A paróquia foi criada em 1937, muito antes da urbanização da Praça Senador Correia
No dia em que a molecada da Pedro Lessa se juntava para
jogar futebol com a turma da Alfaia Rodrigues, ninguém sabia a que horas a partida ia terminar. Podia acontecer até de consumir a tarde inteira
sem chegar ao fim.
Sabe como é: a criançada não andava desde cedo com relógio no pulso como hoje, e não tinha como marcar o tempo
de jogo. Estabeleciam então o seguinte critério: a partida terminaria tão logo passassem três carros para um lado e três carros para o outro da
Avenida Pedro Lessa. Só que era tão raro algum automóvel fazer aquele percurso que dava 19, 20 horas e os moleques continuavam com a bola rolando
sob os pés. Até que, cansados e já sem esperança, resolviam prosseguir no dia seguinte.
Lio, das mil e uma travessuras
Quem conta essa
história com a maior satisfação do mundo é o Alípio Pimentel, ou simplesmente o Lio de centenas de travessuras. Sem dúvida, uma testemunha
da época em que a molecada pintava o caneco, como diriam nossos avós, e tinham uma infância das mais sadias que se possa imaginar.
Quando se é moleque, tudo serve como motivo para novas farras e brincadeiras. Coisas que deixavam os adultos
malucos, como o areião da Avenida Afonso Pena, as enchentes, o capim-gordura, onde proliferava muito mosquito, e o mangue que chegava até
perto da Praça Senador Correia, representavam sempre uma opção de lazer.
Quando chovia forte, em alguns recantos de Aparecida a água subia mais de metro e o pessoal se via obrigado a
sair de casa de barco. A amolação não poderia ser maior, menos para as crianças, que se metiam dentro de uma tampa de baú ou mala e ficavam
navegando o dia inteiro.
A imensa vala que cruzava a Rua Bolívia não as assustava nem um pouco. Muito menos a da Rua Guaibê, que ficava
encoberta por mato cerrado e formava um tipo de túnel sempre interessante na hora de diversificar as brincadeiras.
E não se pode negar que a criançada tinha uma imaginação daquelas. O Ângelo Bento Fernandes até hoje não se
esquece como se monta uma ronqueira, um tipo de espingarda feita com um pedaço de cano, madeira, arame grosso, borracha e outras miudezas. Os
meninos preparavam tudo com muito cuidado, enchiam o cano de pólvora e coitado do nambu que passasse pela frente. Voava até pena da ave, que era
devorada num canto qualquer de rua.
Para eles, caçar nambu era tão divertido quanto pegar marisco, caranguejo, se enfronhar no mato para catar
coquinho ou desafiar a vigilância dos chacareiros e roubar tomate, chuchu, couve, beterraba ou o que aparecesse. Impossível para eles só mesmo
roubar leite da vacaria do Português, ali para os lados do Canal 6. Aliás, nem precisava: gente boa que fazia gosto, o Português não
se negava a oferecer um copo de leite quentinho quando a molecada ficava em volta, olho comprido para dentro da vasilha.
Apesar dos problemas, o lugar cresceu e virou reduto operário - A ocupação de Aparecida começou pelos
lados da Praça Senador Correia, Rua Felipe Camarão, Avenida Pedro Lessa e arredores. A partir do Canal 6 em direção à Ponta da Praia havia um
mundo de chácaras que, juntamente com aquelas existentes onde está hoje o Conjunto Castelo Branco, garantiam o fornecimento de frutas e verduras
para toda a Baixada.
Um pequeno núcleo residencial floresceu também na Alexandre Martins, perto de onde funcionou o Jockey Clube.
Poucos conseguem esquecer as corridas de cavalo que eram realizadas ali, sempre com um animado público. As vitórias se transformavam no melhor
assunto da semana, e geravam discussões acaloradas na Padaria Jockey, que ficava na Alexandre Martins com Pedro Lessa. Conhecida em todo o bairro,
a padaria ficou mais famosa ainda quando passou a ser ponto final do bonde 19.
E verdade seja dita: morar em Aparecida de forma alguma representava uma boa opção. Se alguém pegasse um táxi
para ir à Pedro Lessa, tinha que descer na Almirante Cócrane, porque motorista algum se aventurava a seguir adiante. Mas, por força da
necessidade, formou-se um núcleo operário bastante significativo, e daí para a frente ninguém conseguiu segurar a expansão do bairro.
Os chalés se multiplicaram entre as décadas de 20 e 30. E, diga-se de passagem, muitas vezes eram construídos
com a madeira das caixas que embalavam os automóveis vindos do exterior através do porto. Bastava chegar na beira do cais e pedir as caixas, que
nenhum trabalhador se recusava a dar. A grande dificuldade era carregar a madeira nas costas até o terreno, comprado com tanto sacrifício e pago
em várias prestações.
Como o núcleo crescia, logo os comerciantes se interessaram por ele. E com que satisfação os moradores não viram
surgir o Bar do Tatu, o primeiro prédio ali para as bandas da Praça Senador Correa. O bar existe até hoje e, como nos velhos tempos, ainda há um
tatu pintado em uma das paredes. Ninguém nunca retocou a pintura, que se mantém intacta desde aquela época. Os proprietários não são os mesmos,
mas o local continua servindo como ponto de encontro dos antigos.
Esses antigos consideram um pecado reconstituir o passado do bairro e esquecer o Bar do Tatu, a Padaria
Fluminense, o Externato Afonso Pena, a Adega São João, o Colégio Lourdes Ortiz e o Clube Atlético Santa Cecília. Todos conseguiram resistir aos
novos tempos e se configuram, portanto, como dignos representantes de outra época. Que justiça seja feita, pois!
O garoto inventivo e a infância cheia de novidades - Se muita gente enfrentou maus bocados naquela época
em que o bairro era um verdadeiro fim de mundo, quem passou a infância lá não cansa de recordar coisas boas.
Seu João recorda o cineminha na igreja
E
entre essas coisas boas figura sempre o cineminha do padre Luís Araújo. Ninguém sabe dizer onde o padre conseguia filmes de Carlitos e de
O Gordo e o Magro, mas o certo é que ele fazia a alegria da garotada com as sessões realizadas lá mesmo na Igreja de Nossa Senhora
Aparecida. João Alves da Silva não esconde as saudades desse tempo, como também revela uma ponta de saudosismo ao falar sobre os bondes 19, 29 e
39, que serviram àquele núcleo em constante crescimento.
O Lio é outro que não esconde as necessidades dessas e de tantas outras coisas, e quando começa a
recordar outras épocas arranja assunto para muitas horas de conversa. Voltam à mente várias situações vividas ao lado de amigos como o Norival
Vicente, Pardal, Jackson, Zé Herculano, Dino Português, Manoel Pimentel e muitos outros.
Quantas vezes esse grupo não seguiu para o Cine Popular munido de sanduíche de pão com ovo e bananas para
assistir aos filmes de faroeste? O reforço alimentar era indispensável, pois a sessão de domingo durava das 13 às 18 horas. Ninguém reclamava das
cadeiras, que eram dessas comuns de cozinha, ou da tela pintada na parede. Valia a pena, porque afinal, por apenas 900 réis, assistiam a nada
menos que sete filmes. E em cada intervalo se formava cada briga de deixar o dono do cinema de cabelo em pé. Com tanto moleque lá dentro disposto
a farrear, não podia ser diferente.
Inspirado por esses filmes, o Lio se divertia fantasiando-se de Durango Kid. Punha uma capa preta,
improvisava arco e flecha com vareta de guarda-chuva e ficava na laje de sua casa atormentando a vida dos mais incautos.
Uma vez seu irmão comprou um projetor de filmes, daqueles à base de vela, que se vendia por reembolso postal.
Acompanhavam a máquina três pequenos filmes, e o Lio não teve dúvidas em se associar ao irmão na hora de cobrar um tostão da molecada
interessada em assistir. Quando se cansaram de assistir sempre aos mesmos desenhos, o Lio logo tratou de produzir alguns, em papel
manteiga. Só que a imagem aparecia muito de vez em quando, e esses momentos eram invariavelmente acompanhados de muitos apupos e palmas.
Inventivo como ele só, Lio armou um parque em seu quintal, com escorregador, balanço e tudo mais. A idéia
de improvisar um veleiro e brincar na lagoa que se formava nos fundos da sua casa sempre que chovia também foi dele, como não poderia deixar de
ser. Organizou campeonato de boxe (lufas feitas com novelos de lã, é bom que se saiba), foi engraxate, sorveteiro - por essas e por outras, não
havia quem não o conhecesse nas redondezas.
Mas a fama chegou mesmo quando deu para ser cantor. Quando cantava La Matinatta, em italiano logicamente,
deixava muita gente de boca aberta. Participava de tudo quanto é programa de calouros dos parques que se instalavam nas imediações e fazia tanto
sucesso quanto o Alfredinho do Bolero ou o Alfredo do Tango. Esse último, aliás, já correu o mundo inteiro cantando.
O Lio, de sua parte, optou pelo comércio, e há anos está à frente da Casa de Móveis IV Centenário. E, se
alguém chegar lá perguntando por histórias de antigamente, vai ter muito o que ouvir, entre sonoras gargalhadas.
A famosa casa de pedra, tão bonita e original, desaparecerá
e dará lugar a um edifício como aqueles que a cercam
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