotes vagos. "Os
que foram removidos ficaram em melhor situação". A Cohab deu auxílio com material e transporte e essas famílias tiveram desconto na compra do
lote.
Desafios para o futuro - As dúvidas aqui levantadas sobre a demanda futura da Areia
Branca não foram respondidas pela Secretaria de Planejamento até o fechamento desta edição. |