Sob a sombra do centenário jamboleiro, dona Teresa relembra os tempos em que um amarrado com
cinco quilos de mandioca custava 500 réis
A Lindóia dos sítios e engenhos
Todo santo domingo e todo feriado era a mesma coisa: o
pessoal que gostava de entornar uma branquinha recém-saída do alambique subia o morro em busca das engenhocas onde se preparava um
morrão para ninguém botar defeito.
A turma chegava nos sítios, batia um papo descontraído e logo vinha o convite para
experimentar uma poncha à moda da Ilha. À primeira dose logo se seguiam outras e, quando o visitante dava por si, já estava mais para lá do
que para cá. E partia aos trancos e barrancos, tropeçando pelas vielas esburacadas e cheias de mato.
Quem provou da pura e levou seus tombos pelas encostas nunca se esquece o quanto
era bom visitar o Frade, o Vigarinho, o Mogango, o Valente e outros valentes desbravadores do alto. Mas as coisas mudaram:
veio o chamado progresso e os engenhos, tidos como clandestinos, aos poucos desapareceram. E como eles eram praticamente a razão de ser das
sitiocas com suas plantações de cana, suas moendas e seus pachorrentos bois de canga, a gleba ganhou ares de abandono.
Não bastasse isso, a terra era alugada e a proprietária tratou de providenciar seu
loteamento, a exemplo do que vinha acontecendo (e com muito lucro) em outros morros de Santos. E assim surgiu a Vila Sapo, mais tarde batizada por
um político de Vila Lindóia. Não ficava bem um núcleo residencial levar o nome de um bichinho tão asqueroso...
A Vila faz parte do São Bento e está encravada entre a Nova Cintra e os morros Saboó-Mirim
e Penha. Seu ponto de irradiação é no Conceição, nas proximidades de onde existiu o Sítio do Frade.
Dona Teresa, a mais antiga moradora e suas histórias sob uma árvore centenária - O
famoso sítio desapareceu, mas seu Frade continua na Vila Lindóia, envergado sob o peso de 83 anos de idade. O falecido seu Conceição deixou
muitos descendentes por lá e sua esposa, dona Teresa, é a mais antiga moradora.
Está lá há 60 anos e passou praticamente toda a sua vida por aquelas paragens, pois chegou
com três anos de idade. Acompanhou todo o crescimento do núcleo e ainda se lembra de ver os moradores munidos de pá, enxada e picareta, abrindo
picadas no meio do matagal.
Enfrentou muita lama e trabalho duro, como todos os outros sitiantes das imediações. Tirar
o sustento da terra não era tão fácil como se pode pensar. Sobrava serviço para a família inteira.
Sentada sob a sombra de um jamboleiro de mais de 100 anos de idade, rodeada pelos filhos,
nora e netos, relembra os tempos em que percorria os caminhos estreitos e íngremes com cestos carregados de frutos para vender na Cidade. Como
poderia esquecer? O amarrado com cinco quilos de mandioca custava 500 réis; cinco laranjas ou tangerinas, um tostão; e uma dúzia de bananas, um
tostão. Quando se vendia tudo, dava para ganhar o dia; do contrário, tinha que se voltar com o encalhe para casa e ainda carregar lavagem para os
porcos.
E como havia porcos bonitos no sítio do seu Conceição! Cada um com seus 150, 200
quilos, capazes de garantir carne para o mês inteiro e mais umas quatro ou cinco latas de banha. As galinhas produziam cinco a seis dúzias de ovos
por dia e as seis vacas leiteiras forneciam leite que era vendido a 300, a 400 réis o litro. O leite purinho chegava ainda quente à casa dos
fregueses, mas nem sempre se conseguia vender tudo. O jeito era retornar com as sobras e fazê-las de alimento para os animais.
Dona Teresa queimou muita querosene, carvão e serragem, na falta de eletricidade e gás.
Carregou feixes de lenha nas costas desde o sopé do Saboó e perdeu as contas das vezes em que subiu às 5 horas da manhã de casa com a bacia cheia
de roupa para lavar na nascente. Passava sabão, punha folhas de maria-mole para clarear, quarava e só enxaguava quando as peças estavam
limpas de fazer gosto.
Entregava-se manhãs inteiras a essa tarefa estafante e ainda precisava encontrar
disposição para fazer o almoço e cuidar dos nove filhos ("os umbigos deles estão todos enterrados na cozinha. Naquele tempo, o povo tinha esse
costume"). Se bem que os moleques também tinham seus afazeres: não saíam para brincar enquanto não enchessem a caixa de água de 200 litros.
Cada um carregava uma determinada quantia e depois se via livre para escapar pelos matos e
matar passarinhos, como bem lembra Daniel, o Bira. Os sabiás sofriam nas mãos (ou melhor, no estilingue) dele.
Sem áreas de lazer ou praças, a vila se diverte com o seu time e com a paisagem à volta
- Hoje a Vila Lindóia está apinhada de gente. O caminho principal obedece ao traçado quase integral do velho carreiro que ligava o São Bento à
Nova Cintra. Imaginem o que significa para dona Teresa, que conheceu aquilo tudo no tempo da pedra sobre pedra, ver o ônibus passar bem em frente
da sua porta.
Pois é. A Vila Lindóia já tem até linhas de ônibus, mas ainda ostenta muitas ruas
estreitas, íngremes e sem a mínima atenção da prefeitura. Às vezes, sair de casa pode se transformar num autêntico martírio.
Não há áreas de lazer e nem praças e a alegria do pessoal fica por conta do Esporte Clube
Lindóia, que é presidido pelo Bira e instalou sua sede no Bar do Nico. A rapaziada se delicia com os lances de craques como o Zé
Banana, Boca, Lanzudo, Hélio, Chico e Hélcio.
Melhor que isso só o ar puro da Vila e a paisagem que se tem à frente. Quem mora lá,
constata o colosso de cimento armado em que se transformou Santos: observa o lagamar coalhado de navios e, para os lados da serra, distingue as
chamas da Petrobrás e o céu sempre enfumaçado, da vizinha Cubatão.
Com a desapropriação da área, o casal não sabe o que fazer ou para onde ir
Um casal que não tem onde morar
Muitos moradores sonham com a concretização da terceira
etapa das obras de interligação dos morros: bastariam 420 metros de estrada para o Morro de São Bento estar definitivamente ligado à vila do mesmo
nome. E, seguindo pelos morros, se poderia chegar à Rua Visconde de Embaré, na entrada de Santos, e vice-versa.
Embora o traçado seja curto, para permitir a sua abertura virá abaixo a casa de seu Gás
e de dona Maria, antigos moradores da Vila São Bento. E o que pode parecer uma simples desapropriação assume proporções muito maiores, já que a
Prefeitura oferece apenas Cr$ 40 mil pelo enorme chalé, com sete metros de frente, adquirido graças a noites de trabalho e muitas economias.
Seu Gás e dona Maria não sabem dizer ao certo o tamanho da área que lhes pertence.
Sabem apenas que ficarão na rua caso a Prefeitura não lhes garanta um outro lugar para morar ou, pelo menos, ofereça quantia que lhes permita
arranjar um outro cantinho. Eles não têm filhos e o salário de aposentado do seu Gás mal daria para pagar um aluguel. E como fazer para se
vestir e comer?
Dona Maria passa as horas chorando pelos cantos. Já cansou de ir à Prodesan, à Prefeitura
e à sede do PDS atrás do prefeito Paulo Gomes Barbosa. Ele nunca deixou de recebê-la, mas encaminha para um secretário ou outro. E a mulher não
encontra outra alternativa se não andar de corredor em corredor, de gabinete em gabinete.
"Para onde é que nós vamos? Um terreno, sem casa nem nada, aqui mesmo na Vila, já custa
Cr$ 2,5 milhões. A casa ali da frente estava à venda, por Cr$ 4,5 milhões. O que eu já chorei na Prefeitura...", diz dona Maria, lembrando que já
fez de tudo para encontrar uma solução para seu caso.
Tentou um plano de moradia popular com a Cohab, mas o marido, com seus 58 anos de idade,
não goza desse direito. Também não pôde pleitear um financiamento da Caixa Federal por causa da idade. Não se conforma com isso e indaga: "E o
presidente Figueiredo, já não tem 65 anos de idade?"
O desgosto e a tristeza ficam patentes nos rostos de dona Maria e de seu Gás. Nunca
se viram numa situação como essa, sem saberem o que fazer ou como proceder. Não sabem se terão uma velhice tranqüila. |