ROTEIRO DA INSEGURANÇA - 4
Uma comissão designada pelo governador examinará
a questão do transporte de outros produtos
Foto: João Vieira, publicada com a matéria
Montoro proíbe transporte de isocianato
O governador Franco Montoro assinou decreto proibindo o transporte,
armazenamento e processamento do isocianato de metila, o perigoso gás que matou milhares de pessoas na Índia. As indústrias que tenham o isocianato
em estoque poderão processá-lo até o término das cargas já existentes.
Ao mesmo tempo, o governador nomeou uma comissão para, no prazo de 90 dias,
apresentar estudo propondo mecanismos de controle de produtos perigosos, incluindo os secretários de Obras e do Meio-Ambiente, Saúde, Transportes,
Indústria, Comércio, Ciência e Tecnologia, Agricultura e Abastecimento, Relações do Trabalho e, ainda, o presidente da Cetesb; o coordenador da
Defesa Civil; o secretário executivo do Conselho Estadual do Meio-Ambiente e o secretário executivo do Conselho Estadual de Energia.
O decreto baixado por Montoro, porém, não resolve o problema do transporte de
cargas perigosas. Santos e Cubatão, como mostra a quarta reportagem da série Roteiro da Insegurança, vivem diariamente a ameaça de graves
acidentes com carretas que transportam substâncias inflamáveis, tóxicas e corrosivas. Os veículos circulam livremente, inclusive em áreas
residenciais, sem que exista qualquer tipo de fiscalização.
O perigo sobre rodas
(Cargas perigosas circulam livremente pelas ruas e estradas. Até quando?)
Texto de Manuel Alves Fernandes e Lane Valiengo
O isocianato, proibido
SÃO PAULO – A partir de hoje, ficam proibidos no Estado de São Paulo o
transporte, armazenamento e processamento industrial da substância conhecida por isocianato de metila, também chamado de "o gás da Índia". Somente
as indústrias que já tenham estoque desse produto poderão utilizá-lo, estando, no entanto, proibidas de adquirir a substância após essa data. Essa
decisão foi tomada hoje pelo governador Franco Montoro, durante reunião com todo o seu secretariado no Palácio dos Bandeirantes, quando assinou
decreto nesse sentido, que será publicado hoje no Diário Oficial.
Mas, além dessa medida, Montoro determinou a formação de uma comissão, que irá estudar
a situação dos produtos tóxicos e nocivos, que necessitam de uma disciplina rigorosa para o seu manuseio. Ao anunciar essa decisão, Montoro explicou
que existe hoje uma grande preocupação com o isocianato de metila, que matou mais de 2.500 pessoas em Bhopal, na Índia. E foi por esse motivo que
decidiu assinar o decreto proibindo o seu transporte, armazenamento e processamento industrial no Estado de São Paulo.
No entanto, fez questão de ressaltar que existem ainda outros produtos tóxicos que
necessitam ter o seu manuseio controlado rigorosamente: "Por isso, nós não podemos nos limitar apenas à proibição do isocianato de metila. Assim,
constituímos uma comissão para o exame de outros produtos igualmente tóxicos e nocivos, que precisarão ser objeto de uma disciplina rigorosa. Mas
dada a urgência de uma medida com relação ao isocianato de metila, foi baixado o decreto".
Justo apóia – O prefeito Osvaldo Justo foi comunicado, pelo governador Franco
Montoro, sobre o decreto que proíbe o transporte, armazenamento e processamento do isocianato de metila. E aprovou a medida: "Dá-nos maior
tranqüilidade saber que o Governo do Estado está interferindo nesse campo. Mas o governador, ao proibir o trânsito e estoque de isocianato, teve a
cautela de também nomear uma comissão de alto nível, presidida pelo secretário de Obras e do Meio-Ambiente, João Osvaldo Leiva, para investigar
outros casos de produtos perigosos".
"Se proibir simplesmente todos eles, as indústrias fecham, haverá desemprego muito
grande. Mas como, infelizmente, a sociedade moderna tem que conviver com esses produtos, acho que o governador agiu bem. Ele naturalmente vai
procurar harmonizar tudo isso".
"Santos aguarda as providências do Governo do Estado, enquanto reorganiza o Demutran,
para fiscalizar o transporte de cargas perigosas. E também penso em contratar um ou dois químicos, para nos informar sobre o perigo desses produtos
que circulam pelas ruas de Santos".
Hoje, às 11 horas, o prefeito recebe, em seu gabinete, os dois vice-presidentes da
Union Carbide, Jean Dabiel Patrick e Décio Novais.
Geralmente, nem os motoristas sabem o que transportam
Foto: João Vieira, publicada com a matéria
I – O perigo nos bondes
No tempo em que havia bondes, o Rhun Creosotado colocava uma
propaganda assim, nesses veículos: "Veja ilustre passageiro, o belo tipo faceiro, que o senhor tem a seu lado. E,
no entanto, acredite, quase morreu de bronquite, salvou-o o Rhun Creosotado".
Não há mais bondes, salvo o que os jornalistas Antônio Aguiar
e Áureo de Carvalho conseguiram a muito custo, que se instalasse na praia. Mas, há os caminhões carregados com
contêineres fechados que circulam nas estradas e podem até dormir na porta da casa do leitor. Nada impede o motorista de fazer isso, em qualquer
lugar da Baixada.
Assim, lembrando a propaganda do rum, a realidade de hoje é esta: "Sabe
o ilustre motorista, o que esse caminhoneiro, que vai na estrada a seu lado, carrega no caminhão?..."
Pois ninguém sabe. Caminhões e trens circulam diariamente pela Baixada Santista tendo
caveiras desenhadas nos tanques. Alguns desses veículos apresentam aspecto assustador: parece que estão podres e que se vão romper. Se houver
vazamentos, o resultado será terrível. Volta e meia tomba um desses veículos na Serra do Mar e a população fica em pânico.
Em junho de 1981, dez vagões da Ultrafértil, carregando amônia, tombaram em frente a
um conjunto habitacional em Cubatão. Os carros-tanques estavam em bom estado, nada vazou. Aurílio Fernandes de Lima, presidente da empresa, foi
taxativo: "Se houvesse vazamento, teríamos que evacuar a população das redondezas".
Detalhe: seriam 20 mil pessoas.
II – Poucos seguem as regras
Há indústrias, entretanto, que se preocupam há tempos com o transporte de seus
produtos, mesmo quando são feitos por terceiros – isto é, por conta dos compradores. Ao contrário da Cosipa, que permite que suas bobinas de aço
sejam carregadas por caminhões comuns (um deles estava estacionado, há cerca de dez anos, na Avenida Nove de Abril, em Cubatão. A bobina se soltou e
afundou um fusca. Sorte que ninguém estava dentro do carro), essas indústrias seguem as normas do decreto federal 88.621.
As fábricas locais são a Carbocloro, a Ultrafértil e a Union Carbide. A Carbocloro tem
um dos mais perfeitos sistemas de controle na sua fábrica local. Com freqüência, seus técnicos participam de seminários de especialização. As
carretas que ingressam para abastecer de seus produtos químicos corrosivos são vistoriadas sempre e a empresa rejeita o carregamento de veículos que
apresentem sinais fora das normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas e do decreto acima citado.
Há seis anos atrás, o então presidente da Ultrafértil já se preocupava publicamente
sobre as deficiências do transporte de produtos químicos, que fugiam às normas da ABNT. Em entrevista a este jornal, Aurílio falava na necessidade
das normas serem aprovadas pelo Congresso Nacional para que se tornassem leis e um simples policial rodoviário pudesse parar um desses veículos em
mau estado, vistoriá-lo e recolhe-lo a um pátio de apreensão convenientemente adaptado para a perícia técnica. Infelizmente, não há legislação cível
nem penal a respeito de cargas perigosas.
III – Para onde vai a carga?
O aspecto jurídico do transporte de cargas perigosas foi abordado pelo jurista Paulo
Afonso Leme Machado, promotor de Justiça em Piracicaba e professor da Unesp, além de mestre em Direito Ambiental pela Universidade de Estrasburgo
(França), em recente tese publicada na Revista do Departamento de Águas e Esgotos do Estado.
Ele aponta as principais deficiências desse tipo de transporte que cruza, diariamente,
com inocentes veículos levando crianças em peruas escolares, nas nossas vias públicas:
1) total ausência de previsão de consultas a órgãos ambientais;
2) ausência de um seguro especial obrigatório para danos a terceiros e ao
meio-ambiente, proveniente do transporte de cargas perigosas (se um veículo tomba e vaza, a comunidade não é indenizada; se alguém morre, seus
parentes são obrigados a mover contra o infrator um longo e dispendioso processo ordinário de indenização cível;
3) ausência de previsão de obrigatoriedade de planos administrativos (é não só do
transportador e o expedidor) de emergência nas vias públicas mais procuradas;
4) ausência de obrigação de comunicar aos organismos administrativos competentes o
local do descarregamento ou dos desembarques e prova de entrega da mercadoria (sabe-se que a carga saiu, mas não se fica sabendo se chegou, ou onde
efetivamente está).
Machado faz uma crítica "à timidez do legislador,
que somente considerou o montante das sanções administrativas, deixando de inovar na parte penal". Ele elogia,
entretanto, aspectos da legislação: a obrigatoriedade de comunicação do itinerário; o porte de fichas de emergência que cada caminhoneiro leva e a
colocação de tacógrafos e de sinais externos sobre o produto, em cada veículo.
IV – Decreto que não foi regulamentado
O transporte de cargas perigosas é regulado pelo decreto 88.621, de iniciativa
federal. Alguns dos seus artigos deixam claro o problema da responsabilidade. Por exemplo: o parágrafo único do artigo 6º afirma que o transporte de
produtos classificados como extremamente perigosos deve ser previamente aprovado pelas autoridades com jurisdição sobre as vias a serem percorridas.
O parágrafo 2º do artigo 7º afirma que esse transporte deve ser cercado de cuidados especiais que poderão, entre outras medidas, exigir a interdição
temporária da via pública para outros veículos. O transporte está sujeito, obrigatoriamente, a um serviço de escolta.
Na verdade, nada disso vem ocorrendo.
O leitor deste jornal deve cruzar, diariamente, com uma carreta carregando um
contêiner com uma caveira desenhada na carroçaria. O decreto esclarece que as cargas perigosas são definidas no seu artigo 53.
Ao se ler o artigo 53, descobre-se uma verdade estarrecedora:
"O Ministério dos Transportes definirá os produtos
extremamente perigosos".
Pasme-se: até hoje (a lei é do ano passado) não foram definidos que produtos
são esses.
O assunto está só agora sendo estudado, e mesmo assim na surdina, para não alarmar. Na
última semana, técnicos do Ministério dos Transportes faziam circular em Brasília uma lista que divulgamos com exclusividade com a relação dos
produtos perigosos.
V – Os produtos mais perigosos
São 27 os produtos que matam em poucos minutos, se vazarem para a atmosfera. A maioria
deles não é produzido no Brasil. Logo, entram no País pelos portos de Santos e do Rio de Janeiro, em sua maioria. O mais conhecido desses produtos é
o isocianato de metila. Mas há muitos outros com nomes estranhos.
Sem falso pudor ou sensacionalismo barato, você pode morrer sem saber sequer
pronunciar o nome desses venenos que precisam ser manipulados e transportados com extrema segurança, segundo a lei que nem sempre é obedecida:
"Acetaldeído, ácido pítrico, aquilometrila, chumbo tetraetila, brometo propargilo,
cianeto de metila, cianogênio liquefeito, cloreto de dietilalumínio, diborano,
foscina, fósforo branco e amarelo, metil
isobotilcetona, paraxidicarbonato de isopropila, trinito benzeno,
trinito tolueno e o fogênio".
A lista foi fornecida pelos próprios industriais, numa atitude até certo ponto
elogiável, através da Associação Brasileira de Indústrias Químicas (Abiquim), aos técnicos do Ministério dos Transportes. Na relação acima, os que
estão grifados, em letras mais claras, são manipulados na nossa região.
Cabe outra pergunta: quem são as autoridades competentes para impedir o tráfego desses
veículos ou exigir que se cumpra o decreto 88.621? Não se sabe ao certo. Presume-se que sejam a Codesp, a Dersa e DER e os prefeitos das cidades por
cujas vias públicas os caminhões transitam.
Quem são os responsáveis?
Você resolve ser um bom cidadão e defender os seus direitos: um caminhão carregado de
produtos inflamáveis está passando debaixo do seu nariz, numa sossegada rua santista. Você resolve denunciar, inconformado com a falta de
responsabilidade do motorista, que simplesmente está ameaçando a via da sua família, do seu vizinho, do seu bairro. Você grita, esperneia, põe a
boca no mundo. Só que ninguém escuta. Ninguém se responsabiliza. No máximo, alguém dirá: "Isso não é comigo..."
Se for constatado que uma carreta cheia de tóxicos ou explosivos trafega sem a
segurança exigida, não surgirá alguém para dizer: pára. Ninguém proibirá o motorista da carreta de seguir viagem, seja na Imigrantes, na Anchieta ou
mesmo na mais residencial das ruas da Cidade. E enquanto os olhos continuam fechados (talvez seja mais fácil reconstruir Santos e Cubatão, além de
uma parte de Guarujá e São Vicente, em vez de se montar um esquema que garanta a segurança), o risco de explosão é constante, diário.
Mas não é só na Baixada: o Conselho Estadual de Meio-Ambiente (Consema) reconhece que
todo o Estado é vulnerável a tragédias semelhantes à de Bhopal, na Índia. Somente em março ficará pronto um levantamento sobre as cargas perigosas
em circulação. E só depois da conclusão desse estudo é que o órgão discutirá o que fazer. Rapidez é com o Consema, não resta dúvida...
Para completar, surge o ministro dos Transportes, Cloraldino Severo, dizendo que
existem cargas muito mais perigosas do que o isocianato de metila. E a solução, para o ministro, é uma só:
"Se os riscos são inevitáveis, a população é que deveria
ser preparada para conviver com eles". Ou seja, deveriam ser realizados exercícios de evacuação das cidades. Quer
dizer: como sempre, o povo que se vire. Nada poderia ser mais tranqüilizador.
Perto disso, só mesmo a Union Carbide, que considerou o isocianato de metila como "uma
dádiva de Deus". Ou, ainda, um transportador que assegurou que, se houvesse a obrigação de se montar aparatos de
segurança em todas as operações com produtos perigosos, "ninguém os transportaria no Brasil".
E de Brasília vem a informação confortadora: se houver empenho, é possível que
no próximo ano tenhamos normas federais para produtos perigosos à saúde. No próximo ano...
Reza forte – Suponha por um instante (por mais terrível que possa ser) que um
caminhão carregado com amônia esteja rodando por aí. Um simples vazamento será suficiente para que o produto se transforme em gás. E mate
instantaneamente todas as formas de vida que encontrar pela frente.
Pode ser que, nas estradas, batedores da Polícia Rodoviária acompanhem alguma carga
com produto altamente perigoso. Mas só na estrada. Da estrada até o porto, não haverá proteção alguma. Só nos resta rezar, e muito, apelando para
todos os santos.
Dentro do porto, poderá haver o acompanhamento da própria Cipa da Codesp. Ou ainda do
Plano de Auxílio Mútuo, que integra indústrias e entidades oficiais, como os Bombeiros, a Cetesb, a Codesp e a Capitania dos Portos. Mas na área de
responsabilidade do Município, o motorista pode ficar tranqüilo: não haverá uma única bicicleta acompanhando.
Tem mais: a descarga de tambores e contêineres, por exemplo. Pelo porto chega, entre
muitos outros, o tordon, o famoso agente laranja, aquele terrível desfolhante que as tropas americanas usaram no Vietnã (e mesmo apelando
para recursos químicos, eles perderam a guerra). Ou ainda o pó da China que tanta comoção já causou. Ou então o temido ortotuluidine, que andou
vazando na semana passada de um tambor transportado pelo navio Avon.
Num caso destes, "todas" as
medidas de segurança serão tomadas. E ainda serão poucas. A descarga será feita, de qualquer forma. Provavelmente os estivadores reclamarão, por não
saber o que estarão manipulando, pois o Sindicato dos Estivadores não tem recebido, como é obrigatório, os manifestos de carga, com a exata
discriminação de todos os produtos.
Mas a operação – salvo um daqueles acidentes tão comuns e que tantas vítimas já
fizeram, inclusive muitas fatais -, terminará e a preciosa carga será descarregada. Aí então, será armazenada. Começa outro drama: certamente ficará
dias e dias em algum pátio, sob o sol. E alguns produtos precisam ser mantidos em baixas temperaturas. Do contrário, podem entrar em combustão.
Já aconteceram casos, até, em que os bombeiros foram obrigados a resfriar contêineres,
com jatos de água. E existem milhares desses contêineres empilhados na área portuária. O que haverá dentro deles?
De acordo com dados de 1982, existem 1.600 empresas químicas no Estado. E todas elas
armazenam tóxicos, venenos, inflamáveis, corrosivos ou gases letais. Esses produtos são descarregados no cais e parte significativa deles segue para
a Grande São Paulo, onde se localizam mais de mil indústrias do setor. Neste trajeto entre o porto e o Planalto, pode ocorrer de tudo. E muitas
vezes acontece mesmo.
Talvez depois de mais alguns acidentes e tragédias, surjam os responsáveis pela
omissão geral. E, com um pouco de sorte, talvez eles resolvam também assumir a prevenção de acidentes com cargas perigosas, antes que toda a Baixada
se transforme numa grande e incendiária Vila Socó.
Não existe fiscalização e muito menos regulamentação
Foto: João Vieira, publicada com a matéria
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