Seu Antônio, aos 91 anos de idade, benze crianças e faz curas
Quem já ouviu falar em edifício de madeira? Pois no Morro do
Pacheco tinha um, de nada menos que cinco andares. Era o famoso castelo do "seu" Jacó. Parece conversa de mentiroso, mas qualquer pachequense
(é assim que os moradores gostam de ser chamados) está de prova e diz mais: que o casarão ficava sobre um enorme bloco de pedra.
O "prédio" subiu em direção ao céu sob o sorriso de satisfação de "seu" Jacó e os olhos espantados da
vizinhança. Sabe-se lá o que deu na cabeça dele para inventar tal moradia, mas o certo é que ninguém temia que despencasse. Tanto que o
proprietário alugou vários cômodos e ficou morando no último pavimento, de onde espreitava o mundo. Tudo parecia sob seu controle nas alturas do
seu castelo no alto do morro.
Infelizmente, esse exemplar de ousadia arquitetônica já não existe: foi demolido por falta de segurança.
Restaram alicerces, muretas, chão de cimento. E uma história única na região, quem sabe no Brasil e no mundo.
Coisas do Pacheco, um morro rico de "causos" e tradições e habitado por gente simples e muito boa, que não perde
o hábito de saudar o vizinho com um sorridente bom-dia e oferecer-lhe um café quando passa na porta. Que o diga o "seu" Antônio Pinto,
conhecidíssimo não só por ser o morador mais antigo, mas por benzer criança danada de brava em seu centro de mesa branca. Nunca cobrou um tostão
de ninguém e em outros tempos recebeu até um convite de um médico famoso, o Araújo Coelho, para trabalhar junto.
São 42 anos de mediunidade e muitas curas - "Seu" Antônio Pinto poderia estar rico por tudo que já fez
nesses 42 anos de caridade, mas continua morando num chalé pequeno e simples, mas interessante por revelar muito da sua personalidade e de seu
modo de vida.
Nas paredes da sala onde trabalha há muitas imagens de santos, um relógio cuco que pertenceu ao seu avô "e não
falha um minuto" e um rádio de mais de 40 anos, com um som de fazer inveja a muitos aparelhos modernos. No meio do cômodo, uma mesa comprida,
presente do Irineu, sempre forrada com uma toalha branca e adornada com flores de plástico, uma imagem espanhola do menino Jesus e uma caravela
com o símbolo do Coríntians (ele é corintiano "graças a Deus"). Uma televisão, uma geladeira e, no canto, um sofá, onde deita as crianças para
benzer.
Os casos de cura que fez são infinitos, e um deles "seu" Antônio recorda de um modo especial. Foi no tempo da
Santa Casa velha: a mulher estava doente do pulmão, já não se levantava, não comia nada e vinha sendo tratada à base de injeções e chá. A morte
parecia certa, até que a família resolveu apelar para aquele homem cuja fama corria por aí. Levaram-na do hospital até ele, que receitou três ou
quatro remédios. Os efeitos do medicamento foram imediatos: a mulher suava tanto a ponto de molhar o colchão e ainda escorrer suor no assoalho. Em
pouco tempo parecia outra pessoa e escreveu uma carta de agradecimento que "seu" Antônio guarda até hoje.
Esse homem de 91 anos de idade acha que nada mais faz do que cumprir uma missão. Desenvolveu a mediunidade quase
por acaso, acompanhando a esposa a um centro (ela sim pretendia desenvolver). Quando deu por si, conseguia curar as pessoas.
Naquela época trabalhava dias e dias sem descanso, porque até gente de outros estados o procurava. Quando o
pessoal sentia um perfume diferente ao longo das escadarias do Morro do Pacheco, sabia que havia alguém de fora indo para a casa de "seu" Antônio.
Hoje em dia, por causa da idade, ele atende só às quartas-feiras e sábados. Mas é quase certo chegar alguém a
qualquer hora ou dia com uma criança no colo para benzer. E ele deixa de lado seu descanso para realizar um verdadeiro ritual: primeiro acende uma
imagem de Cristo e outra de Nossa Senhora Aparecida, expostas num canto da sala; depois, pega um galho de arruda, caminha em direção à criança,
faz uma série de gestos rápidos e pronuncia frases imperceptíveis. Consegue tranqüilizar o pequeno simplesmente pedindo calma com a mão espalmada,
e sempre termina o cerimonial com um "Deus te abençoe". Mãe e filho saem sorridentes sem perguntar quanto devem, porque "seu" Antônio nunca
aceitou dinheiro de ninguém.
Os moradores reivindicam uma estrada, porque o único acesso é a escadaria
A tradição dos balões e as grandes festas com música ao vivo - Quando "seu" Antônio se mudou para o Morro
do Pacheco, há 77 anos, lá não havia nada além de quatro casas e muita mata virgem. Do alto observava o mar, de onde tirava o sustento, bem à
frente. Pescador artesanal, enfrentou muito sol e ganhou calos na mão de tanto remar e puxar rede. Tinha dia de ir em Bertioga, o que significava
remar direto por duas horas e meia.
Muitas vezes chegou do trabalho com camarão grudado nas calças. Trazia os bichos ainda vivos, a ponto de pularem
da balança de "seu" Rocha, dono da venda. Além de pescar, tinha que comercializar o produto, tarefa sempre cumprida com a ajuda da esposa, mulher
esperta que bordava como ninguém e ensinou muita mocinha a fazer os tradicionais fios de ouro e escama de peixe. Quando os dois saíam, os filhos
ficavam sozinhos, preparando a comida para quando chegassem. "Seu" Agostinho, filho mais velho depois do Moisés que o diga!
E essa gente despachada para o trabalho gostava de caprichar nas festas. Os balões que "seu" Antônio Pinto fazia
são famosos até hoje. Ele chegou a fazer um com 180 lanternas e duas baterias, desses que quando chegavam no alto soltavam foguete e rojão para
todos os lados. A tocha era nada mais nada menos que um saco de estopa embebido em querosene. O Moisés era o soltador oficial de balões da
família.
Ele é um barbeiro tradicional e gosta de contar histórias
Época de São João não faltavam
festas no morro, a ponto de o pessoal competir para ver quem fazia os maiores e mais bonitos balões. Os Carroceiros, os Fortes, os Rabaça,
os Fortunato e Armando estavam sempre entre os primeiros, mas dificilmente conseguiam bater os Pinto. Outra tradição era iluminar as varandas com
lanternas feitas em casa para comemorar o Dia de Santa Isabel, 2 de julho. "Seu" Agostinho é o único que mantém o costume e no dia dedicado à
santa pode contar que sua casa está decorada com as peculiares lanternas, montadas com uma tampa, vela e papel de seda.
Serenatas também nunca faltaram no Pacheco de antigamente. O neto de Cipriano Fernandes, famoso tocador de
gaita, ainda se lembra: "Geralmente no verão nos acordavam no meio da noite ao som de violões. Meu pai pedia que os músicos entrassem e servia um
cafezinho".
Aliás, é bom que se dica que não faltavam músicos e, conseqüentemente, não faltavam festas. Nas de "seu"
Cipriano imperavam músicas espanholas e carnavalescas, que saíam deliciosas da gaita, do flautim, do piston e dos instrumentos de percussão. Bumbo
e "ferrinhos" (triângulo) eram os instrumentos ideais para se tocar as músicas características da Ilha da Madeira, tradição da festa dos
Carroceiros. E tem mais: músicos famosos do Rio e São Paulo garantiam presença nas festas do "doutor" Carlos, onde se tocavam muito samba e valsa.
Imaginem o sucesso que esses músicos não faziam numa época em que nem vitrola existia, apenas gramofone! No
mais, é bom que se esclareça de vez que o Zé da Sanfona, varão da família Borges, tocava violão e nunca pegou uma sanfona na mão. O filho
Anésio Borges, o Nené fotógrafo de A Tribuna, está aí para provar!
Um ensacador que virou doutor e o barbeiro que ninguém esquece -
Cipriano Fernandes e "doutor" Carlos, grandes festeiros do Pacheco, são lembrados pela população por outros motivos. Lá pela década de 20, o
primeiro era uma espécie de administrador do morro e se encarregava de controlar a distribuição da água. As nascentes garantiam que um
reservatório grande, de cimento, ficasse sempre cheio e "seu" Cipriano tinha o cuidado de fechar o registro à noite, para que não houvesse
desperdícios. Às 4h30 estava de pé, cumprindo a rotina de abrir o registro e desse modo permitir que cada um tomasse seu banho ou café antes de
seguir para o trabalho.
O popular gaiteiro ficou conhecido também por ser um excelente matador de cobras. Habilidoso como ele só,
prendia a cabeça do bicho com o gancho do martelo e com uma machadinha cortava fora. Certa vez, matou uma jararaca com 14 palmos de comprimento e
ainda disse com ar displicente, como se não tivesse feito nada de mais: "Isso não faz mal nenhum..."
O Carlos era ensacador, mas todos chamavam de doutor porque bem que parecia um, com toda a sua distinção. Sempre
bem trajado e dono de uma educação finíssima, foi o primeiro morador do morro a ter lambreta, isso no início da década de 30. Passou para a
história do morro, como não poderia deixar de ser.
E se tem alguém que o morro nunca vai esquecer é "seu" Quincas, o velho barbeiro amigo de todos, sempre paciente
com os moleques que chegavam com a cabeça cheia de terra, coisa de cegar qualquer tesoura. "Vai lavar a cabeça, depois você volta", dizia ele.
Está no morro desde 1930 e há quatro anos parou de trabalhar. Hoje, aos 80 anos, diverte filhos e netos
recordando velhos "causos". Com seu jeito calmo e sorriso nos lábios, relembra que o salão vivia cheio porque, além do pessoal do morro, atendia
gente de fora, principalmente caminhoneiros que estacionavam pelos lados da Visconde do Embaré.
Barbeiro bom, só podia mesmo ficar conhecido, a ponto de não ter dia de descanso. Aos sábados não cortava cabelo
de criança, para dar oportunidade aos que trabalhavam e não tinham tempo durante a semana. Caprichava no serviço e tinha sempre à disposição dos
clientes água, revista e exemplares de A Tribuna e do extinto Diário. Quando começou a usar água Velva, foi uma sensação.
Ensinou seus segredos profissionais para o Damião, filho de um amigo que veio do Norte para morar consigo, e
para o Heleno, que tempos depois abriu seu próprio salão, ali mesmo no Pacheco. Graças à profissão aprendida com "seu" Quincas, Heleno saiu do
morro e hoje em dia só vai lá para trabalhar, em um salão instalado logo na subida.
As famílias e pessoas que são personagens da história desse morro - Moradoras ou não, há pessoas e
famílias que são consideradas pachequenses tradicionais por tudo que fizeram, viram e passaram no morro. Quando os antigos se juntam para
recordar os velhos tempos, desfiam uma imensa lista de nomes que, de forma alguma, segundo dizem, pode ficar dissociada da história do lugar.
Além de todos os citados, são lembrados ainda os Tamanqueiros, os Cereja, os Gomes, os Pereira Dias e os
Silvares. O velho Silvares, contador de anedotas, se divertia com essa: "Eu tinha uma cachorrinha em Portugal que subia em árvores", começava ele
e quando o ouvinte retrucava, dizendo que cachorro não sobe em árvores, respondia de pronto: "Subia e de marcha a ré, para não lhe cair cisco nos
olhos".
Os donos da venda - Alfredo, Adriano, Armando e Caximbeta, Arildo, Pilara (matador de porcos), Zeca,
Zé da Franga e Elsa não podem ficar esquecidos, bem como a parteira Maria Russa, que pôs no mundo a maioria dos bebês do morro e que,
aos domingos, promovia matinês dançantes em sua casa, arrumando assim muitos casamentos.
E a lista segue crescendo: Maneco Peixeiro, "seu" Cardoso, "seu" Alves - José Alves - o Nacional,
"seu" Zica, Leonardo, Aristides, dona Silvina, João da Neide, Ilhéu, Waldemar, Aristides, Vilma, Josué, Laureana, dona Cecília,
Britz, Frutuoso, os irmãos Fontes, "seu" Albino, Brás, Isolino e Fantasma.
Ele é um barbeiro tradicional e gosta de contar histórias
Quem
não se lembra do Caboré, o "cônsul do Nordeste"? Estivador com um coração de ouro, abrigava tudo quanto é imigrante nordestino que chegava
a Santos, garantindo lugar para dormir, banho e comida. No dia seguinte, os homens seguiam para a construção civil e as mulheres e crianças se
espalhavam pela vizinhança. Os nordestinos tinham fama de ótimos pagadores, por isso todo pachequense gostava de alugar casas ou quartos
para eles.
Os Mendes, Lando Foguete, Tonica, os Ventura, Nena, Laísa, Claudete, Conceição e Nara
(essas tidas como as mais bonitas e cobiçadas moças em outros tempos), os Fernandes, Maria e Isabel Borges também fazem parte da lista. E quem não
se lembra do João Guariano, "pai das crianças necessitadas do morro"? Funcionário do antigo Grupo Escolar Bartolomeu de Gusmão, existente logo na
subida do morro, preparava mingau, arroz-doce, carne e muitas outras guloseimas para a molecadinha. Às quintas-feiras servia sopa e nesse dia
muitos nem almoçavam em casa: era uma economia que as mães faziam e comida que sobrava para o dia seguinte.
Quem podia colaborar com a caixa escolar, ótimo. Quem não podia era beneficiado do mesmo jeito, talvez até com
mais atenção. Tirava do bolso para dar às crianças e para garantir-lhes momentos de lazer fundou o Rubiáciea Atlético Clube. Os jogos aconteciam
lá no alto, na divisa do Pacheco com o Boa Vista, ou no campinho que existia onde está hoje a Auto Embaré, na Rua Visconde de São Leopoldo.
Diso, Tim, Ataliba e caboclo Lino são outros nomes que vêm à memória. E o Anésio
Borges, autor das fotos publicadas nessa reportagem (com exceção da antiga) costuma dizer de peito estufado que o Pacheco ofereceu "três grandes
glórias à Cidade": ele próprio, Nené, nascido e criado lá; o prefeito Paulo Gomes Barbosa; e Carlos Pinto, homem ligado à arte. Só falta
recitar qualquer coisa intitulada "Porque me Ufano do Morro do Pacheco..."
"Seu" Fernandes prefere citar entre os moradores famosos o Antoninho, ex-jogador e técnico do Santos, e o
David, de alcunha Índio, ex-campeão brasileiro de remo. Este costumava participar das regatas que aconteciam quase todos os domingos no
Valongo e o morro se juntava para assistir de lá mesmo. Naquele tempo em que não havia quase prédios, do Pacheco se avistava o Valongo, o Paquetá
e até localidades mais distantes como Bocaina, em Vicente de Carvalho. E mais: "seu" Fernandes assistiu quando Anésia Pinheiro Machado (a primeira
aviadora brasileira) jogou um ramo de flores sobre o encouraçado São Paulo, ato muito significativo para um tempo de conflito. Só mais
tarde ele relacionou o que vira com os fatos registrados nos livros de História. Hoje, narra o caso com muito orgulho.
Os mais jovens ouvem causos dos antigos e perpetuam tradições
Entrudo, sambistas, blocos e uma rainha para o povo se gabar - Como todo morro que se preza, o Pacheco
não poderia deixar de ter passagens relacionadas a Carnaval. Coisa comum era no domingo pela manhã festejar o entrudo, brincadeira às vezes
violenta, à base de baldes de água e farinha de trigo. Ai de quem passasse por perto.
Na década de 1930, João Beninha e os filhos da família Victorino fundaram o Bloco do Gato Preto. Pouco tempo
depois surge o Caipiras da Fuzarca, sob o comando de Bate, Adail, Guri e Gérson. Sucessos garantidos na Exposição do Centenário, em
1939.
Em 1933 foi fundado o Bando dos Sabiás, bloco que desfilava até ao som de violino. Leni, Olímpio, Vadico,
Vadinho, Landulfo eram alguns dos músicos integrantes do grupo. Mas se tem um bloco que ninguém se esquece é o Babys do Jardim da Infância,
que tinha entre seus grandes nomes figuras como Bate, Sibira, Zé Franga e Barosca. O grupo desfilou de 1940 a 1950 e
mais tarde, em 1955, os remanescentes dele fundaram o Turistas do Bairro Chinês.
Também saiu do morro a primeira rainha do Carnaval santista, Marlene Sardinha, e, como se não bastasse, em 1978
nasce a Escola de Samba Unidos dos Morros. No bar do carioca Arildo costumava ter roda-de-samba, reunindo gente como Adriano, Busuntão,
Josué Pinto, Zeca Messias, Eduardo, Zé Punga, Testão, Zeca Pinto, Zezinho, Toninho e outros mais. Vai
daí que o Nelson sugere a criação de uma escola de samba, o Adriano bota tudo no papel e a situação fica legalizada.
Maria das Dores Gonçalves Ferreira, apelidada carinhosamente de dona Maricota, foi a primeira madrinha da
escola e sua filha já falecida, a saudosa Jandira, a primeira baiana. Hoje a escola ensaia no Morro da Nova Cintra, mas ainda correm pelo Pacheco
os versos da letra de um samba de Josué Pinto, que diz em um dos trechos:
A nossa escola tem três cores
três cores que é tradição
o verde que é nossos morros
com menos poluição
e o azul do céu estrelado
que cobre os nossos barracões
e o branco que é paz e tem guarida
na nossa escola querida
que vive em nossos corações |
O bloco desfilou por 10 anos e deixou muita saudade
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