Largo da Pompeba e Rio São Jorge proporcionam bonita vista quando refletem o sol
Zé Ilhéu e uma história que não tem final feliz
Antes, muito antes de alguém pensar em transformar o Bom
Retiro em um lugar habitável, uma família vivia lá, no alto do Morro das Palmeiras, contemplando a Cidade a seus pés.
José da Costa, o Zé Ilhéu, passou mais de 30 anos de sua vida naquele recanto tranqüilo e bonito em
companhia da mulher, que fora escrava em outros tempos (ver matéria nesta página), teve filhos, viu nascer os netos. Até
deu nome ao morro, ele ficou conhecido como Morro do Ilhéu. Mas nada disso impediu que um dia tivesse que ir embora às pressas, deixar para trás o
que construíra em anos e anos. Os donos requisitaram a área.
Quem se revolta muito ao contar essa história é Maria Elisabeth Vieira, neta de Zé Ilhéu. Ela não esquece
o dia em que os homens chegaram com máquinas pesadas, ameaçando pôr a casa abaixo, caso a família não partisse. Os diretores da Imobiliária Bom
Retiro negam essa versão, mas ela sustenta que é a pura verdade.
Maria Elisabeth conta que o avô, português, fugiu para o Brasil durante a I Guerra. Não agüentou mais as
privações, a insegurança, o medo. Buscou refúgio no Brasil e descobriu que naquele morro, na entrada de Santos, poderia ficar escondido do mundo,
aproveitando aquelas terras férteis, onde crescia de tudo. Logo percebeu que não foi o primeiro a chegar por lá: encontrou as ruínas de uma
olaria. Havia um forno enorme, de paredes escurecidas e tijolos grandes, bem maiores do que os usados hoje. O trabalho cuidadoso de negros
escravos, pelo que se diz.
Zé Ilhéu não deixou as terras improdutivas: plantou cana de ponta a ponta do morro, montou um alambique e
preparava uma pinga adocicada, gostosa como ela só, que ficou conhecida como Morrão do Ilhéu. Os mais antigos na certa se lembram.
Os filhos e netos gozavam da delícia de viver em um lugar amplo, em contato com a natureza. Gostavam de entrar
mato adentro para catar coquinho e jambolão. Quando as coisas apertavam, estavam prontos para ajudar: iam pescar no Rio São Jorge, pegar
caranguejo ou ostra. Naqueles velhos bons tempos, o rio não era poluído, dava peixes graúdos e com fartura. Uma beleza.
Para que não houvesse ameaças à vida, que levava, Zé Ilhéu resolveu pagar aluguel pela terra que ocupava.
Só que, ao fazer isso, perdeu a condição de posseiro. Quando a Imobiliária Bom Retiro comprou tudo e requereu a desocupação, a família ficou sem
amparo legal.
Segundo Maria Elisabeth, o avô relutou muito, achava que não podiam mandá-lo embora de uma hora para outra. Mas,
temendo pela integridade física dos que moravam com ele, resolveu partir. A Imobiliária Bom Retiro deu em troca um lote no bairro mesmo, bem em
frente ao morro, mas Zé Ilhéu nunca pôde construir a casa. Quando morreu, o lote foi vendido pelos herdeiros, que compraram um barraco na
favela para dona Maria Elói, esposa, mãe e avó, passar os últimos anos de sua vida.
Nesse recanto pantanoso, uma imagem de antigamente
Uma velha escrava, com todo respeito
E foi na companhia daquele ilhéu que morava no Morro das
Palmeiras que ela passou os melhores anos de sua vida. Trabalhava duro no canavial, ajudava o marido no alambique, educou os filhos, mas ocupava
um espaço seu, estava livre do açoite.
Mas um belo dia o sonho acabou. Ou virou pesadelo, como dizia seu companheiro. Veio o despejo, a mudança
precipitada, a sensação horrível de ter que deixar para trás tudo que construíra. Tempos depois, a morte do marido, a vida na favela.
Hoje, fechada em um cubículo de um barraco sobre o mangue, ela não sabe que o sol não entra porque não há
janela: perdeu a vista devido à idade avançada. Quase não pode andar, mas os filhos e netos vão até ela para ouvir histórias.
Deitada sobre o travesseiro, cabelos envoltos em um lenço e cachimbo ao alcance da mão, ela reconhece a voz dos
que se aproximam. Às vezes parece chorar baixinho, balança a cabeça, prefere não trazer de volta velhas recordações. Mas volta e meia decerto o
peito fica apertado e dona Maria se põe a falar sobre os velhos tempos. Conversa, conversa e depois chora muito. Com o peito mais aliviado, dorme
feito criança. Quando recebe uma visita, na despedida demonstra toda sua lucidez ao pedir que lhe deseje uma boa sepultura.
Há de descansar em paz essa respeitável senhora.
As mãos de dona Maria estão trêmulas, perderam o vigor e a força ao longo do tempo. Mas ela ainda consegue
segurar o cachimbo, acendê-lo e pitar longamente. Repete o hábito gostoso que a acompanha em seus 106 anos de idade.
Maria Elói, uma vida tão longa quanto a extensão do seu sofrimento. Viu surgir o avião, o telefone, as mulheres
se desfazerem de seus longos vestidos, os homens virarem cabeludos. Mas na certa nada marcou tanto a sua vida quanto os anos de cativeiro.
Nasceu escrava, em Parati. Soube o que era o chicote do feitor e todos os outros instrumentos engenhosos que
persuadiram o negro a colaborar na criação das riquezas do Brasil. Menina ainda, guardava o desejo de ser livre. Não agüentava mais: tinha horror
à chibata, ao tronco, às torturas.
Decidiu enfrentar todo o perigo. Fome, sede, flechas dos índios capitães do mato. Preferia o desconhecido à
prisão. Fugiu, conseguiu chegar ao porto, veio dar em Santos.
Corria o ano de 1888, tinha 12 anos de idade. Quando chegou, soube da libertação dos escravos. Ficou feliz, ia
poder andar livremente pelas terras deste país de cachoeiras tranqüilas e céu azul.
Dona Maria, 106 anos de idade, foi escrava e chora ao relembrar o passado
|