As famílias se foram, mas restaram recantos pitorescos
Ilha das Neves
Um homem distante do mundo. E muito feliz
É no mínimo difícil entender por que uma pessoa decide morar
sozinha em uma ilha, se é que se pode entender tal coisa. Ainda mais quando se trata de uma ilha circundada por um mar danado, que quando cisma de
baixar deixa isolado por muitas horas quem nela estiver.
Mas a expressão no rosto e no olhar de seu Nelinho, o morador solitário, não carrega angústia, nem
tristeza ou revolta. Ele parece ser extremamente feliz e em nenhum momento se duvida que more ali por opção.
Sentado numa tora, cigarro de palha preso entre os dedos calejados, olhos azuis fixos em um ponto qualquer, ele
desfia sua história. "Como é que se diz... É assim. É assim a vida. Né?", são expressões que usa com freqüência para encerrar suas frases ditas
rapidamente, de um jeito bem catarinense.
São 29 anos na mesma ilha, na mesma casa. Tem 59 anos de idade e aparenta bem mais, por causa da pele maltratada
pelo sol forte, a barba quase sempre por fazer e a boca murcha, sem dentes. Em compensação, quando sorri o rosto se ilumina e ele parece uma
criança que acaba de ganhar o presente desejado.
Leonel Diogo Nunes, Nelinho ou Camarão. Nascido em Florianópolis, veio para Santos "no tempo da
última guerra do alemão". Ele explica: "Tempo de guerra, em todo lugar a situação fica difícil. Tudo racionado. E Santos sempre foi um lugar mais
evoluído. Corria mais dinheiro. Peguei a mãe e vim embora para cá".
Enquanto a mãe era viva, morava com ela e dois irmãos. Quando ela morreu, os irmãos casaram e ele partiu para a
Ilha das Neves. E nunca mais saiu. Poderia ter se casado com uma dona de padaria, mas não quis. Recusou um outro casamento porque a moça bebia.
Diz, em tom de brincadeira: "Pra pinguço já basta eu".
Fly, companheiro de todos os momentos
Em
outros tempos, muitas famílias - Seu Nelinho conheceu a Ilha das Neves há uns 38, 40 anos, em suas andanças como pescador. Tenta
reconstituir um pouco do passado: "O que eu escuto falar e li nos livros, é que os primeiros homens que aqui estiveram foram os jesuítas. Os
padres, né? Os escravos. Aqui morava muito inglês, espanhol, português e holandês. Então aqui foram constituindo família. Preto com branco, branco
com preto, inglês com português, português com inglês, espanhol, holandês e escravo. E aqui não chegava ninguém. Eram só eles mesmos que mandavam.
Matavam gente e jogavam na maré. Desse jeito".
Segundo seu Nelinho, dessa mistura toda surgiram as cerca de 200 famílias que viviam na ilha quando a
conheceu. O núcleo era bem populoso, havia até uma padaria e um alambique. E essa parte da história o José Carlos Pinto, do Morro do Pacheco,
confirma. Seu avô pescava com Nelinho e também morou nas Neves.
Um belo dia, lá pelo final da década de 1960, a draga Ster
começou a dragar o Largo do Caneú - para permitir a entrada de navios no Porto da Cosipa - e jogar a lama às margens dos sítios vizinhos. Isso
desequilibrou de tal jeito as marés, a ponto de ser impossível chegar à Neves ou sair dela determinadas horas do dia. A água secava, deixando pela
frente um lamaçal intransponível.
As famílias ficaram desgostosas, não dava para continuar vivendo lá. Partiram. Está certo que há uma entrada por
terra, pela Rodovia Cubatão-Guarujá, mas dois motivos inviabilizavam seu uso: a distância e o mato.
A última daquelas antigas famílias foi-se há uns seis ou sete anos, mas seu Nelinho não se assustou
diante das mudanças. "Eu sempre gostei desse lugar aqui, sossegado. Se bem que não presta mais para se viver. Só mesmo para mim, que vivo da
pescaria, sou sozinho e a despesa é pouca".
Vive às voltas com a pesca desde os oito anos de idade. Não tem barco a motor e nem deseja. "Motor custa
dinheiro, gasolina também. O dinheiro mal dá para a gente se manter, onde ganhar para o motor e a gasolina?"
Viver de pesca, morrer de fome? - Se tem uma coisa da qual seu Nelinho reclama é a falta de
incentivo para a pesca. Mas, a única vez que tentou se afastar dela, não se deu bem: empregou-se em uma indústria de produtos químicos e recebia
um ordenado depois de uns quatro ou cinco terem vencido.
Não se conforma com isso até hoje e gosta de frisar: "O dono da indústria era cheio do dinheiro, deputado
federal, fazendeiro, dono de 36 indústrias. Mas para pagar era um mendigo, queria ver os trabalhadores morrendo de fome". Decidiu voltar para a
pescaria e sempre que pode repete: "O progresso do País é o trabalhador, mas ninguém dá valor. Não é? O pobre, coitado, trabalhador, é que leva o
País para a frente".
Sobreviveu graças à pescaria, mas sabe o quanto isso é difícil hoje em dia. "Pessoa jovem que se meter com a
pesca vai morrer de fome. A pesca só dá um pouquinho para quem é empregado ou aposentado. Esses podem ganhar um pouquinho a mais, sempre ajuda",
enfatiza, recordando os bons tempos em que o mar à sua volta dava muito mais peixe. Eram tantos peixes de não precisar pescar, pois eles pulavam
para dentro do barco.
Ao mesmo tempo em que fala sobre as dificuldades que os jovens enfrentarão se decidirem ser pescadores, lembra
que nunca deu conselho para ninguém e não gosta de dar. "Sabe por quê? Porque se eu der um conselho e a pessoa se sair bem, vai ficar bacana de
situação. Depois, passa por mim e nem me conhece. Ainda me chama de bobo. Se calhar de ir no meu papo e se der mal, vai dizer que está
jogada na rua porque foi na minha conversa. Então não falo nada, sou neutro, não dou palpite".
Sozinho na ilha - Pés descalços, pisando firme no chão, sabe-se lá quantas vezes ele sobe e desce a
escadinha de acesso ao barraco. Um barraco bem velho, que certamente já teria caído, não fossem os dois enormes bambus que o sustentam. Bambus
mesmo, bem no meio da sala.
O tempo passou, e assentou poeira sobre os móveis, sobre a sombra dos móveis, sobre o chão. Deixou teias de
aranha nos cantos. Seu Nelinho nem liga e deixa claro o que pensa: "Por muito dinheiro que eu tivesse, esse negócio de luxo dentro de casa
eu não queria. Nunca tive ganância, nem nunca me interessei por esse negócio de riqueza. Nunca joguei na esportiva, nem nunca comprei bilhete. O
dinheiro é a minha saúde. Essa é a minha riqueza".
Se pudesse, gostaria de ter apenas uma geladeira dentro de casa. Na falta dela, encontra uma alternativa bem
adequada ao seu tipo de vida: "Minha geladeira é a bica. No tempo do calor, aquela água é gelinho mesmo. Dá até medo de tomar banho. Ali eu
conservo tudo. Minha geladeira é aquela".
Quando acende o fogão a lenha, a fumaça se espalha por todos os lados, escurecendo cada vez mais as paredes.
Arranjar lenha é a maior facilidade: aparece na porta, trazida pela maré. Em último caso se enfronha no mato e recolhe: uma fartura só.
Se segue vivendo esse jeito. Vez ou outra vai até o barbeiro, na Areia Branca, de onde traz uma pilha de jornais
para ler nas horas de folga. Faz feira, visita os irmãos, mas na maior parte das vezes sobrevive com o que a natureza oferece. Come o que pesca.
Come banana. Quando chega o tempo do abacate colhe alguns. Não gosta de jaca ou qualquer fruta muito doce, e explica porquê: "Minha vida sempre
foi amarga. Se a gente se acostuma com o doce, depois estranha o amargo".
Nunca ficou doente, nem precisou tomar remédio. "O remédio que às vezes eu tomo é um aperitivozinho, um
café. Quando estou com fome vou comer. É assim a vida".
Conversa, sim; fofoca não - Da solidão da ilha, seu Nelinho vê a Cidade. Mas a gente da Cidade não
o vê. Seus olhos percorrem a imensidão de água à frente, contempla os prédios distantes. As palavras saem firmes: "Nunca me embelezei por causa
disso aí. Eu podia ter muito dinheiro e mandar construir até uns 500, conforme a minha capacidade. Mas eu nunca gostei de morar num lugar desses.
A casa está caindo, olha aí, mas eu não troco por um daqueles. Prefiro viver livre, andar para lá e para cá. Apartamento? Apartamento é cadeia".
Esse homem que já gostou tanto de carnaval, de cinema, hoje mal tem com quem conversar. Fica esperando uma
visita do Chico Viola, do Plácido, do Zé Carlos e outros que vão para lá pescar. As companhias de todos os momentos são o cachorro
Fly e a cadela Ressabiada. O Fly bem que se assanha com uma brincadeira e a cadelinha Ressabiada tem o costume de se
enfronhar no mato sempre que chega algum visitante. Ninguém sabe sua cor, tamanho ou jeito: segredos que guarda para o dono.
Justamente quando chegam essas visitas que assustam a cadela, seu Nelinho aproveita para conversar. Só
não gosta de fofoca, e acrescenta: "Conto coisas que já aconteceram, coisas naturais, não é? Mas da vida dos outros não gosto de falar. Quando
chega gente fofoqueira, eu faço assim, olha". A cena que se segue é digna de nota: ele levanta-se do tronco, faz os braços de asa e como um
passarinho voa para longe.
Senta-se de novo e completa o pensamento da forma mais inusitada possível: "Quem ganha a vida criticando os
outros é o Jaime Peres, o repórter. O repórter já ganha para isso mesmo. A polícia. Acontece um negocinho desse tamanhinho e a polícia faz desse
tamanho. Não é certo? Quem ganha dinheiro com a boca é o advogado. Mesmo que perca a questão, o dele já entrou, não é?"
Seu Nelinho, ingenuidade e sinceridade ao mesmo tempo.
Na solidão da ilha, ele tece redes e pesca para sobreviver
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