Em alguns locais, os barracos se estendem por mais de 200 metros, mangue adentro
Desfavelamento não vem. E o pessoal fala em união
Os meninos nadam, mergulham felizes e acabam bebendo o
líquido podre, que exala um forte mau cheiro. Nem se importam que as águas do canal do Rio do Bugre estejam poluídas por esgoto, negras feito
carvão: elas representam a maior alegria para os moleques que moram na maior favela de Santos e não têm onde brincar.
São mais de 20 mil pessoas vivendo sobre o mangue, em barracos aglomerados em mais de quatro quilômetros de
extensão. Os da frente parecem mais firmes e habitáveis. Mas, à medida que se caminha por aquelas estreitas passagens mangue adentro, surgem
casebres muito precários, onde nem bicho merece viver.
As crianças, barrigudinhas, volta e meia despencam dentro das águas que recebem todo o esgoto e o lixo que a
comunidade produz. Vivem doentes, passam fome, sentem carência de afeto. Altamente insatisfeitas, muitas delas, certamente, irão engrossar a
estatística que aponta a existência de mais de 18 milhões de menores delinqüentes só no Estado de São Paulo.
"Acho que toda essa gente nasceu clandestina, porque não tem onde ficar, não tem onde morar, trabalhar ou
estudar. Quando fica doente, não tem médico. Se a pessoa nasce, é porque tem o direito de viver. Mas os poderosos não querem garantir o direito do
pobre viver e trabalhar na terra e ser enterrado nela quando morre", comenta Narciso Vitorino, morador do dique há 19 anos. Como tantos outros,
foi para lá pensando em sair o mais cedo possível. Esse dia ainda não chegou.
A história de dona Isabel, que se suicidou bebendo as águas podres do canal - A estreita faixa de terra
que forma o dique se subdivide em três caminhos: o da Capela, o São José e o São Sebastião. Por eles desfilam porcos, cabras e cavalos; homens
arrastam carrinhos com ferro-velho e lavagem; mulheres seguem apressadas com a filharada atrás. O dia-a-dia é carregado de miséria e desolação, é
cheio de histórias inacreditáveis.
Histórias como a de dona Isabel, que, um dia, decidiu beber a água lodosa do canal que margeia o dique para
acabar de uma vez com a vida de sofrimento. Quarentona, mãe de oito filhos de diferentes pais, já tentara o suicídio em outra ocasião: ateou fogo
em si mesma, de tão triste que ficou porque o filho mais velho a chamou de vagabunda.
As cicatrizes ficaram presentes no corpo e se tornaram mais visíveis naquele Natal em que estufou a barriga com
água podre. No hospital, recebeu atendimento de indigente. Não resistiu. Morreu. Não havia dinheiro para o caixão. Os amigos fizeram uma
vaquinha e até cobriram dona Isabel com rosas brancas, como ela queria. Foi a última homenagem dos vizinhos para aquela que, apesar de ser
chamada pelo fiho e parentes de vagabunda, conseguiu, sozinha, 1.307 assinaturas para o abaixo-assinado que assegurou uma grande vitória da Vila
Gilda: a instalação de um telefone público no Caminho São José, 71.
Dona Isabel desistiu da luta, mas deixou sua experiência para os outros. Seu José Avelino não tem nenhuma
dúvida: "O rico não vai fazer nada pelo pobre. A capacidade do pobre é o próprio pessoal. Unido e organizado. Todo mundo junto pode fazer da Vila
Gilda um negocinho melhor".
José Avelino considera a vida na favela cada vez pior e sente falta de uma sociedade de melhoramentos forte,
capaz de mobilizar os moradores em torno de reivindicações comuns. "Tem família com 11, 12 filhos em cima desse dique. O pessoal precisa se unir,
formar uma corrente, como diz a história".
Desfavelamento se resume a promessas e moradores querem a posse da terra - Agora, como a família de José
Alberto de Luca começou a reivindicar a posse de terras em Vila Gilda (leia matéria nesta página), mais do que nunca
José Avelino sente falta de uma SM bem estruturada, que dispusesse de um advogado para estudar a questão.
Assim, a luta pela posse do terreno, para garantir a permanência da terra, desponta como a principal, nesse
momento, para o pessoal de Vila Gilda. Conforme diz Narciso Vitorino, o morador não tem garantia nenhuma, "só a de Deus".
O difícil equilíbrio sobre a água
Ele
considera todos aqueles favelados como vítimas do Sistema e acha que o Governo deveria dar condições para que todos morassem bem, garantindo-lhes
pelo menos o direito fundamental à moradia. Ao mesmo tempo, não nutre ilusões em relação aos projetos de desfavelamento que vez ou outra se
anuncia: "Isso é conversa para criança. Quem acredita no sistema da casa popular está completamente enganado. Para conseguir uma moradia, o
trabalhador tem que ganhar no mínimo três salários mínimos. O favelado tem essa renda mensal?
Por esse motivo, muitos da Vila Gilda não garantiram seu apartamento no Conjunto Dale Coutinho. E o que mais
revolta seu Narciso é saber que, no bloco E-6 do conjunto, um apartamento permanece fechado, pois foi comprado por um engenheiro que jamais
precisará dele.
Mesmo diante dessa realidade, muita gente se entusiasmou quando, há uns dois meses da eleição, o então
presidente da Sociedade de Melhoramentos de Vila Gilda, Manoel Joaquim Lopes, o Maneco Tamanqueiro, anunciou que estava quase certa a
destinação de casas para o pessoal. Só que, teriam direito apenas os sócios da entidade.
Segundo disse na época, com a ajuda de um político do PDS, que se reelegeu vereador, se conseguiria 500 casas em
Samaritá. E o prefeito construiria outras no morro e no Saboó para acabar com a favela. Naquele dia, muita gente saiu da assembléia com a proposta
para entrar de sócio na SM. Mas, passada a eleição, ninguém mais ouviu falar nas tais casas populares.
A luta por creches, policiamento e mais telefones públicos - Por essas e por outras, muita gente vem se
convencendo de que não restam muitas alternativas para a Vila Gilda, se não conquistar melhorias capazes de garantir melhores condições de vida.
Conforme diz dona Josefa Santana dos Santos, por enquanto a favela pede mais telefones públicos, um posto policial e uma creche. E certamente pode
se tornar um lugar melhor para se viver se as pessoas fizerem como ela, que planta folhagens e até um pé de pimenta nas laterais do estreito
caminho que leva à sua casa. Sobre o mangue. |