Tranqüilidade e harmonia caracterizam essas ilhas pouco visitadas
Ilha das Neves
Um morro azulado, onde um homem mora sozinho há 29 anos
A proa do barco desliza molemente sobre a lama escura.
Seu Nelinho chega à porta do barraco. Um barraco que parece perdido entre a mata exuberante. O homem acena de longe e o cumprimento
mais afetuoso fica para depois. No momento, o sol dá um espetáculo. Surge feito uma bola de fogo por trás dos morros ao longe. As folhas das
árvores parecem prateadas. O mar fica vermelho, cor-de-rosa, amarelo. É o amanhecer na Ilha das Neves.
I - Quem, do cais do Valongo, olha o
mar à direita, descobre um morro meio azulado, bonito de se ver. É a Ilha das Neves. Uma das tantas ilhas que fazem parte de Santos e que a
maioria dos santistas sequer ouviu falar.
Das Neves? Sim. Porque já nevou lá. Os flocos brancos cobriram tudo. Quando derreteram e se misturaram à água do
mar, deixaram uma cor azulada no ambiente, para ninguém nunca esquecer.
É o que se conta. É o que está na boca do povo. E quem duvida da sabedoria do povo?
II - Com um barco a remo e vento a
favor, em uma hora se chega à Ilha das Neves, a partir do cais do Valongo. Com um barco a motor, não se leva mais do que 10 ou 15 minutos. Mas,
bom mesmo é ir bem devagar, contemplar o que fizeram com a Ilha Barnabé, observar outros horizontes, constatar o quanto o mundo civilizado é
pequeno e difuso quando visto da imensidão do mar.
III - Se a ilha parece ser tão
encantadora quando vista de longe, que dizer quando se começa a percorrer sua mata, desvendar seus segredos e mistérios. De um lado, uma cachoeira
de água leve e transparente; de outro, as ruínas do que parece ter sido um castelo; no alto, os tabuleiros que, dizem, ocultam restos de outra
civilização; ao longo das encostas, casas abandonadas, resquícios de tempos distantes.
IV - Daria para dizer que a ilha é um
paraíso, se o termo não estivesse tão desgastado, transformado em lugar comum.
Nesse lugar, seu Nelinho vive sozinho há 29 anos. Não solitário de tudo na ilha, feito ermitão.
Não está de mal com o mundo, embora não goste da correria das cidades e não consiga entender a miséria, a existência de tantos ladrões e
marginais.
Divide a Neves com apenas mais cinco pessoas. Uma delas, seu Plácido, mudou-se para lá há uns quatro
anos, encontrou uma terra boa para cultivar. Plácido no nome, plácido o lugar que escolheu para morar. Volta e meia, familiares o visitam e seu
chalé ganha um colorido diferente.
Os outros moradores tomam conta de um bananal imenso, de onde já saiu muita banana para exportação. São poucos
homens para cuidar de tudo aquilo e o mato insiste em se espalhar.
V - Uma caminhada
à direita do chalé de seu Nelinho. Muitas descobertas.
Uma casa quase intacta, outra nem tanto, mais à frente um alicerce envolto em cipó. Um forno de barro oculto
entre uma moita, um enorme tanque de cimento coberto de limo. Uma nascente aqui, outra acolá. Em alguns pontos o chão é bem úmido, não só por
causa das nascentes, mas porque o sol mal consegue penetrar por entre os galhos das árvores.
A passos rápidos, em 20 minutos se chega às ruínas de uma igreja. A de Nossa Senhora das Neves, pelo que se
deduz da leitura do livro Lendas e Tradições de uma Velha Cidade do Brasil, de Francisco Martins dos Santos.
As paredes são grossas, feitas com enormes blocos de pedras, mas nem por isso resistiram ao tempo. Raízes e
galhos se espalharam entre elas, destruindo, demolindo.
Antigos moradores cuidaram de demolir um pouco mais. Procuravam os tesouros escondidos no túnel misterioso. Só
que ninguém nunca achou barras de ouro, jóias ou pedras preciosas. O túnel é extenso e escuro demais. Fica difícil percorrer mais do que alguns
metros. O vôo dos morcegos assusta.
E o que dizer daquele poço misterioso, encravado no piso superior da ruína: joga-se uma pedra por uma única e
pequena abertura existente e o eco que faz chega a impressionar. Tudo indica que o poço é enorme e há muita água no fundo.
Em 1850, atearam fogo na igreja, e hoje restam apenas ruínas
VI - Francisco Martins dos Santos, no
livro citado, revela alguns pontos mais. Diz ele que, nos primeiros quartéis do século, Nossa Senhora das Neves gozava de muito prestígio. Em seu
louvor, todos os anos se realizava uma procissão aquática: centenas de embarcações a remo formavam o cortejo, seguindo uma chata maior, onde iam o
andor e o pálio. Por último de tudo, ficavam os negros, escravos de todos os sítios, acompanhando os feitores e cantando um velório religioso.
Nossa Senhora das Neves era a protetora dos negros. A história de sua devoção no Brasil começou duas décadas
depois da grande importação africana. A santa branca e azul, como as cachoeiras e o céu do lugar onde os escravos agora sofriam, ficou sendo o
símbolo da esperança, o único refúgio.
Mas um dia, em 1850, alguém ateou fogo ao sítio e à Igreja de Nossa Senhora das Neves. Quando os negros deram
conta do que acontecia, até a imagem de madeira havia desaparecido entre os escombros. Desde então, acabou-se a devoção dos negros e suas
procissões tradicionais.
VII - Uma escadinha de pedra e a casa
de seu Chico Viola à frente. Encostado na porta, ele observa o bananal. Tempo de colheita, cachos prontos para serem cortados.
Respeitando o domingo, dia de folga, ninguém trabalha.
De um bambu improvisado em cano, escorre uma água transparente e gelada, que insiste em cair sobre uma panela de
alumínio fino e amassado, já cheia. Os patos não sossegam, as galinhas ciscam a terra. De repente, uma delas eleva uma pequena cobra no bico.
Lá tem cobra que é um nunca se acabar. "O senhor não tem medo?" O homem leva a mão à cabeça e responde: "Se a
pessoa for ter medo das coisas, não sai de casa, não faz nada".
Seu Chico Viola, seu mundo. Uma lição de vida.
VIII - Agora, uma caminhada à esquerda
do chalé de seu Nelinho.
Bambuais, jaqueiras, chapéus-de-sol, árvores desconhecidas, um pequeno morro. De repente, uma casa perto do mar.
Uma criança na janela, panelas secando ao sol, mulheres aproveitando a brisa e conversando. Filhos e amigos visitam seu Plácido.
Sorridente, ele pede para o pessoal reparar como estão bonitos os pés de mandioca, que plantou adiante. Este ano, a colheita vai ser das boas.
IX - A subida é um tanto fatigante,
mas vale a pena. Santos quase inteira e ainda pontinhas de Guarujá e São Vicente surgem à frente. A Ilha dos Bagres, poucos metros adiante,
proporciona um espetáculo à parte: selvagem, praticamente intocada, recantos cobertos por patos-d'água.
X - De longe se escuta o barulho da
cachoeira. Era o que faltava para completar a beleza da Ilha das Neves. Alguém, ninguém sabe quem, construiu um banco de madeira bem à sua frente,
do melhor lugar para se sentar e ficar cismando de onde vem toda aquela água. Água que escorre sem muita pressa, forma um pequeno rio e um tipo de
poço bom de se tomar banho em dias de verão.
Escalando a encosta e sempre acompanhando o curso de água que desce para não se perder, chega-se ao lugar que
parece ser um cemitério. Novas ruínas, tantas coisas para se explorar. Segredos para se desvendar na imensidão das Neves.
As poucas construções, perdidas na mata exuberante