Quadro de Benedito Calixto mostra o famoso Porto do Bispo, tradição do Valongo de outros tempos
No largo, um ancoradouro de canoas
Vejam se pode uma coisa dessas: moradores de diferentes
bairros serem rivais a ponto de saírem aos tapas pelo meio da rua.
Pois isso acontecia em Santos, entre o pessoal do Quartéis e do Valongo. A princípio, tudo não passava de
bate-bocas entre quarteleiros e valongueiros. Mas as hostilidades evoluíram a ponto de, quando uns e outros se encontravam, armarem
sérias lutas corporais. À noite, sentinelas se postavam entre os bairros para evitar surpresas.
Para se entender por que isso ocorria, é bom recordar um pouco da história de Santos. A Cidade começou lá para
os lados do Outeirinho de Santa Catarina, onde Brás Cubas lançou, em 1543, os fundamentos de uma nova povoação. Com o tempo, se estendeu para o
Ocidente, ou seja, para os lados do que viria a ser o Valongo.
No núcleo antigo, ficou residindo gente da terra, ocupada em pescaria e corte do mangue. No novo, passaram a
viver famílias abastadas, geralmente portuguesas. E este se consolidou definitivamente quando os franciscanos resolveram instalar em Santos o seu
convento. Em 1640, começaram as obras, que incluíram a famosa e ricamente ornamentada Igreja de Santo Antônio do Valongo.
Um porto que contribuiu para o progresso social e comercial do bairro - O Valongo pode ser considerado,
efetivamente, um dos núcleos formadores da Vila de Santos. Era cortado por um riacho que corria na altura da atual Rua São Bento e se alargava no
final, servindo como um ancoradouro de canoas. E Porto das Canoas ficou sendo, até que os populares começaram a chamá-lo de Porto do Bispo, por
motivos que saberemos adiante.
Desse ancoradouro, as embarcações partiam para o oceano ou demandavam para Cubatão, Piaçagüera e Raiz da Serra.
Não existia estrada para o planalto e largos trechos da planície santista se constituíam em verdadeiros mangues, tomados por rios.
Como não havia cais, mas apenas rústicos trapiches de madeira, as águas do portinho invadiam a área hoje ocupada
pelo Largo Marquês de Monte Alegre e estação ferroviária. Não raro, alagavam o Convento de São Francisco (que ficava pegado à igreja e foi
demolido), causando transtornos daqueles.
Além das mercadorias lá descarregadas e carregadas, muita gente importante se serviu do Porto das Canoas.
Inclusive um bispo. Daí a denominação Porto do Bispo.
Dom Mateus de Abreu Pereira chegou em 1797, em meio a consagradoras homenagens da população católica da
pequenina Santos. Veio para suceder a dom Manuel da Ressurreição no bispado da Província e permaneceu quase um mês na região, em visita a capelas
e fiéis. Acabou conquistando o coração dos santistas. Quando partiu para São Paulo, uma grande comitiva fez questão de acompanhá-lo até lá.
A Igreja de Santo Antônio quase foi destruída pela Inglesa,
mas o santo fez um milagre e a população se uniu para impedir a destruição
Santo Antônio faz milagres e rivais se unem para salvar sua igreja - Sem dúvida nenhuma, o Porto do Bispo
muito contribuiu para o Valongo se tornar um bairro de invejável progresso comercial. E, com o crescimento do Valongo, surgiu a rivalidade
histórica que já deu tanto o que falar.
O bairro denominado Quartéis ficava para os lados da atual Rua Xavier da Silveira e espaços periféricos,
inclusive a atual Praça da República. Os quarteleiros não admitiam a hegemonia social e econômica dos valongueiros e, em
conseqüência, surgiram os constantes conflitos e as ruidosas intervenções da polícia. A luta contínua só teve trégua no histórico episódio de
Santo Antônio.
Essa história merece ser contada: em 1860, a empresa britânica concessionária do transporte ferroviário entre
Santos e São Paulo adquiria toda a área ocupada pelo convento e pela igreja para construir seu terminal. Logo a notícia tomou conta da Cidade: o
templo de Santo Antônio do Valongo ia ser atacado pelos operários da Inglesa e demolido para fins industriais.
Apesar dos protestos, as obras começaram e o convento veio abaixo. Mas, quando as picaretas alcançaram o altar
onde reinava Santo Antônio, não houve jeito de se retirar a pequena imagem. Leve e solta, ao ser agarrada pelos operários tornou-se pesadíssima e
não havia quem a retirasse do seu nicho. Os próprios engenheiros ingleses acompanharam o fenômeno e o Visconde de Embaré decidiu perpetuar o ato
colocando ao lado do santo uma bengala.
Não demorou muito para a população inteira saber do milagre. E foi aí que os valongueiros decidiram pedir
ajuda aos rivais. Afixaram na parede da Matriz de Santos, que era a igreja oficial dos quarteleiros, um apelo: "Quarteleiros - gente
brava como nós! Querem destruir Santo Antônio! Estrangeiros pretendem pisar as nossas tradições e os nossos brios! Santo Antônio acaba de fazer um
milagre! Façamos uma trégua em nossas diferenças! Somos todos santistas! Armados das nossas armas e da nossa coragem, marchemos contra os
profanadores! Eia! Os homens do Valongo os esperam para o cumprimento do dever comum. Os Valongueiros".
Essas palavras bastaram. Logo depois da afixação do recado, um exército armado de paus, pedras, bodoques,
enxadas, picaretas, foices e muitas espingardas saía da Praça da Matriz e seguia - entre gritos, vivas e expressões de revolta - para a Igreja de
Santo Antônio. Essa gente toda se juntou com a do Valongo, igualmente armada, e os operários da Inglesa não tiveram outra alternativa senão
deixar de lado a relíquia santista.
A igreja permaneceu intacta, porque os populares mantinham guarda para evitar a aproximação dos destruidores.
Enquanto isso, a mesa da Irmandade de São Francisco da Penitência pedia a intervenção do imperador Dom Pedro II.
A situação perdurou até novembro de 1861, quando chegou a Santos um aviso do Império, dando conta de que Dom
Pedro atendeu aos apelos do irmão ministro da Ordem de São Francisco. Determinou aos ingleses que respeitassem a relíquia santista e entregou a
igreja, seus pertences e dependências à guarda e à propriedade da Ordem.
Tratou-se, sem dúvida, de uma grande vitória da população organizada. Só que, no dia seguinte à chegada do
aviso, eram declaradas reabertas as rivalidades entre valongueiros e quarteleiros...
O prédio já foi o maior do Brasil, mas continua esquecido e abandonado - Brigas e interesses à parte, o
certo é que por muito tempo Valongo e Quartéis se constituíram nos limites de Santos. E, por pelo menos dois séculos, a Igreja do Valongo e o
Mosteiro de São Bento dominavam soberanos a paisagem daqueles lados onde se situam. Falava-se até na existência de um túnel ligando a igreja ao
mosteiro. E não deve ser mera coincidência o fato de, há uns cinco anos, os operários terem deparado com um túnel misterioso, quando executavam as
obras de alargamento da Rua São Leopoldo.
No século XIX, o Valongo ganhou outras edificações de grande porte. Uma delas é o famoso prédio da estação
ferroviária, inaugurado a 16 de fevereiro de 1867.
Em frente dele ficam os não menos famosos sobradões da Marquês de Monte Alegre: são dois edifícios de construção
idêntica, datados de 1867 e 1872, que formam um só, composto de dois pavimentos monumentais que se completam.
Manoel Joaquim Ferreira Neto o construiu para abrigar o governo da Província, que seria transferido para
Santos... Era considerado o maior prédio do Brasil na época e abrigou a Câmara e a Prefeitura até a construção do Paço, em 1939.
Como um reflexo evidente do que é o Valongo hoje, a grandiosa edificação toda azulejada de matizes azul e
branco, ornamentada com artístico gradeado, se encontra no mais completo abandono. Abriga bares e vários hotéis e perdeu muitos detalhes da
arquitetura original.
Mas continua imponente, apesar de tudo, e à espera de mais atenção por parte dos poderes públicos.
A estação ganhou de volta a cobertura do século XIX
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