Criança é o que mais se vê na favela de Vila Gilda, a maior de Santos
Moradores estão assustados: apareceu o dono do dique
Só faltava essa: depois que os moradores de Vila Gilda
aterraram o mangue, transformaram o lodo em terra fértil, dedicaram anos e mais anos de suas vidas para melhorar as áreas sobre as quais viviam,
aparece uma família se dizendo dona delas. O pessoal anda assustado e desorientado: dois moradores concordaram em fazer negócio e comprar os
terrenos para se livrarem de problemas, mas outros estão dispostos a lutar até o fim, alegando que nos 10, 20 ou mais anos em que se encontram lá,
nunca souberam que aquilo tivesse um proprietário.
Tudo começou no final do ano passado, quando um homem chamado Amorim se apresentou para moradores do Caminho da
Capela como procurador da família Alberto de Luca, que segundo ele seria dona dos terrenos. Só que os vizinhos são testemunhas entre si de que as
águas do Rio do Bugre avançavam muitos metros adiante, e se hoje os tais terrenos estão habitáveis, tudo se deve ao esforço daquela gente simples
que cansou de jogar aterros para afastar a maré para longe.
Oneida Salvador do Ouro mudou-se para o Caminho da Capela quando aquilo tudo não passava de um manguezal. O
mesmo aconteceu com a paraibana Rosilda Medeiros dos Santos Silva, 23 anos, de Vila Gilda. Ambas foram procuradas pelo Amorim (ninguém sabe dizer
o seu sobrenome) e não se conforma com o que ouviram dele.
"Aqui está toda a minha vida. Aqui está tudo o que fiz", diz dona Rosilda, mostrando o quintal aterrado, cercado
por muros, e o sobradinho em construção. debruça-se sobre os blocos para mostrar até onde a maré atingia e conta: "Eu, meu marido e meus três
filhos carregamos aterro em bacia, na cabeça, porque não tínhamos nem carrinho. Tô inutilizada da espinha por causa disso. Já pus nesse
terreno muito dinheiro. Principalmente, deixei nele minha saúde".
Como a garotada não tem onde brincar,
transforma as águas podres do canal do Rio do Bugre num lugar de muita diversão
Trabalho em vão? - Dona Rosilda se mostra inconformada. Quando chegou ao dique, com os braços esticados
não conseguia alcançar o fundo do seu barraco. Ele ficava a uns dois metros de altura do chão para não ser atingido pelas águas. O mangue era tão
bravo, dava tanto mosquito-pólvora e botuca que a sogra lhe disse: "Olha que os bichos vão comer meu filho".
Aos poucos, ela e o marido foram ajeitando a área. À medida que os filhos cresciam, se punham também a trabalhar
para acabar com a lama podre. "Teve dia em que o almoço e o jantar da gente foi uma lata de sardinha e uma cabeça de repolho. Acabei-me no tanque.
Tudo para guardar dinheiro e comprar aterro. Agora que está tudo direitinho aparece o dono do terreno?", pergunta dona Rosilda, revoltada.
Às vezes, a família jogava o aterro, mas o chatão de areia que sempre passa pelo Rio do Bugre deixava a
água revolta e a terra era arrastada. Se perdiam dinheiro e horas de trabalho. Para acabar com esse problema, dona Rosilda e o marido decidiram
construir o muro: e lá se foram para dentro do mangue preparar o alicerce e assentar os blocos.
Áreas de marinha - Essa paraibana esforçada e valente não pretende ser passada para trás de uma hora para
outra. Ainda mais que tem certeza que seu terreno nunca teve dono nenhum.
"O que eu sempre soube é que se trata de área de marinha", acrescenta dona Rosilda, lembrando-se que, numa
ocasião em que os jornais anunciavam o fim de Vila Gilda, há uns 18 anos, correu ao Serviço de Patrimônio da União. O delegado regional
tranqüilizou-a: "More lá 100 anos ou um dia, se a senhora quiser. Só se a União precisar, ela toma a área. Ninguém mais pode despejar alguém de
lá". Ela guardou tudo direitinho e nunca esquece que o delegado ainda lhe deu o dinheiro da condução para voltar.
Não é à toa que ela e os moradores das imediações andam muito desconfiados do tal procurador Amorim. Um homem
que, segundo eles, sempre chega à noite e nunca se encontra no telefone que ofereceu.
Em meio às brincadeiras, eles esquecem a barriga que ronca de fome
e a falta dos pais, que saem para trabalhar
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