Fabricar uma boa pinga, tradição que se mantém
Os mais românticos vão adorar a idéia: beber água da Fonte
dos Amores. Os mais aventureiros na certa se entusiasmarão com a possibilidade de se ocultarem sob um enorme abrigo, que a natureza deve ter
levado milhares de anos para moldar. E os mais interessados em história gostarão de observar vestígios de antiga construção, quem sabe regados
pelo suor de negros escravos.
Todas essas coisas estão concentradas em uma área muito sossegada, que se estende entre
morros e um rio, sem poluição e com poucos indícios da presença humana. Uma área onde se respira ar puro, bebe-se água cristalina nascida entre
pedras e se constata a variedade da fauna e da flora.
Estamos falando da região do Itabatatinga, um dos muitos sítios espalhados pelo Vale do
Rio Diana. Sítios que se encontram praticamente abandonados, mas já despontaram como locais importantes do País na época em que a exportação de
banana representava uma grande fonte de divisas.
Quando a comercialização do produto entrou em crise, outro não foi o destino do Vale do
Rio Diana. Hoje dá para se contar nos dedos o número de pessoas que vivem e tiram seu sustento daquela planície que em outros tempos se agitava ao
ritmo do trabalho sempre intenso.
Uma gruta e uma fonte: principais atrações da caminhada inicial - Embora se conheça
dados do passado recente da região, o que aconteceu por lá em época mais remotas permanece como uma grande incógnita. A única certeza é que a
ocupação data de centenas de anos atrás. As ruínas do Sítio Itabatatinga comprovam: já havia gente por aqueles lados no tempo em que o cimento
não passava de uma mistura de restos de concha com óleo de baleia.
Para quem não sabe, o Itabatatinga fica na região continental de Santos, às margens do Rio
Busca-Vidas (um braço do Rio Diana) e a uns 50 minutos do Largo do Canéu. Para se chegar até ele por via marítima, só
mesmo utilizando-se embarcações pequenas: a ponte existente sobre o Rio Diana, ao longo da Rodovia Piaçagüera-Guarujá, é muito baixa e apenas
embarcações pequenas, do tipo canoa, passam sob ela, conforme as marés.
Por via terrestre, parece bem mais fácil: basta pegar a Estrada Piaçagüera-Guarujá e
entrar num caminho à esquerda, após uns 500 metros do Rio Diana, sentido Guarujá. Mas, o carro não avançará
muito além dos primeiros metros desse caminho. O jeito é ir a pé.
A caminhada, porém, já se constitui num grande passeio: à direita de quem segue, surgem as
encostas de um morro baixo, que quebra a monotonia do relevo e, à esquerda, se destaca a vegetação que enfeita as margens do Rio
Busca-Vidas.
Os que gostam do contato com a natureza se admiram diante da composição bonita dada pelos
bambuais, jaqueiras, goiabeiras, pé de cambuci e tantas outras árvores generosas em frutos e flores. De repente, a uns 10 minutos de andanças, a
gente depara com a Gruta Esteves, conforme indica a inscrição feita com capricho na própria rocha.
Trata-se de um enorme bloco de pedra, com um corte abrupto em uma das faces que deveria
tocar o chão, formando em conseqüência uma espécie de gruta. Quem se vê lá não resiste: olha a estrutura sob diferentes ângulos e tenta entender
como a natureza conseguiu formar aquele abrigo natural.
Se estiver fazendo muito calor, ninguém vai querer abandonar a sombra gostosa que a gruta
proporciona tão cedo. E se a sede aperta, nada de apuros: um pouco mais à frente, e bem oculta no meio da mata, está a Fonte dos Amores.
Por uma tubulação, instalada não se sabe por quem, jorra uma água cristalina, geladinha e
leve. Mesmo nos dias quentes, não diminui o volume de água, sempre abundante. E não é só esse detalhe que chama a atenção, pois tudo à volta
evidencia a força e a beleza da natureza: a fonte e o barulhinho da água correndo o tempo todo, as folhagens, as flores e as árvores, com seus
galhos entrelaçados, dando idéia de uma caverna. Um local e tanto para bons momentos de descanso.
Caiu a produção de banana e os sítios ficaram abandonados - Depois de uma paradinha
na Fonte dos Amores, dá para se continuar a caminhada sem maiores atropelos. A casa-grande do Sítio Itabatatinga surgirá metros adiante, em meio a
pés de cana, bananeiras, bambuais e outras árvores que garantem sombra e um ventinho gostoso.
De longe a gente nota a fachada altiva e a rigidez da construção. E, depois de uma
observação mais detalhada, se encontra paredes com cerca de oitenta centímetros de largura, edificadas com pedras de proporções bem grandes. Em
que época teria sido erguida?
A atual proprietária da casa, dona Herminda, não faz a mínima idéia. Seus filhos, Alfredo
e Ana Aparecida, tampouco. Alfredo revela apenas um detalhe interessante: meses atrás, um escritor esteve no sítio tentando descobrir detalhes da
vida de um pintor espanhol. Segundo afirmou o escritor (Alfredo não sabe dizer o seu nome), o pintor veio para o Brasil como agricultor, trabalhou
muitos anos no Itabatatinga e fez várias paisagens mostrando aspectos do local.
No mais, Alfredo se lembra da fartura, da produção em larga escala que
seu pai vivenciou. Na época boa mesmo, como diz ele, retirava-se daqueles nove alqueires de terra dois mil cachos de banana por mês. Os sítios
vizinhos não ficavam para trás e o Rio Busca-Vidas estava sempre repleto de chatões carregados do produto. Nesse período nasceu o nome
Busca-Vidas: os homens faziam as barcaças deslizar sobre as águas com a ajuda de enormes varejões. Vez ou outra algum se desequilibrava, caia na
água e não voltava mais. O rio que, parecia tão calmo, tragava muitas vidas.
Hoje, a produção de banana do Sítio Itabatatinga não ultrapassa 200 cachos a cada 15 dias.
Na propriedade ao lado, a situação não difere muito: apenas quatro empregados e uma média de 80 cachos por semana. Em resumo: as plantações são
mantidas apenas para não deixar a terra de todo improdutiva e cheia de mato.
A natureza moldou o rochedo de modo a formar uma enorme gruta
De Itabatatinga se vê o Centro, mas não se ouve o seu barulho - Apesar de o
Itabatatinga ser uma propriedade particular, dona Herminda e os filhos já se acostumaram a ver pessoas estranhas rondando por perto, desfrutando
das coisas boas que o lugar oferece. Acostumaram-se em termos: dona Herminda acha que os visitantes lhe tiram um pouco do sossego.
Afinal de contas, dona Herminda não abandonou o sítio, mesmo com a queda da produção,
justamente porque quer tranqüilidade. Desde que se mudou para lá, em 1967, saiu poucas vezes. E, a cada saída, não se conforma com o barulho, o
corre-corre, o alvoroço de pessoas e carros pelas ruas de Santos.
No sítio, dona Herminda recebe água de graça dentro de casa, oferecida pela natureza; faz
o seu próprio pão, sem bromato de potássio, e até assiste à televisão porque dispõe de um gerador próprio de eletricidade. Mais: se orgulha ao
dizer que mora no meio do mato, mas anda bem informada porque não deixa de ouvir o noticiário das rádios.
Ela só teve sua rotina quebrada no ano passado (N.E.: 1982),
em agosto, quando a empreiteira Nativa, contratada pela CESP, andou fazendo estragos por lá, durante serviços de infra-estrutura para instalação
de uma torre de energia.
Para chegar com suas máquinas até o local, a empreiteira destruiu uma porteira, uma antiga
instalação de água e derrubou parte do arvoredo que garantia sombra para os animais que dona Herminda cria. Pior: usou até dinamite para abrir
enormes buracos, nos quais seriam introduzidas as sapatas da torre.
A cada nova explosão, voava pedra para tudo quanto era lado, perfurando o telhado da
casa-grande e do galinheiro. Dona Herminda vivia escondida no porão da casa, mãos na cabeça, desesperada. À noite, mal conseguia dormir de tão
assustada.
Mesmo diante das insistentes reclamações, a Nativa nada mais fez do que alguns reparos de
emergência. Não cobriu a maior parte dos prejuízos, embora tenham se passado sete meses. Só mais um detalhe: a CESP desistiu de instalar a nova
torre, depois de toda aquela bagunça.
Tanto dona Herminda como Alfredo ficam revoltados quando se lembram de tudo isso. E logo
avisam os visitantes para tomarem cuidado com os enormes buracos que restaram, muito mal cobertos. Justamente no morrinho onde estão tais buracos,
se tem uma das mais belas vistas do sítio. Do sítio e de tudo à volta, porque dá até para se avistar um pedacinho de Santos, ao longe, e se
distinguir perfeitamente os contornos do Monte Serrate.
A pessoa vê Santos, mas não ouve nem um pouco do barulho da civilização e tampouco percebe
a correria que a agita dia após dia. O mundo é bem outro, colorido pelas árvores e pelas penas dos periquitos, tucanos, jacus, tiés, sanhaços e
sabiás. Mas os curiós desapareceram. Os tempos não estão mais para eles?
O Alfredo não sabe dizer. O que ele sabe bem é transformar cana em uma pinga das boas,
dessas branquinhas, que misturadas ao cambuci viram um licor dos melhores. Conserva um alambique, do tipo cebolinha (como os que
ainda existem no Morro da Nova Cintra), em perfeito estado, e vez ou outra fabrica alguns
litros do chamado morrão: é uma exclusividade dele para os amigos da casa. |