Seu Brás, há anos na luta pela posse da terra
A luta dos moradores pela posse da terra
Se as coisas continuarem do jeito que vão, antigos moradores
do Pacheco, que amam tanto o lugar que ajudaram a construir, terão que ir embora. Para sempre. Apesar de estarem sobre aqueles pedaços de chão há
40, 50, 60 ou mais anos, não são proprietários: continuam pagando aluguéis que sobem a cada mês, comprometendo os minguados orçamentos. Por
incrível que pareça, um dos aluguéis passou de pouco mais de Cr$ 200,00 para quase Cr$ 7 mil mensais.
Há anos os moradores, que só têm direito às benfeitorias, reivindicam a desapropriação da área pela Prefeitura,
o que lhes permitiria acabar com essa situação de insegurança de tirar o sono. Prefeito algum tomou essa providência, e o sonho da desapropriação
parece cada vez mais distante, devido à valorização crescente da gleba.
Em dezembro de 1979, as terras estavam avaliadas em Cr$ 6 milhões. Decorrido apenas um ano e meio, o valor venal
subiu para Cr$ 39 milhões, o que corresponde a uma valorização de 650 por cento. Quando a Prefeitura se ocupará da questão?
Enquanto as pessoas faziam essa indagação, viram-se à frente de um motivo a mais para dores de cabeça: em
outubro do ano passado, 10 moradores foram notificados por ação judicial que seus aluguéis seriam aumentados a partir do mês seguinte. Além disso,
teriam que arcar com os custos da ação que a Imobiliária Casaplan moveu contra eles. É que o juiz deu parecer acatando justificativa da
imobiliária para fazer os reajustes. A alegação foi a seguinte: os locatários pagavam quantias irrisórias por terrenos que valiam mais de Cr$ 5
mil mensais e não concordaram com o aumento proposto. Só que morador algum jamais foi procurado para qualquer negociação.
De dois anos para cá os aluguéis vêm sofrendo elevações quase que mensais e as notificações judiciais pioraram o
clima de tensão. Motivos não faltam, porque em alguns casos os índices de reajuste ultrapassam dois mil por cento. É hora de fazer a velha
pergunta: "Quem resolve?"
Uma sociedade sem sócios - A Sociedade Amigos do Morro do Pacheco contratou um advogado, para estudar o
assunto, mas esbarra em um problema básico: a falta de verba. A entidade não tem nenhum sócio e sobrevive às custas de uma pequena subvenção da
Prefeitura. Não é à toa que o presidente Brás Pereira de Siqueira e o diretor Adriano Pinto Nogueira perderam as contas das vezes que foram
obrigados a tirar dinheiro do bolso para garantir a continuidade dos trabalhos.
O presidente explica que decidiu cancelar as mensalidades porque o que se arrecadava não dava para nada, mal
cobria as despesas com recibo. Além do mais, os moradores que pagavam "cobravam" a realização de serviços. Serviços aliás que nem são de
competência de uma sociedade de bairro, como reformar escadarias e tapar buracos.
A 17 de outubro haverá eleição da nova diretoria, e "seu" Brás conta com Cochilo, Cláudio, Adriano, João
Cavariz, Ivandir de Paula e Viana para integrarem a chapa. "Eles não vão cavar vala comigo, mas falam bastante e vão fazer pressão para que a
entidade receba Cr$ 50 mensais de cada morador", explica o presidente, que quer ver se ameniza os problemas financeiros e encerra os comentários
de que a entidade não faz nada em favor do morro. Só quem está lá dentro é quem sabe...
Do alto do Boa Vista dona Olívia viu a Cidade crescer
Um lugar pequeno de onde se enxerga longe
Não é à toa que o Morro da Boa Vista tem esse nome. À medida
que a gente sobe a escadaria de pedras, começa a divisar o Estuário e suas ilhas, ruas, praças e prédios dessa nossa Santos. Se o visitante
conseguir se safar dos cachorros e alcançar o topo, vai se surpreender ao avistar Cubatão e uma "pontinha" do Guarujá, longe, bem longe.
A gente vê a Cidade, mas não percebe o seu corre-corre, não ouve seus barulhos, não sente o cheiro desagradável
da fumaça ou das águas podres que se acumulam nos cantos das ruas. O morro tem odor de mata e os sons predominantes são o cantar dos pássaros e o
cricrilar dos grilos. Isso quando a risada de uma criança não quebra o sossego.
É nesse mundo peculiar que Olívia de Jesus Cazela vive desde que nasceu, há 57 anos. Seus avós Francisco Carlos
e Agda foram os primeiros moradores do Boa Vista, num tempo em que o cais se resumia ao trecho do Valongo e tudo era praticamente mangue, a poucos
metros da encosta íngreme onde se instalou.
As terras pertenciam a João Antunes, mas "seu" Francisco, na condição de primeiro ocupante, fez muito mais por
elas do que o próprio dono. Abriu os caminhos, descobriu nascentes e derramou muito suor aterrando o chão. Quando morreu, deixou no morro filhos e
netos para contarem a sua história.
Com muito orgulho dona Olívia fala sobre o avô e a vida passada nesse lugar que sempre se caracterizou por uma
densidade ocupacional bem baixa. Teve o privilégio de ver Santos crescer junto consigo e ainda se lembra que o primeiro navio que tentou
ultrapassar os limites do cais do Valongo em direção ao Saboó foi a pique. "Ele chegou de noite e tudo aconteceu de noite mesmo", explica,
lembrando que estava carregado de telhas e por muito tempo teve gente tentando retirar a carga dele.
Da infância não pode se queixar nem um pouco, pois até conviveu com índios. Isso mesmo, lá pela década de 1920
ou 30 havia índios morando no alto da Boa Vista. Segundo dona Olívia, eles armavam fogueiras, faziam batucadas e dançavam ao redor delas. Usavam
um tipo de saia até a altura dos joelhos, não costumavam pintar o corpo e se banhavam em um poço com formato de tanque.
Ela adorava ficar entre eles para vê-los confeccionar cestos de taquara, flechas e uma infinidade de outros
objetos. Até ajudava de vez em quando, retirando sementes das buchas recolhidas nos matos. Buchas que se transformavam em chinelos, agulheiros e
enfeites para parede. O nome da tribo dona Olívia não sabe. Lembra apenas que eles se foram quando cresceu a ocupação dos morros.
As lembranças da guerra e os desabamentos que fizeram muitas vítimas - A vida dela e de seus primos era
essa: ficar entre os índios, brincar de pega-pega, de roda e volta e meia pegar o bonde que passava no sopé e ir até a Praça dos Andradas ouvir a
banda de música. Naquele tempo tinha coreto na praça e o maestro vivia ganhando flores de jasmim.
Mas dona Olívia guarda outras recordações não muito boas. No tempo da 1ª Guerra (SIC: em função da idade citada,
a moradora nasceu por volta de 1925, mais de sete anos após o fim da 1ª Guerra Mundial, e portanto suas recordações só poderiam se referir à 2ª
Guerra, 1939/45), quando foi decretado o estado de sítio, ela saía do morro para ir até o Cinema São Bento, na rua do mesmo nome, para buscar
alimentos. "Não tinha emprego, não tinha vendas abertas e cortaram até a força. Só criança podia andar pelas ruas. E lá íamos nós para o cinema,
buscar a comida que o Exército distribuía", acrescenta, frisando que muitas vezes ficou por lá ajudando.
Outros casos tristes que ela conta estão relacionados com os desabamentos no morro. O local é tradicionalmente
problemático, existindo registros de escorregamentos nos anos de 1956, 1959, 1978, 1979 e 1981, alguns deles com vítimas fatais. Só no ano passado
71 moradores ficaram desabrigados e duas casas foram demolidas.
Por tudo que já aconteceu no morro da Boa Vista, sua população se resume a 90 moradores. O perigo de novos
desbarrancamentos persiste, pois a Prefeitura executou apenas algumas das obras recomendadas pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). A
escadaria de acesso foi melhorada e o escoamento das águas servidas melhorado em alguns pontos. É só isso que os moradores precisam? |