Por esses caminhos, passaram os
primeiros moradores
O
mosteiro vistoso, branquinho, cercado por árvores e que hoje abriga o Museu de Arte Sacra, dá uma idéia de paz e tranqüilidade. Mas existe muita
movimentação ao seu redor, exatamente nas encostas que abrigam os milhares de moradores do Morro e da Vila São Bento. São núcleos populacionais
muito antigos, onde havia sítios, alambiques, abacateiros e jamboleiros enormes.
Aos poucos, graças ao esforço de valentes desbravadores do alto - principalmente portugueses
vindos da Ilha da Madeira - os carreirinhos pedregulhentos foram sendo transformados em escadarias largas e ruas calcetadas.
Naquele tempo, a Prefeitura fornecia material para tornar possível as melhorias, mas hoje em
dia nem isso faz. E mais do que nunca esses núcleos precisam de atenção, porque o crescimento populacional desordenado gerou sérios problemas de
segurança nas encostas. Os morros não ganham obras de contenção e nem serviços mínimos, como a desobstrução de galerias pluviais e remoção dos
famigerados lixões, que são grandes focos de doenças.
Na vila, tomada por casas, faltam praças e áreas de lazer
Uma casa de telha e a vida de um lugar
Quem já viu uma casa com paredes de telha? Pois em Santos
existe uma. Fica na Vila São Bento e está intimamente ligada à história desse núcleo. História, aliás, bem interessante e que remonta a séculos
passados.
A Vila de Brás Cubas apenas engatinhava. Igreja mesmo só havia a do Carmo, que tinha sob
sua jurisdição a orada do Monte Serrate. Os moradores começaram a sentir necessidade de mais templos e entraram em contato com os franciscanos.
Estes chegaram aproximadamente em 1640 e, nos alagadiços do Valongo, iniciaram a
construção de seu convento. Depois vieram os beneditinos, que se entusiasmaram com a encosta do morro no final da Rua dos Curtumes (atual Rua São
Bento). Existia, ali, uma ermida dedicada a Nossa Senhora do Desterro. Pertencia ao sítio de Bartolomeu Fernandes Mourão, que chegou por essas
paragens como integrante da armada colonizadora de Martim Afonso de Souza, em 1532.
O sítio de Bartolomeu, mestre-ferreiro, aproveitava as terras das encostas e a água que
brotava cristalina servia não apenas aos moradores como também às redondezas e, mais tarde, por meio de um aqueduto, ao convento dos franciscanos,
no Valongo. A mestre Bartolomeu se atribui a construção de uma gruta ligando a Igreja do Valongo às suas terras, com saída para um esconderijo na
Nova Cintra. Nela os santistas se escondiam para fugir da invasão dos piratas.
Doze vacas e um touco como parte da doação feita aos beneditinos - Quando os
moradores do Sítio do Desterro souberam do interesse dos beneditinos pelo local, trataram de facilitar as coisas. Com a morte de Bartolomeu, sua
esposa Isabel e o único filho do casal doaram tudo aos religiosos, inclusive escravos e mais doze vacas e um touro.
Os beneditinos se estabeleceram no sítio em 1650 e começaram a erguer o Mosteiro de São
Bento que, segundo os entendidos, se destaca como um exemplo perfeito da arquitetura barroca brasileira. Mas o sítio propriamente dito aos poucos
caiu no abandono: o gado desapareceu e as terras deixaram de produzir.
Pelo que se sabe, só no século passado [N.E.: século XIX]
o velho Desterro começou a receber novamente moradores. Eram trabalhadores e escravos que desconheciam o passado histórico do lugar e iniciaram a
formação de um núcleo que mais tarde viria a ser chamado Vila São Bento.
Até um asilo já funcionou lá há quase 100 anos. E é esse tal asilo que teve suas paredes
construídas com telhas francesas. O que resta da imponente edificação pode ser visto da Avenida Visconde de São Leopoldo, por quem segue em
direção ao Centro. Mais de perto, fica bem visível a data de construção: 1889.
Apesar de sua arquitetura tão peculiar, ninguém se interessa por ela. Caso o Poder Público
não execute uma reforma urgente, em breve estará totalmente destruída. A estrutura de madeira apodreceu e as telhas despencam aos poucos, pondo em
risco a segurança de quem vive ao redor.
E como mora gente por ali! Junto ao antigo asilo foram construídas várias moradias,
formando um casarão que os moradores chamam de navio, devido ao porte e ao número de quartos e porões que possui.
Esse acúmulo de famílias num espaço tão reduzido já dá uma idéia do que seja a Vila São
Bento. A ocupação de vários pontos se deu desordenada e clandestinamente e o pessoal suou muito para conquistar melhores condições de habitação.
Em 1949, os moradores se uniram em torno de uma sociedade tida como pioneira no Brasil.
Eles se entregaram ao trabalho de calçar ruas, eliminar matagais e instalar manilhas para escoar as águas pluviais e servidas. Tudo era feito em
regime de mutirão, com material cedido pela Prefeitura. Esforço e trabalho nunca faltaram, como bem podem provar moradores antigos como seu
Américo das Gaiolas, seu Branco, seu Lima e seu Gás.
Muitos abacateiros, bailinhos e dois times de futebol - Apesar do sacrifício, o
pessoal guarda boas recordações de outros tempos. Dona Maria do Gás gosta de relembrar aquele mundo de pés de abacate espalhados pelas
encostas, disputando com os cajueiros o privilégio de serem maiores e mais vistosos. E a nascente do Zé Preto bem que dava um toque
romântico ao lugar.
O seu China, na condição de primeiro dono de venda da vila, fornecia pão e leite
para todos. E não havia quem não se deliciasse com as salsichas que preparava no álcool! O bar continua firme, logo nos primeiros metros da
subida, já teve muitos donos e atualmente está sob os cuidados do Edélsio, o Gordo, e da Odelce, filhos de seu China.
Os dois se criaram ali e a Odelce nunca esquece o dia em que foi coroada rainha do Seta
Futebol Clube. A agremiação promovia animadas partidas de futebol e ainda bailinhos nos fins-de-semana. Esses bailinhos eram realizados no colégio
das freiras, que ficava pegado ao Morro Belmiro, e a Odelce fazia questão de limpar o chão: cuidadosa como ela só, passava parafina para os casais
deslizarem melhor e darem os passos ousados exigidos pelo twist e pelo chá-chá-chá.
Mas o Seta FC desapareceu, levando o mesmo fim que o Vila São Bento Futebol Clube. Faltou
união. Faltou dinheiro. Ficaram as recordações daqueles tempos, e saudades dos lances de Clodoaldo, que jogou pelas duas equipes.
Hoje a Vila São Bento mais parece um emaranhado, tal o número de casas espalhadas por
todos os cantos. Não restaram espaços livres para a construção de uma escola, de um posto policial ou instalação de áreas de lazer. Crianças como
o Marcelo, o Naldo, a Rita e a Ana vivem sonhando com um parquinho, desses com balanço, gangorra e escorregador. Olham os adultos como que
indagando por que não têm direito a isso.
Vala malcheirosa, mato e enchentes devido à negligência da Prefeitura - Uma
caminhada pelos inúmeros caminhos que cortam a Vila São Bento mostra que tudo anda muito abandonado por lá. A Prefeitura não providencia a limpeza
de terrenos baldios e nem das bocas-de-lobo, que não conseguem absorver nem metade da água, quando a chuva cai forte. Conclusão: as escadarias
ficam parecendo cachoeiras, capazes de arrastar alguém menos cauteloso. E aquele mundo de água provoca enchentes no final da Avenida Bandeirantes,
principal acesso à Vila, obrigando o pessoal a desviar por um terreno baldio.
Não raro, com chuvas fortes, a vala que corta o morro de água alto a baixo transborda,
levando esgoto e tudo quanto é tipo de sujeira para dentro das casas e quintais. Em alguns pontos é coberta, mas em outros não, provocando mau
cheiro e contribuindo para a proliferação de ratos e insetos. Sem contar que serve como depósito de lixo para algumas famílias.
A obra de construção da sede da sociedade de melhoramentos está parada há uns dois anos,
por falta de dinheiro e apoio da Prefeitura. O que foi feito se estraga aos poucos, o mato toma conta de tudo. E o término seria fundamental, já
que a sede abrigará um posto de assistência médica. Atualmente, o posto funciona em um imóvel pertencente ao presidente da SM, Nivaldo Francisco
do Nascimento, que resolveu cedê-lo para evitar que os moradores ficassem sem médico.
É a comunidade, mais uma vez, compensando falhas do Poder Público. E evitando que o antigo
sítio do Desterro, por onde pastaram as vacas e os touros de dona Isabel, fique tão desterrado no que diz respeito a melhorias.
Uma casa feita com telhas francesas, quem diria?
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